8 ou 80.
Meu amigo Nerval tinha a mania de classificar
amigos e conhecidos de duas maneiras:
ou era “legal”, ou era “filho da puta”.
Não tinha meio termo.
E o Nerval prometia:
“dia que eu morrer você vai saber o que é:
“legal ou filho da puta.”
Acontece que um dia, sem mais nem menos, o Nerval
morreu.
Moço (fizera 48 anos dois dias antes), simpaticão,
figura querida de todos, o velório encheu.
Muita coroa de flores, muita gente, muita lágrima.
Só depois de um tempo é que alguém reparou:
do lado do caixão, altura do rosto de Nerval, tinha
um monte de folhinhas de papel, com um potinho de
louça servindo de peso em cima, para não sair tudo
voando com o vento do ventilador.
“Olha”, disse uma moça, “no papel está teu nome:
Guto Sarraceno”.
Guto pegou o papelzinho, estava dobrado.
Enfiou no bolso da calça, foi para um canto e abriu:
“você é um filho da puta”, estava escrito.
Uma senhora chamada Sandra Vidal foi a próxima.
Pegou seu papelzinho, abriu e leu:
“você é legal”.
O próximo foi Durval Siqueira,que perdeu a pose
quando leu “você é um filho da puta”.
Dez minutos depois Nerval deixou de ser a atração
do dia, pois se formou uma pequena fila de gente
sussurante, todos atrás do papelzinho com seu nome.
Tudo foi muito respeitoso, e bastou alguém levantar
a voz para chamar “Silvana, vem cá, teu nome está
aqui”, para se ouvir vários “psssius”.
O montinho de papel diminuiu rapidamente, e logo
se formaram grupinhos, cada um querendo saber o
que estava escrito no papelzinho do outro.
Chegou a hora do enterro propriamente, o caixão foi
fechado e formou-se o pelotão dos carregadores.
Dentro de uma certa ordem, as primeiras alças
ficaram com os familiares mais próximos.
Faltando um oitavo braço, convocou-se Arnaldo
Mendes, o mais próximo no momento.
“Segura aí, Naldão”, disse o alça meia dúzia.
Que jura ter percebido a mão de Arnaldo amassando
um papel no bolso da calça, e ouvido ele resmungar,
ao sair da capela, algo como “não vou carregar filho
da puta nenhum”.
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