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Cronicas-->Uma crónica -- 18/09/2005 - 13:09 (Janete Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma crónica*
Para José Francisco Concesso

As cidades também acreditam ser obra do espírito ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.

ítalo Calvino, As cidades invisíveis.


Não tendo as qualidades de uma biógrafa, os relatos sobre o amigo carecem de rigor e sistematicidade. Não há objetividade quando se trata do afeto, mas de impressões, pequenos lampejos que impregnam a alma de algum sentimento esparso, aspectos que suscitam em nós algumas incertas reflexões no exercício do convívio da amizade.

Sei por algumas narrativas suas, alguns casos que me conta, que viajou meio mundo. Nascido em Rio Espera, Minas Gerais, foi não sei como parar em Valença e Conservatória, no estado do Rio. Creio que lá tenha feito uma graduação. Viveu na Europa um tanto de tempo. Itália? Espanha? Conheceu alguns países, percorreu de carro, ónibus, trem, avião, incontáveis quilómetros Brasil afora, sempre mudando o itinerário a cada excursão, sempre alongando a leste e a oeste o trajeto, visitando um museu, uma igreja, um parente, um amigo, uma feira, uma nova cidade.

Há anos vive em Araguaína, situada no norte do Tocantins. Ocupou e ainda ocupa aí cargos socialmente relevantes: foi o primeiro diretor de um campus universitário, hoje atua como vice-diretor de uma faculdade recém inaugurada, é fundador e presidente de uma academia de Letras. Professor universitário, lecionou para um enorme contingente de alunos, sendo certamente conhecido por um número expressivo de moradores da região. Comprometeu-se de muitas formas com a vida e as pessoas do lugar. Um censo poderia atestar com precisão o número de afilhados.

Obviamente que há muitos elementos a ressaltar na sua trajetória de vida, mas escrevo provocada por um aspecto particular. Observando seu último livro, "Meu primeiro picolé", deparo-me com a foto que ilustra a capa. Lá se encontra uma imagem de sua terra natal. Esse homem, que percorreu tantas localidades e que disso se orgulha a cada novo projeto de viagem - ao mesmo tempo em que dá impressões de ter se impregnado indelevelmente da alma tocantinense, tão intimamente envolvido com a história do lugar em que ora vive -, ostenta orgulhoso um recorte da cidade mineira onde nasceu, de nome poético (e de onde viria esse nome?): Rio Espera.

Fico pensando nessa espécie de força misteriosa capaz de garantir a pessoas tão longe "de casa" a sensação de pertencimento a esse lugar de origem. Errantes, migrantes, ciganos, eis que o "em casa" ressurge como imagem que permanece, independente das aventuras da vida, dos sucessos e insucessos do caminho, dos naufrágios, desenganos, descobertas. Aconchego? Saudade?

Esses pensamentos me levam a alguns textos. Um deles, de Fernando Pessoa:

O Tejo é mais belo que o rio que corre
pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre
pela minha aldeia

Pessoa estabelece aí uma distinção entre o que pode ser objetivamente comprovado, cientificamente analisável, e o que denuncia o olhar amoroso, impregnando as coisas do mundo de sentidos, subjetividade, contaminando-as. Do Tejo passemos ao Araguaia. O rio Araguaia é majestoso, grandiloquente, maravilhoso. Num primeiro passeio, grávida, fiquei em estado de encantamento, o vento no rosto, mergulhando por meio de uma precária voadeira na paisagem desconhecida. O rio de minha terra tem características muito distintas, poluído e ameaçado, impróprio para banho e pesca. Mas é a visão dele que me comove quando retorno a Barra Mansa.

Drummond também remete a essa relação especial com a origem em ao menos dois de seus poemas. Um deles é "A ilusão do migrante". Para o poeta mineiro, é ilusória a pretensão de fugir a essa origem, a esse lugar de onde se imagina partir, deixar, esquecer:


Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo das falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado,
[enganoso.


Em tempos de globalização, as fronteiras entre os países parecem ceder sob a perspectiva de novas configurações políticas e culturais. Nessa lógica, não há espaço para a afirmação de identidades nacionais ou particularidades regionais. Lembrando Marx, tudo que é sólido parece se desmanchar no ar, ao menos por força dos discursos que prescrevem uma nova ordem. Alheio a tanta movimentação e desembaraço, um dado coração ainda bate em compasso anacrónico. Teimosamente guarda lembranças de casa, trazendo um jeito de ser e viver constituído antes e que, por alguma razão, talvez tenha determinando as tantas escolhas e os rumos na vida.


Luiza Helena Oliveira da Silva,
Araguaína, 14 de setembro de 2005.

* Este texto é de autoria de Luíza Helena - professora de Semiótica do Texto/UFT,
com o qual homenageia o escritor e professor universitário José Francisco Concesso

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