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Contos-->PACTO SAGRADO -- 02/12/2007 - 18:49 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Hipólito ia muito apreensivo para aquela consulta médica. Sabia que não estava bem a nível pulmonar, mas só agora o Dr. Castro lhe iria comunicar o resultado dos exames que fizera na semana anterior.
- Conforme me pediu, não lhe vou esconder nada nem falar por meias-palavras. O que o meu amigo tem é algo de bastante grave e o facto de ter fumado durante dezenas de anos não lhe vai facilitar a vida.
- Tenho portanto pouco tempo de vida, é isso senhor Doutor?
- Não lhe posso fazer previsões nesse sentido, mas a situação é mesmo muito má. Diria mesmo péssima.
Sentiu que o Mundo lhe ia desabar em cima. Pediu para sair, dizendo que voltaria noutro dia. Necessitava de respirar ar puro.
Conduziu muito devagar, desde Faro até à “sua” praiazinha. Precisava de tempo para pensar. Tinha de descobrir o melhor modo de contar o sucedido à mulher e, depois… Depois, havia que tomar decisões e fazer certas coisas.

Otília e Hipólito eram da mesma terra e tinham sido criados praticamente juntos. Cedo começaram a namorar e as contingências da vida fizeram com que tenham decidido casar-se ainda muito novos. O pai dela morreu, tinha Otília dezassete anos, e ela sentiu que era um peso a agravar ainda mais as preocupações da mãe. Ele vira o pai emigrar para França, quando tinha doze anos, e chegava a hora dele e a mãe irem também.
Resolveram “juntar os trapinhos”, por volta dos vinte anos, e rumaram para junto do pai que, entretanto, se associara numa oficina de reparação de automóveis. A mãe de Hipólito foi com eles.
O pai era um bom mecânico e ensinou-lhe o ofício. Otília empregou-se, primeiro como “mulher-a-dias” e depois como porteira, o que lhes veio resolver também o problema da habitação.
Assim decorreram os anos. Conseguiram amealhar bom dinheiro e nunca tiveram filhos. A mãe de Otília morreu lá na terra, inesperadamente, de ataque cardíaco. Mais tarde, foi com tristeza que viram os pais regressar a Portugal, para gozar a merecida reforma. Hipólito seguiu as pisadas do progenitor e ficou à frente da oficina, situada nos arredores de Paris.

O tempo passa rápido demais, quase sem se dar por isso. A permanência em França de Hipólito e Otília tinha sido um sucesso sob o ponto de vista económico, pois juntaram o bastante para ter uma velhice sossegada e sem preocupações. Começavam, no entanto, a sentir-se cansados e com saudades de Portugal, saudades que as férias anuais não conseguiam mitigar.
Otília, muito metida em casa, tinha poucas amigas, aborrecia-se e tornava-se rezingona, havendo frequentes conflitos entre o casal.
Aproveitaram as últimas férias de Agosto, para comprar uma casita no litoral algarvio e, quando regressaram a França, já tinham tomado a decisão de liquidar as coisas em Paris para se reformarem.
Hipólito procurou, entre os empregados mais antigos, aquele com quem negociaria a cedência da oficina, enquanto Otília ficava cada vez mais mal-humorada, talvez pela ansiedade que a roía.
- Se Deus quiser, iremos festejar as bodas de ouro do nosso casamento já em Portugal!
- Oxalá que sim. Deus te oiça. Gostei muito de estar cá, mas agora já não posso suportar isto.

Dia de festa! Não é todos os dias que se atingem os cinquenta anos de casamento. Otília gostava de cozinhar em casa, atenta às dietas do casal mas, naquele dia, excepcionalmente, foram jantar a um restaurante. Contrariamente ao habitual, Hipólito estava pouco expansivo naquela noite.
- Que tens? Logo hoje… Estás com uma cara!
- Enquanto dormias a sesta, esta tarde, estive a pensar no nosso futuro. Praticamente já não temos família, os nossos pais morreram e não tivemos filhos. Seria bom, para os dois, que desaparecêssemos ao mesmo tempo.
- O que estás a sugerir?
- Imaginei que poderíamos fazer um pacto. Se algum de nós fosse atingido de doença incurável, ficasse dependente ou tivesse algum problema muito grave, podíamos arranjar modo de “partirmos” simultaneamente.
- Visto assim, acho bem. Que faria eu se ficasse cá sozinha, sem ti? Em lares nem quero ouvir falar. Só adiam o nosso fim por alguns meses. E longe das nossas coisinhas.
Acabaram de comer silenciosos e regressaram a casa de mãos dadas, como se fossem dois adolescentes.
No dia seguinte, Hipólito passou a manhã a vasculhar no baú, onde guardava recordações do pai. Entre elas, uma velha pistola. Ao lado, um envelope amarrotado com algumas munições. Fechou a arca e limpou a pistola. Estava em bom estado de funcionamento. O pai comprara-a em França, numa época em que os assaltos se sucediam. Embrulhou tudo num pano de pó amarelo e guardou na cómoda, que se encontrava à entrada da casa. Otília assistiu a tudo, sentada numa cadeira de baloiço, com um ar triste e resignado.

Era em tudo isto que Hipólito pensava, enquanto se dirigia para casa. As recordações acorriam-lhe em turbilhão.
Arrumou o carro e entrou em casa. Olhou Otília bem nos olhos.
- Não necessitas de dizer nada. Vejo que as notícias não são boas.
- Tenho pouco tempo de vida, segundo me disse o médico.
- Temos de fazer o que combinámos. Não quero arrastar-me, sofrendo com a tua perda.
- Quanto mais depressa melhor. Amanhã?
- Sim, perto do meio-dia. Foi a hora em que casámos.

Levantaram-se cedo, tomaram banho e abriram uma garrafa de jeropiga que pertencera ao pai. Quando tocaram as doze badaladas, no relógio da sala de jantar, ele dirigiu-se à cómoda e retirou a pistola que já estava carregada. Silenciosamente, virou-a para o coração de Otília e disparou. Ouviu-se um grito e ela caiu redonda no chão. Como que ao ralenti, Hipólito virou o cano para o seu próprio ouvido, encostou e premiu o gatilho. Caiu desamparado no solo.
Otília levantou-se e passou a mão no vestido, como se o quisesse sacudir:
- Se não tivesse posto uma bala de pólvora seca no carregador, onde estaria eu agora, meu Deus? Já não se pode confiar nos homens. São todos iguais!
E depois, mudando de tom:
- Agora já não sofre, coitadinho…



NB – Menção Honrosa nos XXVII Jogos Florais do Algarve – 2007 (Racal Clube – Silves)

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