Orlando é garçom num destes bares de esquina na Asa Sul em Brasília. Dizem que Brasília não tem esquinas, mas isto é conversa, manobra dos detratores da cidade, sem patriotismo e desconhecedores da verdadeira vida da cidade e blá blá blá, blá blá blá... Inveja. Mas a questão não é esta.
O fato é que Orlando se recusa ao trabalho nos almoços de domingo, justo um dos horários de maior movimento. Diz que já fez cinquenta anos e já serviu mais de dois milhões setecentos e vinte mil chopes - ele é louco por estatísticas - sem falar nas porções de frango, pastéis e croquetes, principalmente croquetes que já foram mais de três milhões quatrocentos mil e cinquenta e cinco. Segundo ele, após os cinquenta um homem só deve fazer o que quer. Ele fala com aquela entonação de caw boy em filme de bang bang.
- A man must do what has to be done...
Pois é. Nos domingos ao meio dia ele se dedica à própria consagração e pacientemente prepara sua entrada para o livro dos recordes. Isto não é de hoje, já são dois anos de trabalho meticuloso, todo domingo, com chuva ou sol ele está na sacada de seu apartamento no Guará, assando seu churrasco dominical para desespero e inveja dos vizinhos. Acontece que o cheiro do churrasco percorre quadras deixando o pessoal salivando sem poder apreciar. O resultado é uma certa inveja. Paciência.
No entanto, sua criação não está no churrasco propriamente dito, ou pelo menos não no conjunto. Na realidade seu objetivo é o recorde de corações de galinha assados em um só ano. Em dois mil e dois quando iniciou, foi só uma tentativa, um experimento, assou aproximadamente cento e quatro mil corações de galinha.
Logo viu que era pouco, mas que estava no caminho. O ganhador naquele ano foi um médico de Roraima que assou cinco vezes mais. O fato é que o médico, solitário no interior da selva e sem o que fazer ou com quem conversar, assava corações de galinha de segunda à sexta. No sábado ia para a cidade, vendia os corações assados e se abastecia para a nova empreitada semanal. Dizem que ele comia aproximadamente um terço da produção. Esta seria a única explicação para a crista vermelha que começava a aparecer na cabeça. Ainda não assustava ninguém, mas os poucos amigos, têm observado o crescimento com alguma preocupação. Notam também que no meio da conversa não é raro ele largar um cocoricó que procura disfarçar. Ele não fala sobre o tema, mesmo quando provocado. Os amigos não se preocupam com a crista, mas receiam a possibilidade dele vir a botar ovos. Acho improvável, mas nunca se sabe.
Em dois mil e três o vencedor foi um garçom jamaicano, grande alento para nosso Orlando, mais um prodígio nacional a defender nossa bandeira além mar.
Pois então, desde o início de dois mil e quatro Orlando vem testando uma nova técnica que, segundo ele fará dele o grande recordista ali mesmo em sua sacada no Guará. Ele se recusa a falar sobre ela, diz que além de dar azar, mesmo entre amigos pode ser copiada, prejudicando todo o seu esforço.
Enquanto espeta os corações vai refletindo sobre os problemas do mundo, resolvendo um a um e resmungando baixinho algo sobre o fato de que ninguém o consulta.
Fica ali imaginando o discurso que fará quando o entrevistarem sobre o recorde e aproveita a notoriedade para dar suas dicas.
Preciosas dicas sobre espetos de corações de galinha e a paz mundial.