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Contos-->RE-MEMORANDO -- 28/03/2001 - 21:43 (Marcelina M. Morschel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A máscara se derrete, e o rosto, emoldurado pelo desencanto de um sorriso pesaroso, vai surgindo aos poucos. A boca abre-se devagar, deixando escorrer pelos lados a gosma da amargura. Face marcada por sulcos, erosão de traumas contidos. Dr. Henantoly força um semblante sorridente, mas é pior: os dentes amarelecidos pela nicotina, tímidos, aparecem por entre os lábios finos, próprios de temperamentos biliosos, e somem de imediato boca adentro. Estende-me a mão e com voz de comando ordena:

- Entre, sinta-se à vontade.

Dentro do escritório revela-se outra pessoa. Imponente, olha-me à distância. Tenho a exata impressão de que as palavras são esmolas, que ele, tão sovina, num ímpeto de caridade resolve oferecer. Elas rolam quais moedas da boca gosmarenta e caem defronte de minha insignificância. Sinto lampejos de lascívia naqueles olhos recobertos de menos, mais, multiplicação. Que vontade de ser uma vaca, pastar solta e, depois, ir ao matadouro...

Após inúmeras questões sobre minhas qualificações, dá uma voltinha na poltrona giratória e pontilha a esmo, com a lapiseira, uma folha de papel. Eu, ali, à procura de emprego, entrevistada como candidata a secretária. Estudos, pós-graduações, iriam resumir-se a ser uma boa digitadora, fazer redação de alguma correspondência, atender ao telefone, estar à disposição do chefe. Lembrei-me de noitadas de discussões sobre Kant, Hegel, Platão, Goethe, Tolstoi. Agora encontrava-me diante de quem move o mundo, o dinheiro. Olho o corpo hirto que balança, sorrio lembrando do Corcunda de Notre Dame e derramo minhas especialidades dentro daquele ouvido de concreto. Ele escuta, sacudindo paternalmente a cabeça. Depois de tudo comprovado, pesado e medido, a recompensa: oferta do salário. É o sistema. No dia seguinte sentar-me-ia na cadeira defronte à mesa, que ali ao lado, fincava os quatro pés no chão. Quem me dera ser uma vaquinha, com olhos grandes e morteiros a desfrutar de uma paisagem sem fim, morros, pasto verde, e mugir, mugir...

Defronte ao espelho dou os últimos retoques na maquilagem. É de manhã. Carregar nas cores seria ridículo. Abro o batom, passo-o acariciando os lábios, como se estivesse sendo beijada. Contemplo feliz o rosto refletido: até que não sou tão feia. Calço os sapatos, pego a bolsa, confiro os documentos.

- Décimo quarto andar , por favor.

Esgueiro-me por um amontoado de homens. O elevador sobe lento. Os olhos de todos estão fixos nos números que indicam os andares, mas o pensamento está longe. Silêncio. Ninguém conhece ninguém. Apenas o esforço de alguns abaixando a cabeça de leve, sinal de cumprimento. Mundo de mudos. Há um remexer, mais espaço: alguns já desceram. Sinto um corpo quente encostar no meu braço direito. Não posso ir mais à esquerda. Encolho-me, afinando, afinando... Um odor paira no ar. Quem estará usando esse desodorante? E aquela, toda requintada, que vem ao trabalho vestida quase a rigor? Nariz empinado, faz jazz com certeza, postura perfeita. Lembra o leque aberto de pavão. Produzida, exceto os dedos dos pés que são horríveis, ginástica nenhuma os modifica. Mas não há problema, ela não os vê no espelho. Deixa à mostra o contorno dos seios, arrogante e convidativa. Olha os homens com o canto dos olhos, estes não escondem o desejo de ser possuída. Na bolsa semi-aberta aparece, por descuido, um carnê. Deve ser da roupa que já passou da moda, usada e ainda por pagar. Petulante, sacode a cabeleira, esquecendo que os cabelos roçam os rostos vizinhos. É isto que deseja, incomodar para ser notada. Ao lado, um manequim engravatado. Bigode espesso, imitando alguém ilustre que viu no jornal do bairro ou diretor do clube. Ares de comando, deve ser chefe de alguma seção. Passa constantemente a mão esquerda no nariz para que todos vejam seu anel de formatura. Não sabe que esse costume já passou há muito. Nem os doutorados o usam. Incrível a incidência de obesos. Barrigas volumosas, retratando a forma da terra, parece status. E os homens hão de parir toda a avareza e luxúria que carregam no ventre. Enfim a sós com o ascensorista, uniformizado, com a ponta dos dedos calejados, em atitude servil. Desço no décimo quarto andar. Sala vazia e escura: interpretação de meus sentimentos. Dedo no interruptor e as lâmpadas fluorescentes, sempre escandalosas, espocam. Sento-me e aguardo.

- Vamos ao trabalho, diz-me Dr. Henantoly, digite o seguinte memorando: “Assunto: Disponibilidade de caixa. Conforme solicitação de V. Sas. ...”

Enquanto os dedos deslizam no teclado, minha mente passeia pelos prados verdes, ouve o mugir das vacas, o relinchar dos cavalos.
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