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Artigos-->O HOMEM DE 100 ANOS - HOMENAGEM À BAHIA -- 13/04/2001 - 01:11 (denison souza borges) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu tive o privilégio de viver 100 anos. Fechadinho. Sem um mês a mais. Nasci num dia e morri no mesmo dia 100 anos depois. Tenho muitas descobertas, frutos de minhas experiências, para adiantar aos jovens de todas as gerações, pois talvez não tenham a sorte de ter tanto tempo como eu tive para descobri-las e pode ser tarde demais.



De tudo que aprendi, apenas gostaria de destacar 5 Grandes Verdades da vida para vocês.



A primeira é que TUDO ACONTECE OU NÃO ACONTECE; não existe as possibilidades percentuais, como dizem. 10%, 25%, 2% ou 80% de possibilidade de ser ou não ser. Não existem essas coisas na vida. As coisas tem 50% apenas de possibilidade de acontecerem ou...não acontecerem.



Espero que esta e as outras verdades que direi ao decorrer deste relato ajudem à todos vocês nesta aventura que é a vida. Falarei um pouco de minha pessoa, para que melhor entendam o que é viver 100 anos. À medida que achar necessário, falarei sobre as outras Grandes Verdades.



Eu vivi meus 100 anos na cidade do Salvador, capital da Bahia. Lá nasci e morri. Em nenhuma outra cidade brasileira encontram-se registros tão profundos e abrangentes de uma cronologia histórica do patrimônio edificado urbano. Logo, o passado e o presente convivem num clima de luz e calor.

Casei 2 vezes e tive três filhos sob o céu desta cidade.

Os meus filhos são reflexos de meus desejos profissionais. Todos estudaram. Um se tornou jurisprudente, a moça se tornou odontóloga e o terceiro, na falta do que fazer, se tornou artista plástico. Mas todos foram algo na vida. Tenho orgulho deles, pois eu nunca fiz nada além de lecionar História. Um simples professor eu era.



Daí vem a segunda verdade. SE VOCÊ NÃO CONSEGUE ALGO MAIOR DO QUE TEM, É PORQUE A VONTADE NÃO É O BASTANTE. Basta audácia suficiente. Eu não quis o bastaste.



Eu nasci em 1763, quando a cidade estava em seu apogeu econômico. Era o século de ouro, do barroco e do rococó, da supremacia da Igreja Católica, do vice-reinado, da expulsão dos jesuítas e da mudança da capital para o Rio de Janeiro.

Na minha época de menino, a cidade do Salvador era o maior porto do Atlântico Sul e a segunda maior cidade do Império Lusitano - antes eram Lisboa e Goa. Freguesias foram criadas e a cidade extrapolou os limites da sua muralha e, consequentemente, da mancha matriz, evadindo-se para as colinas adjacentes ao norte, ao sul e ao leste do Rio da Vala, além do seu porto, da Preguiça à Jequitaia.

Morri 100 anos depois, em 1863, no século revolucionário e transformador. Revolucionário no campo das idéias e transformador do ponto de vista social. A cidade inportou costumes, produtos, mão-de-obra e idéias. As casas ficaram "modernas" e novos bairros surgiram. Eu me adaptava lentamente a todas as mudanças rápidas que me cercavam.

Nunca precisei sair de lá, pois lá tinha tudo. É daí que surge a terceira verdade. A MAIOR VIAGEM PODE SER AQUELA ATÉ A ESQUINA MAIS PRÓXIMA. Não precisava ir até a Europa e nem à América do Norte; eles vinham à mim, cedo ou tarde. Nunca aprendi coisas necessariamente em lugares distantes ou com pessoas de outras culturas, as aprendia sob reflexo de aprendizado em meu próprio povo, em minha própria cidade, reflexo do mundo. O mundo cabe em qualquer lugar.

E depois, tem a imaginação - esta, sim, a maior viagem - onde eu saboreava e sabia mais da Europa do que alguns amigos que para lá iam e não sabiam aproveitar o lugar, pois não possuiam a fantasia na alma.



Minha casa de infância era feita de barro moldado. Aliás isso era comum na época. Os primeiros edifícios públicos ou privados, religiosos ou profanos, de moradia ou de comércio, foram singelos, desprovidos de apuro arquitetônico. Eram produto do barro moldado, da taipa de mão e de pilão, do teto de palha, tão distante da monumental cantaria portuguesa, d além mar.

Quando moço, eu já era notável. Guardava aquela reserva que participava ao mesmo tempo do pudor e da dissimulação. Possuia maneiras distintas, ouvia as ponderações da gente madura e não era exaltado em política, coisa notável para um jovem. Possuia certos talentos, habilidade nas cartas, no xadrex, sabia ler a clave de sol e falar com eloquência. Minhas convicções filosóficas não me obstavam as admirações artísticas e o pensador que em mim havia não sufocava o homem sensível. Sabia estabelecer distinções, separar a imaginação do fanatismo. Quando não concordava com o conteúdo de uma obra de arte, admirava o estilo. Diante de uma bela obra - e a cidade é cheia delas - arrebatava-me. Cheio de objetivos, naturalmente, perante o convite desta cidade paradisíaca, acabei abandonando todas as boas resoluções que me propusera, por negligência. Casei-me com uma mulher de fortuna e descobri minha quarta verdade. O AMOR NÃO É PRIORIDADE NA VIDA. O homem deve perseguir a ponderação, o controle das suas emoções e a liberdade em primeiro lugar. Eu amei aquela mulher cegamente e vivi no conforto do seu lar, mas vi, em poucos meses, que é muito desconfortável ser rico através do dinheiro dos outros. Percebi o quanto era "rico" de liberdade e glória enquanto dependia só do meu dinheiro. A liberdade de um homem é prioridade acima de qualquer amor. O ser humano não sabe amar e ser livre, ter controle sobre suas idéias e ter ponderação nas decisões. Quem ama vive preso dentro de uma cadeia interior terrível, vítima de todo tipo de abuso por parte da pessoa amada, se não souber quais são suas prioridades.



Alegre noutros tempos, expansivo e flúido, tornara-me, ao envelhecer, devido às experiências terríveis da vida, uma pessoa rabujenta e mal-humorada - tal qual o vinho exposto que se torna vinagre. Mas a igreja me distraía. E a Bahia é cheia delas. Uma pequena Veneza bonita e miserável. As ordens religiosas instaladas na cidade, os jesuítas, beneditinos, carmelitas, franciscanos, a Santa Casa da Misericórdia e o Clero Secular construíam novas igrejas - cercando os habitantes por todos os lados para que não escapassem da doutrina - ou ampliavam suas igrejas primitivas. A igreja do Carmo, a do Colégio dos Jesuítas, a Igreja da Sé e o Convento de São Francisco são, igualmente, exemplos deste monumental acervo, onde a cantaria, local e portuguesa, arrematavam as caixas murais, nos seus contornos elaborados: portadas, cercaduras, cunhais, beirais, frisos, frontões, pináculos, soleiras, colunas ou mesmo as encilharias, tão comuns no vasto e erudito rol das edificações religiosas.



Eu morri no apogeu cerâmico. Mas vivi...e como vivi. Tentei não trabalhar, mas não deu. Tentei à todo custo ser padre, político, dono de padaria ou qualquer outra coisa que não me fizesse trabalhar. Porque trabalhar é chato e enjoado. Entristece. Como não tinha jeito, trabalhei, enrolando, mas trabalhei. Neste tempo invejava quem morava nos solares, antigas residências senhoriais. Estas construções, onde na Bahia tem muito, mostravam seu vigor no panorama urbano, tendo a "loja" no plano térreo e o pavimento nobre superior conectados por imponentes saguão e escadaria. Como era nobre...e até hoje pode-se perceber isso.

Sempre amei Salvador, cidade de arquitetura vernacular, distribuída em lotes estreitos, como a cidade de Praga, ao longo de becos e ladeiras.



Daí vem a última grande verdade. A VERDADE É UMA MENTIRA DITA MIL VEZES. Devido às minhas frustrações no amor, na carreira, devido ao meu medo de evoluir, de sair da cidade, de arriscar sempre algo à frente, resolvi racionalizar com pequenas "grandes verdades" que me consolaram a vida inteira, em 100 anos de covardia.



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Esta história é fictícia, mas ocorre na vida real a cada instante.

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