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cronicas-->Devagar, vagando entre vagabundos, num vagão de trem. -- 18/04/2005 - 19:14 (edson d assunção) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Dizem que eu sempre sou do contra e, é lógico, eu não posso concordar com uma idéia dessas. Mesmo por que, se concordo, deixo de ser do contra e aceito um equívoco, o que também não é nenhuma novidade, estamos sempre cercados de equívocos.
O certo é que eu tinha a sorte de viajar no contra fluxo. Ou seja, enquanto toda a cidade se dirigia da periferia para o centro em busca de seu ganha pão, eu fazia exatamente o contrário. Escolhia um assento à janela e seguia apreciando o frescor de um cochilo ritmado por uma segunda feira preguiçosa. Algumas vezes eu até sonhava.
Para atrapalhar o meu descanso, uma composição sentido Luz estacionava na linha ao lado carregando uma multidão de sardinhas. Colados contra a vidraça embaçada eles pareciam adesivos, pareciam sem ar, sem cor, sem corpo, pareciam paredes.
Aparece um aleijado gritando.
No contra-fluxo existem pedintes de tudo que é espécie. Mulheres grávidas com càncer, velhos beberrões, jovens desempregados, famílias famintas, músicos, imigrantes romenos, retardados mentais, cegos cantadores, e aleijados, como esse miserável que fazia seu discurso de apresentação.
Isso era de praxe, qualquer pedinte que se preze tem que expor um pouco de sua miséria antes de poder abocanhar alguns trocados. De certa forma, esse discurso é muitas vezes a última coisa que eles possuem. Mas não era esse o caso do nosso aleijado, ele tinha também um cotoco e isso fazia muita diferença.
Graças ao cotoco ele não se sentia tão miserável como deveria, afinal de contas era culpa do cotoco aquela muleta suada e fedida que a muito o acompanhava; era culpa do cotoco a improdutividade que não permitia que ele trabalhasse; e era culpa do cotoco também sua infelicidade com as mulheres, pois o cotoco era muito maior que o seu pinto e era sempre para ele que elas olhavam primeiro.
De forma que o cotoco, a doença, o desemprego, ou qualquer que seja a qualificação da desgraça apresentada, assume essa função importante de expor uma miséria, justificando a situação do pedinte e eximindo-o, assim, de qualquer culpa.
Já tive oportunidade de ver um miserável que não possui discurso de apresentação mendigando por esses vagões, é uma coisa deplorável. Como se sabe, o sujeito que não expõe sua miséria a corporifica, e o resultado é aquele olhar vazio, aquele cheiro podre, aquele arrastar de pés e mãos estendidas. Resultado: a repulsa é tanta que esses miseráveis recebem menos moedas que os miseráveis com discurso.
Quantas vezes me vi lamentar não ter cinco centavos diante da apresentação de uma miséria suculenta? Já perdi a conta, alguns chegavam a me arrancar lágrimas.
Mas o aleijado não tinha esse talento, ele falava tão mal quanto andava e vinha em minha direção com a mão estendida e balbuciando.
Do outro lado um contribuinte já idoso acenava ansioso em fazer sua caridade, ele gesticulava com a mesma intensidade que eu usaria para chamar um garçom e pedir uma gelada.
Encontro 25 centavos no bolso e compro um pouco da miséria do sujeito.
Sem qualquer expressão de agradecimento ele desfila o cotoco na minha frente. Aproveito e analiso a amputação para ver se fiz um bom investimento. Confesso que não gostei da mercadoria, já vi aleijões bem melhores.
O velho da cerveja também aplica algumas moedas no cotoco e logo solta um sorriso satisfeito.
Velho idiota! Se soubesse que a menos de uma semana eu havia investido cinquenta centavos numa perna com elefantíase ele não sorriria por tão pouco. Aliás, que elefantíase! Dava gosto de ver.
Nisso o aleijado já está trocando de vagão. Com seu joelho vazio ele faz um malabarismo para ultrapassar o vazio entre o trem e a plataforma, onde encontra um homem de olhos vazios que encara o tilintar do seu bolso semi vazio e declama: "segunda feira é dose!".
O cego era presidente do sindicato dos deficientes visuais. Só isso explicaria aquele discurso. Falava do papel do deficiente na sociedade, da necessidade de novos postos especiais de trabalho, falava de ong s, de cidadania. Enfim, o cego falava pelos cotovelos, gritava mais que um caminhão de pamonhas. Um sujeito assim devia ser cego da boca. Desculpe a ignorància, mas não eram nem dez da manhã e, de qualquer forma, uma gritaria dessas é inadmissível em qualquer horário. E o pior, imagine você que ele teve a ousadia de berrar a palavra democracia por uma ou duas vezes, um verdadeiro absurdo!
Logo o movimento do trem chama meu cochilo de volta, a voz do sindicalista ecoa em minha mente, meu pensamento cochicha ao meu ouvido e abro meus olhos à procura de uma imagem que confirme que o cego é ele e não eu.
A imagem se perde no ritmo da viagem e quando desperto novamente não vejo o cego, não ouço mais gritos, e não falo nada sobre o bilhete xerocado deixado em meu colo.

"Sou deficiente auditivo
trabalho vendendo adesivos
por apenas R$1,00
Aceito passe e tique alimentação"
Deus Abençoe!


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