Este fato me veio à lembrança de repente. Teve motivo dele vir à tona, claro, mas explicarei no decorrer da narrativa. Uma lembrança de muito longe: Yashim, cujo nome com certeza não era esse, e também nem sei se se escreve desta maneira. Com toda certeza era apenas um apelido, que suponho tenha sido posto devido à aparência do cara; parecido com um chinês. Mas era desta forma que tratávamos, vamos dizer assim, um conhecido da adolescência. Conhecido porque ele saiu algumas vezes conosco. Entretanto, não tínhamos lá essa amizade toda com ele; diferente daquela amizade de adolescentes, sempre juntos; na escola, nas farras, no jogo de futebol, com as gatinhas, os trabalhos de colégio feito em equipe. As cumplicidades.
Com ele nos encontrávamos somente nos fins de semana, talvez devido aos seus afazeres.Yashim, cuja idade estava por volta dos vinte e cinco anos, trabalhava, e nós só estudávamos, portanto com tempo bem mais livre. Quanto ao seu nome real não faço a menor idéia qual fosse, como também tenho certeza que meus amigos também não. Isto, entretanto, não tem muita importância.
Quem era? Não sei. Sei apenas que o conhecia por Yashim e era primo do Neto. Neto, este sim, era nosso amigo, inclusive morava na mesma rua que eu morava. Jogava bola com a gente nos fins de semana, embora nós jogássemos todos os dias. Enfim participava mais. Mesmo não se tendo notícias dele também há muito tempo, eu e mais alguns amigos daquele tempo, com quem até hoje me encontro, de vez em quando falamos nele, Neto. Mas em Yashim, nunca. Sua passagem por nossas vidas teve um período muito curto, que não marcou. Não existem pessoas que fazem parte de nossas vidas por certo tempo, que depois somem e nunca mais nos lembramos dela? Pois ele foi uma delas. Tais pessoas vêm, passam certo tempo, se vão para não mais voltarem e nem sentimos sua falta. Até que um belo dia, por um motivo ou outro, obra do destino, sei lá, nos vêem à lembrança. Tive inúmeras amizades desse tipo. O Yashim foi só mais uma delas.
Mas depois de todos esses anos, dele lembrei por puro acaso. Estava vendo um orçamento para compra de um material e achei o preço muito alto. No local havia uma garrafa de uísque; e me servi de uma dose. O vendedor vendo aquilo, brincou e pediu para servirem mais bebida, que assim eu acabaria concordando com o preço. Ri e comentei. Isso me faz lembrar uma história. Uma história de quando era adolescente.
Nossa turma, formada toda de lisos, com raras exceções, vivia às custas dos pais. Raramente um tinha dinheiro; e quando um aparecia com grana era uma festa. O dinheiro mal dava para se ir de ônibus para ao colégio. Como estudantes nós pagávamos meia passagem, sendo que esta meia passagem era representada por tíquetes que se comprava em locais previamente determinados pela Prefeitura da Cidade, com uma autorização expressa de cada colégio para cada aluno. Todo mês recebíamos aquela autorização, comprávamos os tíquetes e tínhamos as passagens do mês todo. Portanto, nem sobra de dinheiro havia, a não ser que se deixasse de comprar as passagens e se fosse a pé para a escola.
Sábados à noite era dia de ir para a casa da namorada, ou em busca de uma festinha. Sempre nessas festinhas rolava bebidas. Aí a gente se virava, entretanto. Mas sempre na base da cana, ou quando muito uma caipirinha, devido ao preço de outras bebidas. A fabricação de cerveja aqui no Ceará ainda era incipiente, portanto, o preço era muito alto e o maior consumo de álcool era de cachaça. Uísque, nem pensar. Os brasileiros ainda não existiam por aqui os importados era pela hora da morte. E quando saíamos para as festinhas, ou para qualquer lugar aos sábados, Yashim gostava de nos acompanhar.
No bairro ele não tinha muitas amizades. A pessoa mais próxima era seu primo, Neto, que vivia do trabalho para casa, de casa para o trabalho. No fim de semana à tarde jogava bola com a gente, e à noite saia para a casa da namorada. Naquele tempo o namoro era em casa, não era como atualmente. E convenhamos, ir para a casa da namorada, acompanhado de um marmanjo, é dose. E assim, a Yashim restava-nos. Pois nem ficar em casa vendo televisão dava para ficar; televisão era produto raro e de luxo, somente ricos possuíam, ou aquelas famílias mais remediadas, o que não era nosso caso, muito menos do Yashim, nem do seu primo Neto. Embora ambos tivessem um emprego relativamente bom, não dava para comprar artigo tão caro na época. Para se ter idéia seria como hoje se ter uma televisão de plasma no sistema digital. Poucas pessoas têm condição. O povão mesmo não pode nem mesmo comprar o decodificador, imagine a televisão. Pois é mais ou menos por aí.
Portanto, não tendo muitas amizades no bairro e nem outras opções era nós ou nada, ou em última hipótese ficar sentado na calçada ouvido conversa dos mais velhos. Era pegar ou largar, sem direito a reclamar. E ele pegava. Como era matuto que pela primeira vez saíra do interior, mal falava. Ficava mais observando, acanhado, com medo de dar fora e ser gozado.Se soltássemos ele num bairro qualquer, acho que nem voltar para casa saberia. Seu trajeto resumia-se a ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa, isso porque pegava o ônibus na porta de casa e descia no fim da linha, dois quarteirões da empresa onde trabalhava. Era esta sua rotina de segunda a sexta.
Assim, sua tábua de salvação éramos nós. Ou seja, aos sábados, depois do expediente, dar umas voltas conosco, e aos domingos, de vez em quando ir à praia. Aí, às vezes Neto o levava. Nas noites de domingo aproveitava para ir à missa, numa igreja perto. Este é o resumo a vida do Yashim, que nem o tempo ocioso à noite aproveitava para estudar.
Como não costumava beber, quando ia a uma festinha com a gente limitava-se a olhar. Nem dançar, dançava. Não sei se não sabia, ou se tinha vergonha de chamar uma menina para dançar e levar um fora. Namorada? Nunca vimos ele com uma, embora não fosse bicha. Pelo menos nunca desconfiamos de nada, nem ele cantou nenhum de nós; senão todos saberiam.
Pois bem, ele ia e vinha sempre conosco, participando de tudo, porém na dele. Por vários motivos. Um, por ser meio calado mesmo; de pouca conversa. Não reclamava de nada, mesmo porque nem podia, tinha que se limitar a ir conosco, aceitar tudo e pronto. Com a gente ficava até a hora de voltar, sem se importar com nada. Esperava sempre perto de um de nós. Se fossemos todos dançar, ele se colocava num local onde pudesse ver a gente voltar, para não se perder. Não reclamava, nem pedia para se voltar mais cedo, muito menos mostrava qualquer sinal de aborrecimento. Seguia-nos fielmente, não importava onde fôssemos ou o quê fizéssemos: simplesmente nos seguia. Ficava olhando sem nunca emitir qualquer opinião ou tomar parte das conversas ou das discussões, mas sempre ali por perto. Ouvindo e seguindo-nos. Se decidíssemos ir a um local qualquer, onde fosse, ele ia. Se tinha gostado ou não nunca soubemos, e também não perguntávamos nada. Na volta de qualquer passeio, festas, há sempre as discussões inevitáveis sobre o ocorrido, ele, entretanto, se mantinha calado. Sua voz só era ouvida quando ele perguntava qualquer coisa, ou nos raros comentários que tecia sobre a cidade. Coisas como, que lugar é este? Para onde nós vamos e longe ou perto? É bonito, feio. Nada mais, pouquíssimas palavras.
Nós sempre para onde íamos, procurávamos logo um bar por perto para beber umas canas e chegar calibrado no local. Coisa de adolescente mesmo. Para impressionar e ter coragem. Se fosse num clube complicava, pois lá dentro não se bebia mais, visto que em clube somente vendia cervejas, uísque, rum. Nunca cachaça e dinheiro a não ser para tomar cachaça não tínhamos. Era passar o resto da noite dançando, e de vez em quando, no máximo, tomar uma água mineral. Entretanto, se a festa fosse numa casa de família a possibilidade de beber era maior. Primeiro porque se procurava logo um boteco por perto que funcionasse até mais tarde; segundo porque nestas ocasiões, festas em casas de família, havia sempre muita bebida; leite de onça principalmente, uma espécie de coquetel com leite de moça, muito pedida na época. Como as mulheres não tinham o hábito de beber era a chance: tomar leite de onça. Pegava que era uma desgraça. Bebida doce já viu. Só se via gente de porre, mulheres principalmente, vomitando.
De qualquer maneira, quando se parava num bar para tomar alguma coisa, era preciso fazer uma vaquinha. Juntar a grana de todos para comprar cachaça, refrigerante, cigarro. Yashim, apático às conversas, nessas ocasiões assim também se mantinha. Não tomava nem um gole de refrigerante, para não entrar na cota. Como dificilmente bebia bebida alcoólica, não dava a menor importância às nossas discussões sobre dinheiro e ficava afastado, longe das conversas. Omisso, na dele. Nem bebia, nem colaborava. Mão de vaca total. Mesmo sendo, entre nós, o de melhores condições financeiras, se quisesse até podia bancar sozinho nossas farras; o custo seria quase nada. Até por uma questão de consideração, vendo que não tínhamos dinheiro, todos desempregados, e que servíamos de cicerone para ele, que tinha um emprego relativamente bom, morava de graça na casa do Neto, não custava nada, pelo menos de vez em quando, fazer uma fezinha, como se diz. Ser gentil conosco. E olhem que sua única despesa era com transporte para ir e voltar do trabalho. Uma garrafa ou duas de cachaça não fariam qualquer diferença, seria uma gentileza que qualquer um teria o prazer de fazer. Nem isso. Não tinha coragem de comprar um chiclete, ou mesmo um Pipers – bombons de hortelã que costumávamos chupar depois de beber, para disfarçar o hálito da bebida. Nada. Jamais gastou um centavo, e com se diz por essas bandas, não tinha coragem de sustentar um sibite – pequeno pássaro do tamanho de um beija-flor - com fastio – . Portanto, em nenhuma ocasião se manifestou para colaborar, mesmo tendo saído inúmeras vezes conosco.
Vocês, entretanto, sabem como é adolescente, menino, observam tudo e gostam de aprontar. Ele ia, não nos incomodava e também não achávamos ruim que andasse com a gente, mesmo que nunca o tivéssemos convidado para sair, pelo menos eu. Ele se chegava todos os sábados espontaneamente; nem sei como tudo começou. Ele saia conosco e não estávamos atrás de qualquer pagamento, mas diante da maneira como se comportava quando o assunto era dinheiro, resolvemos aprontar uma. Eu, Orlando, Paulo, Stênio e Chico Cabeludo.
Quando pequenos até certa idade, muitos temos um apelido, que depois com o passar do tempo, é substituído pelo nome de batismo, ou de cartório. Pois bem, o hoje Brito, era o Chico Cabeludo da época. Época de cabelos compridos. De Roberto Carlos, Ronnie Von, Beatle, e outros cabeludos mais. Como o Brito queria imitir um de seus ídolos deixava o cabelo grande. Para chamar a atenção, a toda hora virava a cabeça de um lado para o outro com bastante força, claro, de modo que os cabelos esvoaçassem bem, e as pessoas olhassem para ele. Não se conformando com isso, sempre achava uma maneira de dar uma risada bem sonora, baixar o corpo, dar uns três ou quatro passos e voltar correndo para se mostrar atleta. Chamar a atenção era seu esporte predileto, e isso faz até hoje, embora as marcas do tempo estejam bem visíveis nele, muito mais do que em outros da nossa idade.
Porém, de volta ao nosso assunto, fomos a uma festa no Bairro São João do Tauape. Naquele dia, traçamos uma estratégia. Como essas festinhas acabavam no mais tardar a meia-noite, saímos mais cedo, já com um plano em mente, e a festa ainda contribuiu, não estava lá essas coisas todas.
Nas outras ocasiões, sempre chamávamos Yashim para beber, mas ele recusava; e também não insistíamos muito. Nesse dia, porém, mudamos de tática. Insistimos bastante, até ele beber. Aceitou, mas não entrou na cota. Então aproveitamos para por o plano em prática, que consistia em dar bebida a ele, até que se embriagar. Bêbado, pensamos, vai se empolgar e pagar tudo. Aí, ao invés de cachaça passaremos a tomar cerveja, às custas, dele, e vamos deitar e rolar, descontar. Como diria Bento Carneiro:”minha vingança será maligna, vampiro brasileiro”. E tome cachaça no Yashim. Ficamos nos escorando, ou seja, fingíamos beber enquanto ele bebia à vontade.
Havia uma crença aqui no Ceará que raspa de unha dentro da bebida fazia efeito mais rápido. Assim para que o efeito fosse ligeiro, passamos a raspar unha dentro do copo do Yashim, e também colocar feijão pisado. Enquanto um o distraía, outro fazia a simpatia. Quando mais bebia, mais mão de vaca ficava. Não pagava nada. Quanto ao gosto da cachaça, ele nem notava que ela havia sido misturada com alguma coisa. Como as garrafas de cachaça eram lacradas com tampa de cortiço, que de muito velhas quando abertas se quebravam em pequenos pedaços na garrafa, não dava se identificar um gosto anormal, principalmente do feijão, já que a raspa de unha não tem gosto de nada.
E tome cachaça no Yashim com raspa de unha e pedaço de feijão. De vez em quanto um comentava: “ o homem tá quase no ponto, é já que ele abre a mão e começa a dar uma de bêbado rico”. E assim o tempo foi passando e nada de sair uma única cerveja sequer. Nem um cigarro ele comprava. A cachaça se acabando, a gente gastando os últimos trocado, e nada. Era só bebendo, e bebendo e o tempo passando, sem abrir mão para comprar alguma coisa.
Por volta de meia-noite resolvemos aproveitar o último ônibus e fazer uma tentativa desesperada. Naquele tempo, no Centro de Fortaleza, havia muitas boates, ou melhor, muitos cabarés. Resolvemos pegar um ônibus e levar-lo até o Centro, para os cabarés. Imaginamos que lá, ele se empolgaria com as mulheres, e para fazer bonito começaria a beber cerveja. Chamaria logo uma delas pra mesa e tome bebida. Esse era o plano.
E lá vamos nós para um cabaré, arrastando Yashim já quase bêbado. Quando chegamos, ficamos por ali, olhando. De vez em quando vinha uma mulher e nos pedia qualquer coisa, ou no chamava para se sentar, e nós em pé, aguardando uma reação do Yashim, mas este não de se manifestava de maneira alguma, nem se mexia. Por vários minutos ficamos à espera dele e nada. As mulheres começaram a desconfiar que daquele mato não saia cachorro e deixaram de nos assediar. E nós ali com cara de trouxas só olhando o mulherio e o ambiente.
Cachaça é bicho traiçoeiro. Muitas vezes a gente bebe, bebe e ela não faz efeito. De repente nos pega, aí já era. O cara fica num porre de matar. Acho que foi isso que aconteceu. De repente olhamos para o Yashim que foi ficando mole, mole e desabou de uma vez, quase caindo ao chão. Foi um vexame só. Ainda bem que tivemos tempo de segura-lo, para não ir ao chão.
Todos nós, exceto ele, estávamos conscientes, porque só tínhamos enrolado enquanto ele bebia, ou seja, nos escorando com se diz, fingindo beber para dar porre nele, conseguimos evitar a queda de Yashim. Entretanto, as conseqüências do porre para nós foram terríveis. Além de queda coice. Yashim bebeu a noite toda às nossas custas, sem gastar nada e nós na esperança embebeda-lo para beber cerveja paga por ele, ficamos na obrigação de sustentar aquele bêbado, e ainda o trabalho de rebocá-lo do Centro da Cidade para nosso bairro.
Agora, imagine arrastar um bêbado por uns dez quilômetros, rebocado mesmo, porque não tinha condição de andar, pois foi essa a distância que percorremos a pé. Depois de meia-noite ônibus não trafegavam mais. Ir de táxi? E quem tinha dinheiro para tanto luxo? Nenhum. Além do mais éramos seis contando com Yashim, seriam necessários, portanto, dois táxis, mesmo que conseguisse dinheiro com ele para um táxi, dois teriam de ir a pé. Ninguém queria ficar para trás a pé, assim, fomos todos de pés para o Alto da Balança.
Aquela foi a última vez que ele saiu conosco, mesmo porque muitos de nós mudou de bairro, outro foi para São Paulo, um para a Bahia, enfim a turma quase se disfez. Entretanto, ainda durante o tempo que permanecemos no bairro nunca mais levamos ele para lugar nenhum. Quando íamos sair, sempre arranjávamos um desculpa para ele não nos seguir, ou dávamos um traço nele. Marcávamos para nos encontrar em determinado local e não aparecia. Muitas vezes ele ia para o ponto do ônibus esperar que a gente aparecesse por ali. Sabendo disso, passamos a nos chegar no ponto do ônibus de mansinho, verificando se ele estava por lá. Se o avistávamos, era logo mudar de rumo; e pegar ônibus no outro lado da avenida, ônibus vinham de outros bairros. Com o tempo ele também desistiu de nos procurar.
HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
NOVEMBRO/2007