Gota-a-gota
Rir é o melhor remédio, assegura o ditado popular. Creio, todavia, que o ato de rir dessa sentença não se restringe a gargalhar, a rir escancaradamente -- que é coisa efêmera, mas estar feliz, contente, criar motivos, por exemplo, para sorrir mesmo, no modo mais leve de rir, no mais agradável e no mais das vezes o mais sintomático e duradouro, o riso da alma.
E quando acontece de nos acontecer assim, sorrir verdadeiro, com os olhos, sem ser por desdém ou ironia, conseguimos, como num passe de mágica, afastar, ainda que provisoriamente, sentimentos outros, Ã s vezes nobres e edificantes, mas que inquietam, incomodam, debilitam, nos tornam sombrios, como a saudade e a tristeza.
Quando recebemos notícias de quem esperamos ansiosos que as enviem, geralmente reagimos assim, valorizando a alegria, o contentamento, o viver, e sorrimos, por fora e, principalmente, por dentro. Eis a magia, sem mistérios.
Um amigo recebeu outro dia um cartão "virtual", desses que a "grande rede" promete entregar com denodo, e nele a remetente lembrava que o tempo estava frio, na verdade quase chuvoso, céu cinzento, sério, circunspecto, com ar grave, mas sereno, doce e calmo, e tranquilo como os templos religiosos. E sugeria que só um abraço, um bem forte daquele destinatário, seria capaz de atenuar a saudade que sobre si se despejava em véu finíssimo e delicado e que, porejando, lhe apertava o peito. Saudade remediada, explicou, naquele breve e moderno meio de contato.
Não deu outra, os laços afetivos desse abraço surtiram um efeito especial, diria espetacular, no rapaz. O saldo foi de uma sublime felicidade. Deve ter acontecido com ela da mesma forma, ele pensou, desde quando enviou o cartão.
É assim, aos poucos a gente descobre que viver é fácil, basta perceber a vida nas pequenas coisas, basta doar-se sem contrapartida.
Pois é, amanhã pela manhã, se o tempo despertar com estardalhaço, com aquele rosto de sol amarelo-forte e traquinas dos desenhos infantis, quem sabe eles não se encontrem e destilem outras emoções, dedos entrelaçados, rosto a rosto, sem o intermédio virtual. Os romances são assim, como formiguinhas operárias, feitos gota-a-gota.
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