Usina de Letras
Usina de Letras
133 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62220 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10363)

Erótico (13569)

Frases (50618)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140802)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->silêncio dágua -- 26/03/2008 - 09:19 (Gerusa Leal) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Silêncio dágua
Gerusa Leal

Um daqueles dias cinzentos, gelados, que não suportam idéia de flor. Àquela hora, a vida ainda não acordara.
Não havia para onde ir. Não precisava estar em canto nenhum. Por isso ali, parada, perdida no meio do nevoeiro. Sem vestígios do ontem nem vislumbres do amanhã, sem desejos. Apenas ali. Vigília.
Era de manhã, suspeitava. Atravessara a noite sem que nada acontecesse e agora, no meio da madrugada. Sem sustos nem ansiedades. Não tinha raiva ou tristeza. Nem pensamentos para que deles se ocupasse. De nada precisava. Sem passados a resgatar ou futuros a construir, boiava indiferente sobre os instantes que fluíam.
Se apurasse a vista um vulto, uma silhueta, mas para quê? Tudo tão o mesmo. O suspiro foi dissipando a neblina e já enxerga embora não desejasse. A paisagem, clareando, dava contornos. Ela voltava a ser. Não a primeira que a madrugada paria. Então já não podia mais não caminhar. Arrastando a si, assim, inventava um destino, uma missão.
Não contava com o sino da igreja tocando ao longe, chamando de volta para o meio do nevoeiro. Seguir caminhando? Se já estava onde queria? Mas ninguém se importava com isso, nem o padeiro à sua frente. Que coisa responder se o zumbido da mosca sobrevoando o pão doce faz mais sentido que aquele idioma humano, estranho, que mal compreendia?
- Um pão com manteiga, bem quentinho.
E se derramava sobre o pão, dourada, derretida, entranhando pelo miolo macio.

- Quer um café?
- Sim, quero.
Mas não queria. Nem o pão nem o café. Mesmo assim mergulhou naquele pretume perfumado, aquecida por dentro. Mastigava o pão, bebia o café, agora apenas café e pão.
Do sol batendo no rosto brotava uma outra. Doce, agradecida. Pelo quê? Quem saberia? Ela mesma, agora uma terceira que, se quisessem, era até de serventia. Cruzasse com algum conhecido, até puxava conversa não estivesse como estava, totalmente sem assunto. Mesmo assim ficaria a ouvir, sorrir, abanar a cabeça como se assunto houvesse ou lhe interessasse. Prestativa, disponível, até porque nada fazia sentido.
Parou e ficou olhando o homem seguindo pelo caminho desaparecer na curva.
Foi então que a manhã estremeceu. Tudo agora era concreto o sol, o sorriso, a flor. Tão concreto que doía. Lembrou de alguma coisa e o hoje emendou-se com o ontem e com o amanhã. Para que precisava de seja lá o que fosse? Não estava querendo nada. E o nada que desejava não saberia onde encontrar.
Tentou não pensar. Um luxo a que não podia mais se permitir.
Quem passasse a julgaria absorta, mas só olhava. Sem ver. Quando visse, aí sim seria obrigada a pensar. Pensou, irritada por perceber que já estava pensando. Riu-se, outra vez parte da paisagem.
Agora, já plena manhã, desejo no rosto em lufadas. Não ter que voltar para casa. Derrotada pelo dia, cansada pelo que ainda não fizera. Riu-se outra vez. À porta de casa lhe aguardava, todo sorrisos, o marido. Sendo assim, suspirou, deixou-se abraçar e preparou o café.
Só era difícil no começo. Logo esquecia de si e passava a representar ela própria com perfeição. Pelo meio-dia é que às vezes, o almoço pronto, a casa limpa, lembrava sobressaltada. Diante do espelho do banheiro esquecia-se outra vez.
Recostava-se aliviada para tomar um café e não ver a televisão que, vingativamente, falava sozinha, não lhe dava a menor bola. Desligou o aparelho, a inquietação só fez mudar de lugar. Por que não sentia o coração bater?
Levantou, foi para a cozinha. Sentada à mesa, os pratos sujos empilhados dentro da pia. Formavam um tal arranjo que não conseguia se resolver a lavá-los.
Um pardal entrou pela janela e bicou um grãozinho de feijão dentro do prato.
A água escorrendo da torneira, tão bela. No ralo da pia sumindo o brega da empregada da vizinha, os latidos do cachorro para quem passava na rua, os gritos da criançada chegando da escola, brigando para ver quem era o primeiro a pegar o brinquedo. Um silêncio dágua.
O tempo parecia um imenso espaço. Ela crescia, crescia, até conter tudo. Tudo ficava do lado de fora.
Cresceu tanto que suspirou outra vez. E murchou.
A água. Perdeu a conta das vezes que encheu a esponja de detergente, fez espuma e enxaguou. Mas a tarde se foi e os pratos continuaram na pia empilhados.
- Oi, querida, como foi seu dia?
- Ah, normal.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui