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Artigos-->A OSTRA E O VENTO I: A INTERTEXTUALIDADE COM O CASO DOS DEZ -- 17/12/2002 - 02:42 (Marciano Lopes e Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A OSTRA E O VENTO I:

A intertextualidade com O caso dos dez negrinhos



Marciano Lopes*



Numa das mais famosas novelas policias de Agatha Christie, O caso dos dez negrinhos, quando os investigadores chegam na Ilha do Negro há dez cadáveres e um mistério: quem é o assassino se não havia mais ninguém na ilha e também não havia possibilidade de alguma pessoa dela ter fugido devido ao mal tempo?

Em busca de uma resolução do mistério, os investigadores reconstituem os fatos ocorridos na ilha através de alguns diários encontrados – o que permite, ao narrador, a elaboração da narrativa literária. Mas todos esses diários encerram no momento em que os autores encontram a morte, o que não permite a resolução do mistério... E assim terminaria a obra se a autora se contentasse exclusivamente com o prazer da criação, mas existe um público, do qual depende, que provavelmente não gostaria nem um pouco de um final aberto, sem a resolução dos crimes. Afinal, como ficaria a moral e a justiça, o exemplo de que o bem sempre prevalece? E a invencível curiosidade de saber a explicação de tão inusitada trama? Por outro lado, o criminoso-artista também não se satisfaz apenas com o prazer demiúrgico da criação. Como teria o reconhecimento público e a glória por elaborar uma obra-prima do crime se ficasse no anonimato? Para resolver tais problemas, o mistério é esclarecido, ao final, por um manuscrito encontrado em uma garrafa a boiar nas águas do mar. Nele, o criminoso explica o seu engenho. Salva-se dessa forma o gênio e o ego do maquiavélico personagem e – por que não? – da maquiavélica e genial Agatha Christie.

No filme A ostra e o vento, de Walter Lima Jr. (baseado no romance homônino de Moacir Lopes), a trama da narrativa é semelhante. Quando Daniel (Fernando Torres) e seus companheiros chegam na ilha, após um ano e meio de ausência, para levar mantimentos para o faroleiro José (Lima Duarte), sua filha Marcela (Leandra Leal) e o empregado Roberto (Floriano Peixoto), encontram dois cadáveres e uma ausência...

Alguns fatos que compõem a trama são recuperados pela memória de Daniel e, em alguns momentos, pela memória da personagem representada por Castrinho. A boneca, o cata-vento, o astrolábio e as ostras são objetos, assim como os diários, que evocam lembranças de fatos ocorridos e vivenciados por ambos. Mas a ação correspondente ao tempo compreendido nos misteriosos dezoito meses que Daniel e seus companheiros estiveram fora, no continente, é recuperada apenas pelo diário pessoal que José mantinha no livro de administração do Farol e pelo diário de Marcela, encontrado sobre a grama e entregue às mãos e ao olhar do vento e depois às mãos e ao olhar de Daniel... No entanto, os diários finalizam sem esclarecer todas as dúvidas sobre a situação encontrada e, diversamente do que ocorre na narrativa de Agatha Christie, não há no mar nenhuma garrafa com um manuscrito que possa tranqüilizar o espectador, que possa lhe salvar a paz e o amor pela justiça e pelas verdades claras e inquestionáveis. Aí reside a grande diferença entre ambas as narrativas, além, é claro, do fato de cada uma ser feita com linguagens diferentes, pois a obra da rainha do mistério é literatura e como tal tem a linguagem verbal como matéria prima; enquanto A ostra e o vento é cinema e por isso possui na imagem e no ritmo do seu movimento a matéria-prima principal.

Outra importante diferença entre ambas as obras diz respeito à trama e ao ponto de vista narrativo. Enquanto o livro de Agatha Christie possui um narrador onisciente, que centraliza a organização da narrativa dando-lhe uma coerência ao dispor os fatos de maneira linear, no filme os fatos surgem fragmentariamente, desordenados, como cacos, estilhaços de uma realidade que se espatifou sobre os rochedos e que é narrada a partir do cruzamento de diferentes pontos de vista, diferentes olhares e vozes que se sobrepõem e retiram, em vários momentos, a primazia do olhar onisciente da câmara (poucos são os momentos em que a montagem faz com que a câmera deixe claro ao espectador qual é a voz e o olhar responsáveis pela organização e seqüência das cenas).

No balanço dos olhares, os pontos de vistas dominantes são compartilhados pelo olhar onisciente da câmara narradora e pelas lembranças do velho Daniel, que faz a leitura dos diários e a partir deles tenta reconstituir o ocorrido. Mas não esqueçamos que cada diário – mesmo que “recriado” por ele – é antes de tudo expressão de um outro olhar, uma outra voz, um outro ser e, portanto, um outro ponto de vista. Dessa sobreposição decorre a incerteza quanto ao ponto de vista e à verdade dos fatos, mesmo porque todo texto é carregado de vazios, de lacunas cuja significação deve ser preenchida pelo leitor/espectador, o qual torna-se co-autor da obra ao usar a sua imaginação para lhe dar vida. Por tais motivos, a leitura que Daniel faz dos diários não é objetiva, não revela a “verdade”, não descreve os fatos tal qual ocorreram. À subjetividade de José e de Marcela soma-se a do espectador, decorrente da maneira como interpreta os textos e preenche os seus “brancos”.

Na medida em que o filme avança em direção ao final, a maioria das imagens que a câmera registra só encontra justificativa na imaginação de Daniel, nas inferências que realiza a partir da maneira como interpreta os textos, preenche os vazios, articula os fragmentos e confronta os pontos de vistas. Desta teia de dúvidas e olhares resulta a impossibilidade de respondermos a todos os enigmas: Quem matou quem? Que fim levou a pessoa desaparecida? Quem era Saulo? Era realmente o vento, ou esta idéia é fruto de inferências que Daniel fez a partir da leitura do diário de Marcela? E o vidro do farol, será mesmo que foi quebrado por uma gaivota? E se não foi, foi por quem, quando e por quê?

Todas essas questões geram a necessidade de exercitarmos a imaginação e acrescentarmos mais um olhar e um ponto de vista na complexa e emaranhada trama narrativa de A ostra e o vento. E ao espectador exigente, que não se satisfaz somente com o nível anedótico da narrativa, a dimensão metalingüística do filme propõem inevitavelmente uma reflexão sobre alguns temas pertinentes à linguagem. Entre eles surgem, aliados à problemática da representação e do realismo, os temas da necessidade da arte e da literatura como meios de construção da identidade e de evasão ou transcendência através do sonho e da fantasia compensadoras da solidão.

Sem dúvida, A ostra e o vento é um filme que dialoga com a narrativa de mistério oriunda do romantismo literário (romantismo que também é recuperado em diversos temas e motivos), mas transcende o gênero criado por Edgar Allan Poe e consagrado por Agatha Christie e Conan Doyle na medida em que também dialoga com outros gêneros e estilos de narrativa (tais como a erótica, a confessional, a dramática e a psicológica). E ao contemplar a profundidade psicológica de Marcela, brilhantemente interpretada (assim como os demais personagens), a obra de Walter Lima Jr. incorpora as dimensões simbólica e metalingüística, construindo um filme pleno de poesia e consciência crítica.





* Marciano Lopes e Silva é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária na UEM e também é poeta, já tendo publicado um livro individual (Torpor. São Paulo, Editora Arte & Ciência, 1998) e participado de três antologias (Concurso DCE 15 anos de contos e poesias. Rio Grande, Editora da FURG, 1987; e duas edições do livro Poetas da UEM, Maringá, ADUEM, 1998, 2001).
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