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Contos-->SONHOS -- 11/08/2008 - 20:00 (JOSÉ DAS NEVES NETTO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Não. Não fora um sonho. Sonhos ele já os tivera às centenas. Sonhos bons. Sonhos maus. Sonhos terríficos, que muito o impressionavam.
Nestes, o tema era sempre o mesmo: exorcismo. Atribuía-os à recordação de cenas vividas na infância, quando ainda freqüentava com a mãe a igreja adventista do sétimo dia.
Entre os membros havia uma novata, uma franzina “irmã de cor”, como a referiam. Possuída durante o culto, sua voz sumida se transformava na voz de um homem negro e forte e com aquele vozerio aterrador gritava ameaças e soltava terríveis gargalhadas.
O culto era interrompido e, enquanto a congregação cantava o hino “castelo forte é meu senhor”, o pastor e os anciãos se reuniam para exorcizá-la, num esforço que a ele, menino, parecia tão enorme quanto inútil, pois bastava chegar outro sábado para tudo recomeçar.
Já homem feito, firmemente adquiridas outras convicções, esses episódios voltavam a aterrorizá-lo durante noites mal dormidas. Atribuía o terrível realismo desses sonhos a efeitos colaterais dos benzodiazepínicos que sua saúde nervosa, afetada por seqüelas de um parto complicado, periodicamente o obrigava a usar. “São arquétipos profundamente enraizados no inconsciente coletivo” - explicava a psiquiatra, quando questionada sobre o fato de que terrores e mitos já inteiramente desacreditados por sua mente desperta conseguirem provocar tanto medo e mal estar durante os sonhos.
Mas desses sonhos não sonhava mais. A princípio, formou a convicção de que a evolução da farmacologia conseguira produzir drogas mais puras. Mas estava enganado. Descobriu-o lendo “As Portas da Percepção” de Aldous Huxley. Sua mente é que se purificara, depois de uma dezena de anos de prática regular e ininterrupta de meditação.
Agora não mais precisava de dosagem de medicamentos que o fizessem dormir um sono “chapado”. Embora não conseguisse explicar, sabia que a agitação e tremores que sofria após sonhos maus eram conseqüência do que vivenciava em suas experiências de não-sonhos. Antes de despertar, os mecanismos de proteção a que se referem Bergson e Jung apagavam a memória do que acabara de vivenciar e o seu ego ainda não era capaz de aceitar ou compreender. A agitação e o mal estar daí decorrentes provocavam em seqüência os sonhos maus. Acordava com a lembrança somente destes. O sistema autônomo em completa desordem, o coração acelerado, como se estivesse acabado de fazer os enormes esforços físicos que os sonhos maus costumavam representar. Agora era também passageiro o mal estar e não mais o fazia entrar em pânico. Aprendera nas lições de sua escola de filosofia e misticismo que nossos corpos denso e sutil, com suas respectivas visões objetiva e psíquica, demoram a se acostumar à mutua contemplação e que o sistema nervoso autônomo pode ser controlado com técnicas de respiração. E assim instruído e preparado, passou a ter lembrança dos não-sonhos e até mesmo a conseguir prolongá-los, repetindo mentalmente a intenção: “não vou ter medo... não vou ter medo...”.
E havia também os sonhos premonitórios. Na maioria das vezes sem qualquer significação maior, apenas percebidos quando situações e fatos os traziam de novo à memória. Felizmente, uma única premonição de tragédia. Ainda na cama, relatava à esposa que sonhara que seu irmão lhe telefonava do Mato Grosso, informando que havia morrido. Mal agüentara esperar que o dia amanhecesse para telefonar ao irmão, saber se tudo lhe ia bem. Mas agora, pensando bem, concluíra que não era seu irmão, era seu amigo C., pois a voz possuía aquele mesmo leve gaguejar característico. Expresso o sentimento, a memória se apagou.
Sem que nem de longe lhe passasse pela lembrança o sonho que tivera, assustou a esposa quando, três dias mais tarde, lhe telefonou do trabalho pedindo a ela que estivesse pronta para sair, pois ia buscá-la para irem juntos ao velório do amigo C. que, surpreendendo a todos, falecera durante a noite anterior.
Já experimentara também a suprema graça de um sonho resposta. Embora possuidor de uma aposentadoria que, como sempre dizia: “não era muito nem pouco - era simplesmente o que sempre tivera durante toda sua vida”, vivia agora atormentado por dificuldades comuns a todo pequeno empresário. Passou-lhe pela mente a idéia de encerrar a atividade, logo seguida de dolorosas considerações sobre o futuro dos que nela e dela obtinham seu sustento. Tentou o I Ching. As moedas rodaram em pé sobre a mesa e foram ao chão. O hexagrama obtido foi totalmente estranho e inconclusivo.
Decidiu fazer, após a meditação da noite e antes de adormecer, uma prece, pedindo que lhe fosse indicada a melhor solução e se afirmando disposto a ela se submeter, fosse qual fosse a resposta. E aí, na madrugada, depois de o corpo descansar e a mente se libertar das atribulações do dia anterior, o sonho veio, pleno de respostas e significações.
Sonhou que passava por uma rua sem pavimento. Havia ali, no quintal de uma casa humilde, três jabuticabeiras carregadas. Apanhou alguns frutos e os provou: eram amargos. Ato contínuo, surgiu à porta o dono da casa - uma figura desprezível. Após dizer um punhado de impropérios e acusá-lo do roubo das frutas, a figura afirmou que eliminaria as árvores. Ofendido, passou a lhe responder com palavras bíblicas que árvores não pertencem a quem as plantou. Uma vez formadas, elas passam a pertencer aos animais do campo, às aves dos céus que nela buscam alimento e abrigo, a todos quantos, meninos ou homens, apreciem seus frutos. Lembrou a maldição da figueira e também amaldiçoou aquelas árvores. Depois intimamente concluiu que mais efetivo seria retornar e furtivamente envenená-las com agrotóxicos.
Conhecia muito bem a diferença entre sonhos significativos e sonhos comuns. Os significativos eram exatos e precisos em todos os seus componentes e figurações, embora muitos destes detalhes somente pudessem ser reconhecidos oportunamente, pois continham elementos extra-temporais que a mente só é capaz de reconhecer na medida em que surjam em tempo real.
E o sonho resposta era simplesmente exato. Belo e significativo, assim como se o seu mestre interior, além de mestre fosse também um talentoso ficcionista.
Descobria-o na medida em que o analisava e emergiam na realidade os elementos que o compunham. As três jabuticabeiras simbolizavam os três flamboyants que ornamentavam a frente do imóvel de localização da empresa. Eram jabuticabeiras porque a atividade também possuía aspectos claramente sazonais, ora se desenvolvendo plenamente, ora se retraindo, ora produzindo muitos frutos, ora ficando estagnada, na madeira, como ficam as jabuticabeiras entre duas frutificações. Estavam carregadas porque - os pedidos recebidos nos dias seguintes o confirmariam - aproximava-se uma nova fase favorável. Os frutos provados eram amargos, como amarga sempre seria sua recompensa; amarga por envolver-se em atividades totalmente estranhas ao seu dharma, estranhas à sua vocação e aptidão. Finalmente a figura repulsiva representava o próprio sonhador, assumindo atitudes contrárias às suas convicções mais íntimas, ameaçando destruir árvores (ou a empresa) que, embora por ele plantadas (ou desenvolvida), já não mais lhe pertenciam, pois terceiras pessoas dela se serviam.
Mas este não fora um sonho. Não podia ser sonho. Não fora como sempre eram os sonhos que sonhava.
Não fora como o sonho-punição que o atormentara quando, após muitos dias ausentes, retornou ao lar e notou que algum de seus familiares havia danificado o verniz do tampo de sua escrivaninha. Irado, apanhou um martelo e desferiu vários golpes no móvel. A atitude impensada provocou profundo constrangimento entre os seus. Ainda muito irado, foi dormir. E o sonho veio. Sofrido. Muito sofrido. Acordou sentindo-se mal. A esposa conduziu-o ao cardiologista. Experiente, o médico examinou seu coração, deu-lhe um calmante e depois afirmou categoricamente: “Você não tem nada. Está perfeitamente bem. É puro susto e nervosismo. Volte amanhã. Nós precisamos conversar”.
No dia seguinte, o receituário foi um longo arrazoado em que o médico, assumindo sua porção sacerdote, lhe disse palavras inesquecíveis: “É pecaminoso querer ser perfeito. O propósito desta vida é tornarmo-nos melhores, não alcançarmos a perfeição; essa perfeição somente será alcançada ao longo de muitas, muitas vidas, em que errar e acertar fará parte do todo que se busca; daí a importância do auto-perdão. Tão ou mais importante que perdoar é também ser perdoado. Principalmente ser perdoado por si mesmo, tentando nunca mais repetir o mesmo erro para nunca mais também experimentar o mesmo sentimento de culpa”
Nesse sonho não-sonho, estava em companhia de várias outras pessoas. Comentavam conhecidas pérolas da música popular. “Também faço versos” - lhes disse. “Uns poucos, muito poucos, conseguem até me agradar. Outros, menos ainda, fogem de mim e saem por aí”. Chegou um estranho. Um senhor de compleição pequena, muito elegante em seu terno e gravata. Trazia consigo um violão. “Vim fazer uma homenagem ao nosso poeta” - falou apontando em direção a ele. Depois encontrou um apoio e, violão sobre a perna, extraiu de seu instrumento belíssimos acordes e começou a cantar. Todos se voltaram para ele. Ficou desconcertado. Comentou: “Vejam como é também encantado o mundo da arte. Você esgota toda sua capacidade criativa em busca do belo. Depois vem outro artista e acrescenta ao pouco que você fez mil vezes mais beleza... “Assim como ele os adorna, modula, interpreta, esses versos não são meus, não podem mais ser meus!”.
Caminhava agora de mãos dadas com a esposa, por entre antigos casarões de madeira, construídos de uma forma estranha, muito alongados e próximos um dos outros. Ouviram extasiante música interpretada ao vivo por um coral. Ela quis que fossem até o lugar de onde provinham aqueles sons. Procurou até encontrar um senhor idoso que andava por ali. “Mestre” - chamou-o. Depois lhe perguntou: “Podemos ouvir o coral?” “Ó sim, perfeitamente. Por gentileza, me acompanhem.” Conduziu-os por corredores e escadas até o interior de um vasto cômodo inteiramente vazio. Havia ali umas poucas pessoas que os cumprimentaram com amistoso gesto. “Mas..., mestre, onde está o coral?” “O coral está em nós!”. “Nós?” - perguntou-lhe entre surpreso e confuso. “Sim, está em nós”. “Mostre-me a sua voz” “Perdão, mestre, mas eu não sei cantar. Minha voz de baixo-profundo não se presta para nada” - argumentou. “Não tem importância. Basta que dê aquilo que tem”. Enquanto sustentava algumas notas, o mestre fez igual solicitação à sua esposa. Aí, e somente aí, ele percebeu como, juntas, eram belas e harmoniosas as vozes que ambos sempre possuíram. Ao juntar as outras vozes ali presentes, o mestre fez ouvir o mesmo coral que momentos antes tanto os encantara!”
Agora, sentado diante de uma mesa encostada à parede de madeira, de costas para o ambiente, calmo e tranqüilo, esperava. Percebeu que a luz ambiente aumentava sua intensidade progressivamente. Depois sentiu em seu cérebro, mil vezes ampliados, os sons interiores que experimentava em suas meditações, algo parecido com o som dos transformadores, dos enxames de abelhas, das linhas de transmissão de alta voltagem. A luz e os sons continuaram a aumentar sua intensidade. Agitou-se em desconforto. “O que está acontecendo?” - perguntou. “É o mestre Jesus se aproximando” - respondeu-lhe uma voz interior. “Perdão. Perdão” - clamou em desespero. “É muito forte para mim. Eu não consigo mais suportar!”
Caminhava agora por uma estrada longa e reta, acompanhado por duas pessoas que sentia amigas, mas não conseguia identificar. Uma tempestade se formava, mas ele continuava a caminhar tranqüilo e sereno. Ao contrário de seus acompanhantes, sabia o que iria acontecer ali. Um raio caiu, envolvendo-os num banho de luz intensa. Agora todo o cenário se modificara. A pessoa a quem dava sua mão direita era a esposa. Estavam todos deslumbrados com a beleza que contemplavam à sua volta. “Já estamos no céu e vocês nem perceberam a passagem, não foi mesmo?”
Sim, eles responderam afirmativamente.
- “Vocês também não percebem, mas aqui cada um de nós tem o seu próprio céu. E esse céu, esse paraíso, é exatamente como cada um de nós o imagina e vê!”
Sentiu que estava voltando. Reconheceu a rua onde morava, o telhado de sua casa. Depois viu seu próprio corpo, deitado de bruços. “É o seu corpo. Ele está bem. Não se assuste” - disse-lhe uma voz interior.
Despertou tranqüilo. A seu lado, a esposa ressonava suavemente. Ele ainda trazia em si aquelas belezas e encantos todos. Sentiu necessidade de contar a ela o que havia experimentado. Mas como dizer? Como descrever o paraíso de onde acabara de retornar? Como lhe fazer crer que as emoções que experimentara eram melhores de tudo quanto havia provado antes? Melhor até do que seguir vivendo?
Não. Não lhe contaria que havia sonhado um sonho. Não. Não fora um sonho. Talvez lhe contasse apenas que havia sonhado um conto.

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