O cepo da urucubaca
Pery Kitto, sentado no toco defronte ao bar, naquela tarde de sexta-feira, tendo ao lado uma garrafa de cerveja aberta, e um copo quase cheio, pousados no chão ao lado do pé direito, pensava na própria altura: 1,64m.
Ele deveria multiplicar aquele número por ele mesmo, dividindo então o resultado pelo peso. Kitto encontraria o índice da massa corpórea, que lhe garantiria não estar tão fora de forma.
O moço andava cismado porque Alcinda Stump, a morena magra e de cabelos negros, com quem se juntara, reclamava freqüentemente que não mais lhe suportava o peso.
Todos do quarteirão sabiam que Pery não trabalhava, vivendo com o dinheiro que o verdadeiro pai, de um dos filhos da Alcinda, dava-lhe, a título de pensão alimentícia.
Para justificar aquele tempo todo, que permanecia ocioso, Kitto atribuiu-se o título de babá responsável pelas crianças, que enchiam a casa de alegria e brincadeiras.
Diziam alguns observadores que Pery não era sandália, mas que gostava de se ver rodeado por borboletas.
Fazia parte do rol das tretas recreativas do Kitto aquela em que, dizendo-se portador de poderes mágicos, conversava com a foto de um vizinho, dirigindo a voz ao muro existente defronte o bar, garantindo às crianças, que faria cair uma chuva de tijolos na esquina.
Quando ele aplicava aquela conversa, quase sempre os infantes permaneciam atentos por algum tempo, mas como as promessas e expectativas não se cumpriam, eles perdiam o interesse, passando então a fazer algazarra na rua.
Ora, a função de babá do Pery não estava convencendo Alcinda e muito menos impedia o alvoroço das crianças, por isso a moça resolveu pressionar o amigo para que deixasse de ser tão sossegado e procurasse logo um emprego.
- Nem que seja para puxar uma carroça. Você sabe: hoje em dia as latinhas de cerveja dão um bom lucro. E o papelão então? Você ganha muito mais vendendo recicláveis do que como babá atordoado.
Naquela tarde em que a moça disse aquilo ao Pery, ele olhou para as folhas secas caídas defronte a porta do boteco, ao redor do toco e murmurou, com a voz pastosa de quem estava bêbado:
- Vai embora!
Então a mulher com aquela paciência, de quem já conhecia a figura, mais uma vez, tentou tirá-lo das garras botequinais afirmando ao proprietário, um dos que ganhavam com a desgraça alheia:
- Veja como está o pobre diabo. Já confunde banda de fuzileiros, com bunda de funileiro, assim não dá, assim não pode!
Sentado no cepo da urucubaca o cachaceiro balbuciou:
- Eu quero falar com o rei. Eu quero falar com o rei. Eu preciso falar com o rei.
Então, tomada por um espírito de compaixão Alcinda Stump perguntou:
- Que rei, meu filho, o rei momo?
- Que mané rei momo, é o Reinaldo! - respondeu o bêbado brabo.
Naquela tarde de sexta-feira, a jovem Stump levou para casa, mais uma vez, apoiado no seu ombro o desatinado, não sem antes queixar-se em voz alta:
- isso só pode ser coisa das tais do cais. Não é possível!
Ao caminhar trôpega pela calçada, suportando o peso excessivo, a mulher olhou para o chão onde viu a foto de um edifício, impressa em papel cuchê. No frontispício do prédio havia uma inscrição com as palavras que não lhe saíram mais da memória: Enquanto gira o mundo, a cruz está de pé.
Fernando Zocca.
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