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Artigos-->Pisando em Ovos -- 17/11/2002 - 23:51 (Marcelo Luís Militão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando se busca uma solução a determinadas questões um tanto abstratas, mas com cruciais implicações práticas, procura-se sempre algum fato semelhante, que possa servir de base “metafórica” à resolução do problema.

Normalmente essas soluções são buscadas na natureza, ou na história, ou em fontes semelhantes, que sejam mais ou menos “um grupo em si mesmo”, porém semelhante ao grupo que apresenta o problema.

Muitos justificam, por exemplo, o direito ao porte de armas, citando o direito que todos os seres têm de se defender, inclusive os animais, que têm suas próprias “armas” (não se trata aqui de concordar ou discordar de tal direito e seus argumentos, e sim de dar um exemplo).

E aí entra a questão do aborto.

Dizem as pessoas favoráveis que uma mulher, seja pelo que for, tem o direito de dispor sobre seu corpo, incluindo-se aí tudo o que houver dentro dele. As pessoas contrárias respondem que o feto não faz parte do corpo da mãe, e que mesmo estando ali dentro, não faz parte da “propriedade física” de uma mulher, sobre a qual ela teria direito de decidir.

A argumentação contrária coloca a questão da independência entre a criança e a mãe. Sabe-se que, psicologicamente, ao menos, ocorre uma simbiose entre mãe e criança, tanto que as primeiras impressões que uma criança recebe do mundo vêem através das sensações maternas, ainda no útero; e também que há uma simbiose física, já que o bebê alimenta-se através da mãe, e praticamente tudo o que influir na saúde da mãe influirá na saúde do feto.

Mas essa dependência é provisória. Após nascer, e principalmente após o desmame, a influência direta das sensações e da saúde da mãe tende a diminuir em relação à prole. Claro que através de variados mecanismos psicológicos, o humor materno pode ainda exercer uma influência poderosa nos filhos, algo como “sentir a dor/alegria” da mãe devido a afeição devotada a ela, etc. mas esta é uma possibilidade, e não uma condição válida necessariamente para todas as pessoas.

Também é válido o argumento de que é um outro organismo, outra pessoa que, apesar de intrinsecamente dependente do organismo e da pessoa da mãe, é claramente um ser em si mesmo, que deve a sobrevivência, e não a existência (a existência, claro, depende da sobrevivência, no caso dos seres humanos. Um corpo – desde o humano até uma pedra, por exemplo – existe, independentemente de estar vivo ou não. Mas para ser vivo, depende de determinados cuidados os quais exclusivamente a mãe pode dar antes do nascimento)à mãe. Ou seja, a existência do feto independe da vontade da mãe (mesmo que a gravidez tenha sido planejada, o embrião está lá porque existem determinadas condições como um útero, hormônios, etc. Tanto que uma gravidez pode ser indesejada também), mas a sua sobrevivência depende exclusivamente da vontade dela. Depois de fecundado o óvulo, nada do que a mãe faça impede que ele exista. O que ela pode fazer sim é não proporcionar condições para que ele se desenvolva.

Já a argumentação favorável ao aborto é a de que, mesmo sendo relativamente independente da mãe, estando dentro do corpo dela o feto submete-se à competência da mãe de decidir se quer ele ali ou não. Apesar de esse argumento assumir uma conotação um tanto cruel (e não é), é perfeitamente válido, pois o feto está ocupando a única lugar com a qual uma pessoa tem direito de fazer o que bem entender sem prestar contas a ninguém: o próprio corpo.

Mesmo que seja errado o uso de drogas, por exemplo, o máximo que se pode fazer para coibi-lo é criminalizá-lo, e tentar convencer quem as usa que isso é um atentado ao próprio corpo. Mas não há como proibir efetivamente alguém de ingerir qualquer substância: tanto é que o uso de drogas ainda é uma dor de cabeça para a sociedade preocupada com as pessoas viciadas; e mesmo assim discute-se a proibição de seu uso, desde que a pessoa que usa não cause mal a outras pessoas por isso. Em outras palavras, de 99 pessoas concordarem que bater com a cabeça na parede é uma atitude má, e uma acreditar que não, a última tem todo direito de bater com a cabeça na parede, desde que bata a sua, e não a de uma das 99 pessoas que querem manter sua cabeça intacta. Por mais que as 99 pessoas apiedem-se da infeliz que bate com a cabeça na parede (e isso chama-se compaixão, um dos valores mais belos que existem), não podem impedi-la de fazer o que quiser com usa cabeça ou com o resto do corpo. Claro que na prática, sabemos que muitas vezes precisamos impedir que determinadas pessoas tomem determinadas atitudes com seus corpos (uma criança correndo com uma colher na boca, por exemplo, é um perigo apenas a si mesma, mas ninguém em sã consciência poderá repreender os pais que forem impedi-la de dispor de seu corpo para correr com uma colher na boca; ou uma pessoa mentalmente desequilibrada que queira atirar-se do décimo andar de um prédio apenas por curiosidade, por exemplo, não poderá defender-se dizendo que pode fazer o que quiser com o corpo dela. Até pode, mas doeria demais nas outras pessoas).

Mas, no caso do aborto, estamos falando de pessoas mentalmente sãs, com clara consciência do que fazem: não querem carregar uma criança dentro de si. E como negar esse direito a alguém?

A gravidez é o único caso em que uma pessoa – mais especificamente, uma mulher – pode ver-se incumbida de uma responsabilidade que não pediu para ter, muitas vezes imposta, a responsabilidade, à força (em caso de estupro).

Não é o mesmo caso de um assassinato, onde uma pessoa mata por um motivo que não seja a defesa da própria vida, e onde a vida da pessoa “que incomoda” não está intimamente ligada à existência física da pessoa “incomodada” (ou seja, a não ser em defesa da própria vida, sempre existe outra solução para a resolução de um problema entre duas pessoas, claro que considerando-se que ambas as pessoas cedam um pouco).

Mas aí entram duas questões, novamente contrárias ao aborto: as leis divinas e a humanidade do feto.

Quanto à humanidade do feto, apenas por motivos de “compaixão pela própria espécie” podemos defender, com certeza, sua humanidade, pois seria cruel afirmar que uma criança, antes de nascer, não está muito longe de um animal, e nem muito correto, pois se sabe que muitos do mecanismos psicológicos que acompanham o ser humano iniciam-se antes do nascimento, o que também pode ser rebatido com o argumento de que os animais também têm determinados mecanismos psicológicos (tanto uma pessoa quanto um cachorro, criados com violência, provavelmente serão violentos quando grandes, por exemplo). A questão é que uma criança ainda não tem consciência de si, o que é um ponto para quem defende o aborto; mas apesar dessa falta de consciência, é “uma de nós”, faz parte desse grupo que chamamos de humanidade, e gera compaixão por seus semelhantes, o que é um ponto para quem opõe-se ao aborto.

Quanto às leis divinas, elas são válidas para quem crê nelas. Não afirmando que foram produzidas pela cultura, elas no entanto fazem parte da cultura de uma pessoa ou de um grupo, e, claro, tem de ser seguidas por estas, sob pena de exclusão do grupo ou problemas de consciência. Mas, mesmo dentro de um mesmo povo, existem culturas diferentes: para algumas pessoas, é errado não ir à missa aos Domingos (usando a igreja Católica como exemplo); para outras, perder uma hora de um Domingo dentro de um templo é inadmissível. E não se pode afirmar que umas ou outras estejam certas ou erradas: católicos e cristãos em geral submetem-se a essa lei, por acreditarem que ela faz bem, e outras pessoas, cuja religião não obrigue a nenhuma participação em nada em determinado dia da semana, não têm porque seguir preceitos nos quais não crêem. E nem uma nem outra concepção prejudica a outra: vai quem quer, fica quem tiver vontade. Ou seja, transportando-se essa visão para o caso do aborto: uma cristã, caso sua igreja não permita o aborto, não irá abortar, e se o fizer, terá de se entender com sua consciência e com seu pastor e com seu deus.

Ambos os lados têm bons argumentos: liberdade de um lado, compaixão de outro – o que não significa que quem defenda a liberdade não tenha compaixão, e nem que quem defenda a compaixão despreze a liberdade: quem defende a liberdade, sabe que a compaixão é um sentimento, que pode ser reduzido por outros sentimentos, como o terror de um estupro ou o sentimento de propriedade sobre o próprio corpo, e quem defende a compaixão sabe que tem liberdade e não se opõe a ela, apenas decide limitá-la por preceitos de um grupo nos quais acredita, o que é um direito incensurável, pois faz parte também do uso da liberdade a qual qualquer pessoa tem direito (as igrejas cristãs e outras religiões também argumentam que a liberdade sempre deve estar sujeita a deus, mas isso não obriga pessoas que não pertençam a essas religiões, ou que queiram simplesmente fugir a essa sujeição, sigam esses preceitos. No caso de algum praticante desrespeitar esse preceito de sujeição, o máximo que pode ser feito é a expulsão da pessoa, mas nunca a imposição de uma atitude a ela. Um bom contra-argumento a essa liberdade de “não-sujeição” seria o de que, então, os criminosos também teriam o direito de não sujeitarem-se às leis. Mas eles também são “temporariamente” expulsos da sociedade à qual insujeitaram-se e, de qualquer forma, a sociedade é um grupo baseado em um acordo entre pessoas, acordo esse baseado em termos universais, palpáveis, não revelados por algum ser diferente ou superior ao grupo, e sim tendo por fonte as próprias pessoas do grupo. Ou seja, a sociedade não é uma religião).

Outro argumento favorável a quem defende o aborto seria o da cultura machista em que vivemos.

A sociedade já não é mais tão castradora às mulheres como era há tempos atrás. Mas uma forma de pensamento não se termina por decreto: por mais que se saiba que mulheres e homens sejam capazes independentemente do sexo (não têm valor por seus cromossomos XX ou XY, e sim por serem pessoas humanas), é difícil acabar-se com a idéia de “bandos” diferentes formados por homens e por mulheres, tanto que ainda existem pessoas que argumentam que são mais importantes porque podem gerar crianças e povoar o mundo, e outras que defendem sua importância no fato de não terem seus movimentos limitados pela gravidez. Existem muitos argumentos desse tipo que homens e mulheres usam para defender seu gênero: mulheres são mais agregadoras e compreensivas; homens são mais objetivos e claros; etc. São ótimos temas para um filme ou uma piada (que, apesar de tudo, refletem o pensamento de uma sociedade), mas não são argumentos que possam ser levados a sério (mais uma vez, não são os cromossomos sexuais de uma pessoa que a tornam mais agregadora ou mais objetiva, e sim muitos outros fatores, incluindo-se aí a educação e a cultura).

Uma das características do machismo é a absolutização dos padrões: o padrão criado por homens serve de base para homens e mulheres. Tanto é assim que valores ditos femininos ainda são muitas vezes considerados negativos, como a necessidade de proteção ou a facilidade de emocionar-se. Claro que os padrões ditos masculinos não são masculinos, e sim humanos; e o machismo consiste em considerar apenas determinados padrões como corretos por serem presumivelmente masculinos (se não eram considerados femininos, era porque às mulheres era proibido agir de acordo com esses padrões, como no caso da capacidade para escolher os governantes, por exemplo). Mas todos os padrões de comportamento não pertencem a este ou aquele gênero: pertencem à humanidade.

Disto isso, muitas vezes percebe-se que as decisões são tomadas sempre pela ótica masculina, ou, ao menos, era sempre assim no passado. Sendo a sociedade atual mais igualitária, as decisões são tomadas de acordo com os padrões humanos, agora devidamente universalizados. Apenas um padrão pode ser considerado como próprio e exclusivo de um gênero: a maternidade. Ou melhor, todos os processos decorrentes da gravidez, desde os psicológicos até os físicos, incluindo-se aí os relacionados não diretamente com o ato de estar grávida (menstruação, TPM, etc).

Claro que homens podem perfeitamente colocar-se no lugar de uma gestante (muitos maridos/namorados/companheiros “engravidam” junto com as esposas/namoradas/companheiras), mas ainda assim falta a realidade do ato (um homem psicologicamente “grávido” pode fumar um cigarro na rua, longe da mulher grávida, cinco horas antes de encontrar-se com ela, que isso não vai causar efeito algum na criança), e nem o mais elaborado malabarismo psicológico pode ser tão completo quanto a simbiose psicológica entre a mãe e a criança (um homem pode viver exatamente o que uma mulher vive numa gravidez, de forma psicológica; mas falta a parte física da simbiose para que se possa dizer que um homem sentiu em mesmo gênero, número e grau o que a gestante venha a sentir).

Claro que isto não torna o assunto exclusivamente feminino, mas deveria tornar a decisão exclusivamente feminina.

O que acaba acontecendo é que, apesar de serem válidos tanto os argumentos favoráveis ao aborto (femininos e masculinos) quanto os argumentos contrários (femininos e masculinos), a decisão ainda parece ser masculina, já que as leis que o proíbem são inspiradas em conceitos religiosos, e, sem colocar o peso de crítica na seguinte afirmação, as religiões ainda são controladas por homens, por mais santos, inspirados ou apenas cumpridores de determinações divinas que sejam (o Papa, por exemplo, toma suas decisões baseado na inspiração do Espírito Santo; mas uma pessoa não-católica não tem a menor obrigação de seguir os preceitos da Santíssima Trindade ou de crer neles).

Que as mulheres contrárias ao aborto em qualquer situação tenham a criança em qualquer situação; que as mulheres favoráveis ao aborto em determinadas situações abortem apenas em determinadas situações; parece ser a saída mais justa.

O que não parece justo é que as leis que se aplicam a todas as pessoas dêem a impressão de serem parciais, seja tendendo para algum conceito religioso, seja tendendo para alguma decisão sexista.



Ps.: eu sei que escrever sobre esse assunto é como estar “pisando em ovos”, porque envolve sentimentos como maternidade e religiosidade, por exemplo, assim como conceitos como bom, mau, certo, errado, moral, liberdade, etc. A minha intenção não é ofender ninguém (mesmo que alguém encare a minha opinião como ofensa), mas só opinar e, quando se dá uma opinião, alguém, com certeza, não concorda com ela (com mais certeza quando se fala nesse assunto).

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