ESTÁGIO DE SER HUMANO
Quando a música tocou
Pela segunda vez,
Vinte e cinco anos depois,
Eu estava sentado na mesma
Ponta de mesa,
Sozinho e meditativo...
Vinte e cinco anos depois,
A mesma música e a mesma ponta de mesa:
“Penso che un sogno cosi non ritorni mai
più”.
À minha frente o aeromodelo às mãos,
As plantas, a cola, o papel, a ferramenta.
Sobre mim o sonho de vôos mais altos
A elástico, a motor planando
Sobre o ar puro de Araçatuba.
Na cabeça o pensamento distante,
Uma certa consciência da produção inútil,
Um pouco de desprezo ao vôo,
Uma falta de valor no sonho
E a busca por problemas reais.
Quando terei problemas reais?
Quando o valor será eu mesmo?
Quando precisarão de mim para a
Montagem da coisa humana precisar voar?
Na cabeça a fantasia de unir pedaços
Humanos para sonhos reais.
Disfarçada nas minhas mãos
Em cabeça-fuselagem, coração-nervura,
Emoção-estabilizador, consciência-asa,
Amor-motor, engenharia-humanidade.
Quando a música tocou pela primeira vez,
Vinte e cinco anos atrás,
Eu fazia meu estágio de ser humano
Nas peças de um aeromodelo
E ensaiava a reprodução da vida
Na mesa do meu laboratório.
Dezessete anos, e eu aprendia
Que não se mistura
A emoção com a cabeça,
O coração com a consciência
E que o amor é o que decola e
Faz voar o modelo e a única peça que
Pode funcionar errado em todo o mecanismo.
No exercício paciente da montagem
De cada nervura da asa e de sua
Colagem à fuselagem a exatos 90 graus,
A descoberta da função precisa
De cada parte e o primeiro alumbramento
Da integração emoção/consciência,
Cabeça/inteligência,
Coração/amor expressos no princípio
Do equilíbrio no ar de um
Objeto mais pesado que nossos
Pensamentos.
O exercício seguia um ritmo
Compassado: estudo da planta,
Análise das 290 peças, leitura das
Instruções, corte, polimento, colagem,
Montagem, pintura, devaneio.
O tempo fluía sem pressa, sem
Fome, sem sono, persistente.
Naqueles dias eu tinha um
Amigo cego a quem eu explicava
Cada passo, a forma, que ele
Examinava com as mãos, e as
Cores, que eu descrevia pelo valor
Da intensidade diferenciada do
Vermelho para o amarelo e o verde,
O branco...
Como era gozado ouvir o Lúcio
Falar ao final da descrição:
“Nem quero ver ele voar”.
Nascia em mim a gratidão por ter olhos
E ouvidos para aprender sua fantasia
Sozinha e meditativa...
Vinte e cinco anos depois,
A mesma música e a mesma ponta de mesa:
“Penso che un sogno cosi non ritorni
mai più”.
À minha frente o quebra-cabeça às mãos
Em algum lugar na capital de São Paulo.
O coração, a emoção, a consciência e
A inteligência e o amor são apenas 5
peças
Que não se integram neste exercício
De ritmo descompassado, sem planta,
Sem manual de instruções, sem pintura,
Sem cor, sem devaneio, sem fantasia,
Sem Lúcio, o que podia ver sem olhos e
Hoje é advogado de tribunal.
Meu motor deu defeito e com ele
Ficaram no chão meus sonhos de
Vôos mais altos.
O tempo flui com pressa, com fome,
Com sono, persistente.
Nesses tempos
Meus amigos vêem tudo
E não me contam nada
E eu já não acho um privilégio
Ser deles um assemelhado.
Restou entre nós essa ironia
Da evolução da tecnologia.
Nosso modelo hoje só tem 5 peças:
Coração, emoção e amor,
Inteligência e consciência,
Mas esse avião não vai voar.
Como era mesmo o nome daquela música?
Será que ela tocou pela segunda vez?
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