Mapas Mentais
Pegue um desses mapas rodoviários do Brasil, tipo Quatro Rodas, um compasso com uma abertura de uns quatro dedos. Ponha a ponta seca sobre a cidade de Montes Claros, no norte de Minas, e trace um semi circulo a leste. O traço resultante, que cobre uma parte, talvez equivalente a 5% do território nacional, vai tangenciar praticamente todas as cidades de origem dos que, em minha modesta opinião, mais contribuíram para ajudar a pensar e sentir o Brasil profundo, o Brasil real, aquele existente fora do imaginário produzido pelos programas de TV, onde falsas fadinhas louras, e seu séqüito, transformaram o país numa MIAMI de desfile de escola de samba. Esse é o país onde vive uma pequena burguesia que transita de carro entre condomínios mais ou menos luxuosos, shopping centers e colégios particulares, e que ao chegar em casa vêem programa de TV estrangeiros, fazendo com que se sintam num enclave mental fantasioso, patético...e doloroso em sua alienação e precariedade. Mas não embaralhemos o foco dessas maltraçadas.
O assunto são esses músicos, cineastas, escritores e poetas que surgiram nessa planície semi desértica, banhada por um sol insurgente e recoberta por um azul ultrajante de vasto e ostensivo. Na própria ponta metálica do compasso, em Montes Claros e Bocaiúva, pertinho, pode-se achar o berço de Darcy Ribeiro, Carlos Alberto Prates Correia, menos conhecido, - injustamente, destaque-se - mas não menos importante, Henfil e Betinho... Da ponta inferior do semicírculo traçado podemos ir anotando a Cordisburgo de João Guimarães Rosa, a Diamantina de JK e Fernando Brant, a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, a Caratinga de Ziraldo. Na ponta superior, na Bahia, começamos pela Vitória da Conquista de Glauber Rocha e Elomar, entre outros, e se for permitido um alcance maior do arco podemos juntar a Itabuna de Jorge Amado.
Mas desses todos quero falar apenas de dois dos três que permanecem vivos (que se conservem nesse estado por muito e muito tempo) mas de quem pouco ou nada se ouve falar, por conta dessa espantosa tendência nacional de ignorar o valor dos melhores dos seus, até que se organize um festival ou mostra do seu trabalho ... em Paris.
O que Fellini fez pela Itália e em especial por sua Rimini natal, com o resgate de personagens vividos cheios de cor local, com seus dramas e comedias que ajudaram a definir e colorir a identidade nacional peninsular, Carlos Alberto Prates Correia fez por Montes Claros. Diretor de preciosas fantasias filmadas onde o regional dialoga com o universal, como em Perdida, Cabaret Mineiro, Minas Texas e Noites do Sertão, é capaz de extrair de um povo arquetípico todo o sentido de uma época pré cultura de massas em que a vida se exprimia de modo mais franco, mais verdadeiro e espontâneo. Seus personagens e situações são sínteses absolutamente magistrais de um povo real que se identifica como sendo o habitante de um tempo e lugar definidos, e não a caricatura farsesca de espécie humana reduzida a sua mera condição de consumidor, igualmente amorfa e homogeneizada em qualquer lugar do mundo da TV.
Em uma rara entrevista sua (CAPC) publicada há pouco se depreende a amargura justificada de quem sabe o que fez e o que poderia fazer, sendo preterido por filmes muito inferiores mas comerciais.
Na Vitória da Conquista de Glauber Rocha, Elomar Figueira de Mello, o menestrel da caatinga, é descendente direto da linhagem de D. Quixote , clarividente e lúcido, mas com a mesma determinação e estatura épica, desconfia e confronta essa modernidade redutora e vulgarizante que a tudo e todos avassalou nos últimos tempos. Como um profeta do velho testamento irrompe do fundo do sertão entoando maravilhosas canções de gesta, acompanhadas por um violão arrebatador e lancinante. Recuperando o falar, pensar e sentir sertanejos preservados da corrupção geral, e da língua em particular, mantida intacta pelo relativo isolamento de seus falantes, recupera também noções de integridade pessoal e fidelidade atemporal a um humanismo visceral e não descartável.
A ele devemos um tipo de recuperação do sentido de transcendência existencial através de uma musica maravilhosamente única.
Que tenhamos a sorte de ser contemporâneos desses e que a maioria os ignore é muito difícil de explicar e entender, mesmo levando em conta que temos sido governados por operadores de uma política e uma ideologia de total submissão as matrizes neocoloniais do capitalismo financeiro apátrida e predatório das culturas nacionais, que exportam junto com o capital, sua linguagem, estrutura mental e modo de vida, em tudo incompatíveis com nossa própria experiência existencial e inclinações naturais.
Quanto a origem regional comum de tantos e tão significativos criadores de uma cultura tipicamente nacional e popular, mantida milagrosamente viva a custa quase exclusivamente se seu gênio, seu esforço e altruísmo, tenho pra mim que tem tudo a ver com a topografia, a falta de melhor explicação... a planície infinita desse sertão e cerrado batido pelo sol e varrido pelo vento, onde o horizonte é tão vasto que a noção de liberdade e a clareza de visão não podem ser conspurcadas, garantem autonomia mental e a integridade da alma.
Quando aos dez anos de idade vi pela primeira vez uma cidade grande entranhou-se em meu espírito a duvida que nunca mais me deixou: como podem os habitantes de tais lugares manter sua sanidade mental se seu horizonte de visão não alcança mais que poucos metros, obstruído que é por paredes, muros e tapumes? Mais tarde, junto com o conhecimento de como eles vivem sua vida “cotidiaria” , veio a resposta óbvia: não podem.
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