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Contos-->Querida Mamãe -- 14/03/2008 - 00:40 (hans dammann) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Querida mamãe.

Eu não sei como a sua mãe fazia com você, mas a minha
sempre dizia para não brincar com fogo.
Ela vivia tirando fósforos da minha mão, falando para
ficar longe do fogão.

Quando eu fiz 16 anos, fui trabalhar como aprendiz de
açougueiro.
E uma vez cortei três dedos da mão.

Eu estava segurando a carne com uma mão, e com a outra
usei aquela machadinha para cortar um pedaço de osso.

É gozado que na hora você não entende nada.
Eu não cheguei a ver, mas senti que um dos dedos saiu
voando e bateu num ladrilho da parede.

Me lembro que a mão ficou sobre aquele cepo de madeira,
e faltava um bom pedaço do indicador, um pedaço maior
ainda do dedo médio, e um pedaço menor, praticamente
só da unha para cima, do dedo anular.

A faca pegou também no polegar, deixando o osso à mostra,
mas sem cortar nenhum pedaço.

Durante um milésimo de segundo não saiu nenhum sangue,
mas logo a mão ficou quente e parecia que todo o sangue do
corpo saía por aqueles restos de dedos.

O mais estranho é o estômago.

É como se ele nunca tivesse existido, e de repente a gente
lembra que ele existe porque fica tudo vazio lá dentro.

Lembro também que você não consegue controlar as pernas.
Elas ficam tão moles que não agüentam mais o seu corpo.

A mão, no começo, nem chega a doer muito.

É mais um ardido que se sente nas pontas cortadas, um
ardido que vai ficando cada vez mais forte.

Eu tinha comido sonho vienense e tomado café com leite, e o
gôsto de tudo isso junto veio na boca.

Acho que a comida e o café com leite saíram com muita força
da minha boca, caíram em cima da mão cortada, e depois não
me lembro de mais nada.

Você não imagina como depois de tudo isso as coisas mudam
na sua vida.

Primeiro vem uma dor muito forte naqueles dedos que não
existem mais.

Outra coisa é você olhar para sua mão e saber que agora você
você só tem três tocos.
E como a aparência é muito feia, você nem olha porque logo
vem na boca aquele gosto de sonho com café e leite.

A gente vai se acostumando, e antes mesmo de estar tudo
cicatrizado já dava para ficar olhando.

Com o tempo, o engraçado é que você não fica mais pensando
só na mão.

Eu fui dispensado do Exercito por causa dos tocos.

Aliás, a palavra toco é outra coisa com que você vai se
acostumando.

As pessoas falam toco daquele mesmo jeito que o médico
falava baixinho palavras como gangrena, amputar, infecção.

A primeira vez que achei graça depois do corte dos dedos
foi na rua, quando vi uma tabuleta de escola de datilografia.
Você pode achar estranho, mas só alguém que cortou os dedos
pode achar divertida uma placa dessas.

Outra vez que eu ri muito foi experimentando uma luva de
couro, e sobrava lugar para aqueles três dedos.

Lembro também que eu não gostei da cena de um filme, um
close de um homem colocando uma aliança no dedo da noiva.

Outra coisa que eu fazia era regra de três:
sessenta por cento dos dedos se foram, mas quarenta por cento
ainda estavam lá.

Sem contar que podia ter sido a mão direita.

E sem contar que o polegar, depois dos pontos ficou com uma
cicatriz que quase não se vê.

Foi gozado também quando vi um homem sem metade de uma
orelha.
Você fica pensando o que é pior, meia orelha ou três dedos.

Vi um homem sem pé, de muleta, e jurei que ele também deve
ter sido dispensado do serviço militar.

Em todas essas recordações da minha adolescência que vão
surgindo, a minha cabeça sempre mistura tudo quando vejo
minha mão no cavalete, saindo todo aquele sangue.

Nessa hora os dedos que foram cortados para sempre voltam
a doer.

Não sei o que acontece com o dedo indicador, nem com o
pedacinho do dedo anular.
Mas o pedaço grande que foi cortado, o dedo médio quase
inteiro, está comigo até hoje.

Está guardado na latinha de pastilhas Valda e às vezes fico
olhando para ele.

Quando falo dedo, é porque era, mas primeiro a carne foi
secando e cheirava muito mal, e no fim ficou só um osso
branco.

Eu gosto de abrir a latinha, olhar o osso, e lembrar que não
bato máquina, nem vou fazer o Exercito.


Mas lembro também que são só sessenta por cento, que podia
ter sido a outra mão, que o homem da meia orelha nem luva
pode usar, que o polegar ficou ótimo.

Outra alegria que a latinha me deu foi quando fui acender um
cigarro e minha mãe assoprou o fósforo.

Abri a latinha devagar, fez aquele vácuo quando a tampa
levantou e veio um cheiro muito forte.

Eu não sei o que a minha mãe comeu, mas aposto que o gosto
da comida veio todo na boca dela.

Hans Dammann
Este conto ganhou Menção Honrosa
no Primeiro Concurso Nacional de
Contos realizado pelo Unibanco.















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