Gotas Artur de Carvalho é um remédio bastante conhecido aqui no Ceará. Serve para quase todos os problemas intestinais, prisão de ventre, dor de barriga. Não sei se é conhecido pelo Brasil afora, mas nós cearenses o consideramos milagroso.
Pois bem, a década de setenta tornou-se auge de cursinhos pré-vestibulares. Nossos sonhos eram todos depositados nas aulas preparatórias para o vestibular , e, consequentemente, ingressar na faculdade nosso maior anseio. Aquelas aulas nos irmanavam num objetivo comum, como também nos traziam ansiedade por aquele contato cotidiano com a turma. A troca de idéias, as discussões sobre determinados temas. A apreensão de não passar no vestibular também fazia parte, principalmente, aqui em nossa terra onde não havia ainda faculdades particulares. A concorrência era acirrada, mas todos torciam uns pelos outros.
Por toda escola que passei sempre vi cumplicidade entre os alunos. Quase todos, com raras exceções, sempre buscavam ajudar uns aos outros, mesmo sabendo que ali estava um concorrente; um adversário que, posteriormente, deveria ser vencido. Mesmo assim, havia fraternidade.
Em todos os ambientes que se freqüenta com assiduidade: trabalho, colégio, clube, fazemos nossas amizades, e sempre buscamos pessoas que se identificam conosco; amigos, colegas que comunguem mais ou menos o nosso mesmo pensamento.
Freqüentei um cursinho em Fortaleza e lá fizemos um grupo de amigos, que sempre procurava se reunir, tanto para estudar como para curtir alguns momentos de lazer, raros na época, pois tínhamos aulas até aos domingos. Mesmo assim, sempre que possível, curtíamos uma praia ou uma festinha qualquer. E o pessoal do cursinho quase sempre estava junto.
Discutíamos muito sobre vários assuntos, principalmente literatura, visto que a interpretação de texto no vestibular era considera o bicho papão, afora redação. Porém a literatura sempre era um tema apaixonante.
Época de se ler Machado de Assis. José de Alencar, Mário Palmério, Dostoieviski, Tosltoi, Vitor Hugo e muitas outras feras da literatura brasileira e mundial.
Em no nosso grupo havia uma menina que conhecia tudo. Sabe aquelas pessoas que nasceram para aparecer. Em tudo se mete e tudo entende, pois assim era essa nossa amiga. Sempre que conversáramos sobre determinado assunto, ou sobre um autor qualquer ela de pronto se metia e dava seus palpites. Conhecia tudo. Se citávamos um livro ou um autor de imediato e se pronunciava:
- Já li.
Mas sempre ficava nisso, sem maiores comentários, e nós matreiramente, por desconfiávamos dos conhecimentos dela, ficávamos calados esperando uma oportunidade para dar o troco, porque sabíamos que ela não lia nada e não tinha muitos conhecimentos, o que se via pelas colocações e perguntas que fazia.
Sabe como é estudante, mesmo sendo prestativo e irmanado com os colegas, também está sempre pronto a pregar uma peça no companheiro mais desavisado. E assim tocamos o cursinho, aturando a intelectualidade da colega, à espera de uma oportunidade para dar o troco na arrogância e no ego dela, que também por ser bonita se acha o máximo em tudo e todos nós deveríamos atura-la.
Oportunidade não falta e ela chegou.
Certa dia, numa das poucas folgas que tivemos, marcamos de ir à praia. O encontrou foi na Praia do Futuro, na época ainda não tão badalada como hoje, devido ao acesso difícil. Transporte coletivo fazendo linhas pra lá tinha, mas passava de hora em hora, e aos domingos ficavam lotados, todo mundo queria ira à praia. Poucos ou quase nenhum de nós possuía carro. Mesmo assim fomos. Uma novidade que valia o sacrifício, porque a praia mais freqüentada na época era a Beira-Mar e quase ninguém ainda conhecia a Praia do Futuro.
Por volta das nove horas estávamos por lá. Foi chegando um e outro mais atrasado até que a turma ficou completa. Lá pelas tantas começamos a falar sobre o vestibular que se aproximava. E falamos de várias matérias até que chegamos à literatura.
Discute-se daqui, discute-se dali. Quem leu quem. Aquele papo de colegial. E nossa colega que lia tudo, dando seu show de esnobismo. Lá pelas tantas, um colega olha para mim e pergunta:
- Henrique, já leste “Gotas – de Artur de Carvalho”?
Não deu nem tempo para que eu raciocinasse, mesmo sabendo do que se tratava, pois havíamos combinado o assunto eu e o colega que perguntou, e a “intelectual” querendo mostrar seus conhecimentos não deu tempo para ninguém responde, saltou de lá e exclamou:
- Já li. Muito bom.
A gargalhada foi geral. Sem saber do que se tratava, mas prevendo que tinha cometido uma gafe arrematou:
- Mas não li todo, fui só até a metade.
O remendo ficou pior do que o soneto.
Não sei se ela descobriu que estávamos gozando com a cara dela, só sei depois disso seu esnobismo diminuiu e ela passou a falar pouco em classe, quando antes era uma verdadeira tagarela, querendo mostrar conhecimento. Muitas vezes até atrapalhava as aulas, pois sempre interrompia os professores para mostrar sapiência fazia colocações bizarras.