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Contos-->A Mulher que Criava Anjos -- 14/04/2001 - 11:41 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ela criava anjos. Era quase que literalmente isso. Anjos de todos os tipos faziam parte de sua coleção, mas ela não guardava, não mantinha, não colecionava. Ela os criava. Até os alimentava com o que quer que ela ouvisse dizer que fosse o alimento. Com um conversava, para outro acendia velas, outro ainda recebia balas. Limpava as pequenas estátuas com o cuidado de quem banha um bebê. Enfim, ela os criava.
Uma vez, anos antes, tinha lido em uma revista a respeito dos anjos. Eles estavam em moda, havia dezenas de publicações sobre o assunto. Ela se interessou demais por criaturas que protegiam, ajudavam, amavam, sem pedir nada em troca. Tão diferentes dos humanos! Em especial os humanos com quem convivia. Mais em especial ainda, seu marido!
Ele sempre queria trocas, tudo tinha que ter retorno. Ela já tinha feito de tudo por aquele homem e nunca recebia de volta o que achava que merecia. Toda uma vida, desde a mais tenra idade, vivida em função dele. E ele não reconhecia isso. Não entendia que o preço de uma vida só pode ser outra vida. Se ela tinha vivido para ele, ele devia reconhecer isso e viver para ela. Somente para ela. Mas isso não acontecia. Ele vivia em função de um milhão de outras coisas e, caso sobrasse algum tempo, entregava um pouquinho para ela. Um pouquinho. Sempre um pouquinho.
No começo ela achou que aquilo mudaria. Afinal, ela era mulher e, por mais diferente que se imaginasse, não poderia deixar de pensar como mulher: "Esse homem tem coisas de que gosto e coisas de que não gosto. Por causa das que gosto, fico com ele. As que eu não gosto ele mudará com o tempo." Alguém poderia alertar que nada garantia essa mudança, que o mais provável é cada um ser como é e assim se manter. Ela sorriria modestamente, nada diria, mas no fundo teria a certeza de que por ela, por alguém tão especial, tudo mudaria.
Mas a vida pregou uma peça nela. Nada mudou, ou pelo menos, nada do que ela queria. O tempo foi passando, os filhos foram chegando, a vida se tornando mais complexa do que simplesmente ter ao lado alguém que se ama e aproveitar cada momento disso. Ela foi percebendo que não se pode namorar para sempre, foi sentindo que quando se quer viver um amor, só o amor tem que existir. Aluguel, conta de luz, escola, roupa a ser lavada, comida a ser feita, pratos sujos, cama desarrumada, barba por fazer, corpos engordando, juntas perdendo agilidade, tosse noturna, roncos, mau humor matinal, nada disso condiz com a imagem do amor. A imagem do amor é um casal bem arrumado, banho tomado, barba feita, cabelo escovado, perfumes, lugares gostosos, palavras românticas, sonhos, passeios, planos para o futuro. Mas quando o futuro chega, os planos se mostram reais demais, não se parecem com os filmes, não se parecem com os livros nem com as novelas de TV. Talvez ela não tivesse percebido que todas as histórias que leu e que assistiu acabavam no momento do casamento com a frase "e foram felizes para sempre". Nunca se mostrou Branca de Neve cuidando de três filhos ou o que aconteceria se Julieta e Romeu tivessem sobrevivido e vivessem sob o mesmo teto, sem necessidade de românticas lutas com espadas, de prantos em longas noites ou frases sob uma sacada.
Mas ela ainda acreditava que tudo aquilo era possível. Que o amor incondicional e imortal podia existir. Só que talvez não fosse com ele. Talvez não viesse dele. Mas o simples pensamento de abrir seu coração a alguém mais a enojava. Ela sentia que a única maneira de poder cobrar fidelidade ou se queixar da falta dela era sendo fiel até a morte. Só permitiria a entrada de mais alguém em sua vida se ele não existisse mais. E a idéia de não estar mais com ele era absurda para ela.
Amor. Amor incondicional. Amor sem trocas. Amor eterno. Um sonho. Mas um sonho do qual ela precisava. E os anjos lhe davam isso. Anjos amam e não perguntam. Anjos amam e não pedem nada. Ela lhes dava velas, balas, palavras carinhosas, mas porque queria. Não porque eles exigissem isso. Eles a amavam e pronto. Não que esse fosse o tipo de amor que a ela estava faltando. Ela precisava do amor de verdade, daquele que ela tinha lido, que tinha assistido, e se houve um amor assim na fantasia de alguém que escreveu a história, deveria existir de verdade em algum lugar. Escritores não inventam. Por mais que fantasiem, eles relatam.
Mas a visão dela, sobre o amor que era possível ter, estava para mudar. Nada fez com que ela procurasse mais alguém. Nem o começo terrível, quando ele pensava em outras pessoas com tanta vontade que chegava a chorar no colo dela a dor de antigos amores perdidos. Nem quando ela teve que abandonar seus sonhos de realização profissional cedo demais, para cuidar dele e dos filhos. Nem quando passaram por momentos difíceis, quando não havia onde morar, não havia o que comer, não havia porque sonhar. Nem quando se sentiu abandonada, noite após noite, pois ele trabalhava até tarde. Nem quando percebeu que mesmo quando o trabalho não ia até tarde, ele ficava fora mais tempo, com amigos, com amigas, com seu mundo, que era só dele e do qual ela não podia participar. Nem quando houve a suspeita de outra na vida dele. Mais de uma vez já houvera a suspeita. Mais de uma vez houvera até confirmações. Mas ele voltava. Ele sempre voltava. E se voltava, deveria haver um motivo. E ela mantinha como lema de sua vida uma distorção de um velho ditado: "Enquanto há volta, há esperança". E nada fazia com que procurasse mais nada. Não seria certo. Não seria digno. Não seria decente. Além disso, como ela poderia cobrar o sofrimento causado por ele, se fizesse as mesmas coisas? Só que isso ia mudar.
Ao passar em frente a uma loja de artigos esotéricos, viu um anjo que ela ainda não tinha. Era uma estatueta linda, toda branca, as asas abertas como se o anjo fosse iniciar seu vôo celestial. Os cabelos encaracolados caíam por sobre os ombros em um desenho suave. Eles deveriam ser louros, como são sempre os cabelos dos anjos, mas a estatueta não tinha cores e o branco dos cabelos fez com que ela pensasse em neve. Apesar de sempre ter vivido em São Paulo, ela inevitavelmente associava neve ao Natal. Mais uma conseqüência dos filmes, talvez. O rosto foi o que mais a impressionou. Era, ao mesmo tempo, angelical e másculo. Um homem, era o que parecia. Mas um homem prenhe de pureza! Ela precisava comprá-lo. Ela precisava tê-lo.
Já fazia algum tempo que alguma coisa não impressionava tanto a sua alma e seu coração. A última vez havia sido durante um curso de auto-ajuda que fizera. O homem que ministrava o curso não era jovem, não era bonito, mas era a coisa mais próxima de um anjo que ela havia conhecido. Era um homem bom, com sabedoria, com palavras que lhe aqueciam o coração ferido e lhe davam esperança. A sua vida, sua saga contada em um livro que ela leu de um só fôlego, sua paixão pelo mistério, tudo nele a encantou. Mas acima de tudo, o que a fascinava era que ele e a esposa trabalhavam juntos, estavam sempre juntos. Ao menos era o que parecia, pois sempre estavam ali quando o pessoal do curso chegava. Se a vida era comum e terrena depois que todos fossem embora, ela não precisava saber. E não queria pensar nisso. Na verdade, não queria nem mesmo pensar nele. Havia uma esposa! E isso era suficiente para torná-lo tabu. E o tabu o tornava alvo de algo muito maior do que um simples amor. Era uma semi-idolatria! Mas era um sentimento destinado a morrer tão logo terminasse o curso, já que ela não poderia mais fazer as únicas coisas que se permitia: vê-lo e ouvi-lo.
Mas o anjo ela poderia levar para casa. Entrou na pequena loja e procurou por alguém que a atendesse. Havia uma mulher atrás do balcão que parecia distraída com alguma coisa ao lado dela. Não havia mais ninguém, mas a mulher do balcão parecia conversar. Baixinho. Discretamente. Mas... com quem?
- Por favor, eu queria saber o preço daquele anjo da vitrine.
- Um momento, eu já vou ver... Qual é o anjo? - a vendedora se levantou e começou a se encaminhar para a vitrine. Mas, no meio do caminho parou, virou de lado e pareceu conversar de novo. - O que? Ah, sei.
- É aquele maior ali, ao lado da pirâmide de metal.
- Tem certeza? - a vendedora não parecia estar falando com ela.
- Claro que tenho. Por que essa pergunta?
- Não, não, me desculpe. - a vendedora parecia confusa. - Olha, moça, entre um pouquinho. Venha. Sente-se aqui.
Ela se sentou em um banquinho que a vendedora havia colocado perto do balcão e ficou olhando intrigada para o que acontecia. A mulher ficava com o olhar parado, como se estivesse ouvindo alguma coisa. De vez em quando acenava com a cabeça, concordando. Finalmente, falou:
- Moça, eu não sei quem é você e não tenho intenção de me meter na sua vida. Mas fui incumbida de lhe contar uma coisa e vou ter que contar. Isso nunca me aconteceu antes e se está acontecendo agora é porque deve ser importante.
- Me contar o que?
- Eu não sei se você acredita que seja possível, mas eu ouço vozes. Não sei de quem são, não vou dizer que sejam espíritos, anjos, demônios, sei lá. Não tem nada a ver com religiões. E não sou maluca, também. No começo achei que era, mas fiz tudo quanto é tipo de exame e estou bem.
- Sim, mas o que é que isso tem...
- Deixe eu lhe contar tudo, moça. - cortou a vendedora. - Há muitos anos que isso acontece comigo, mas as vozes só conversam. Falam comigo, eu respondo, às vezes elas me ajudam em algumas coisas com conselhos, opiniões, mas sempre foi só isso. Só que hoje, no momento em que você entrou aqui, eu ouvi, pela primeira vez, um pedido. A voz que eu ouvi me pediu que contasse tudo pra você e que lhe dissesse que ele vai esperar.
- Esperar? Ele? Mas... que conversa é essa?
Ela estava ficando assustada. A mulher realmente não parecia maluca, mas nunca se sabe. Além disso, vozes que dizem que vão esperar, em geral, significavam cenas horripilantes de filmes de terror, com fantasmas sangrentos de tempos passados vindo buscar suas prometidas e levando-as embora ainda que fossem aos pedaços. E ela não queria conversar sobre nada que envolvesse quadros assim. Se aquela vendedora queria cultivar seus demônios, que cultivasse. Ela criava anjos.
- Ele já te amou.
Ela estava se preparando para se levantar e ir embora, mas a frase fez com que ficasse mais um pouco.
-Amou muito, como nunca havia amado ninguém. Isso foi muito, diz ele, muito distante no tempo e no espaço. As vozes que eu ouço trazem resquícios de suas origens e essa voz me parece de um francês. Você também o amou.
- Mas, como? Eu nunca conheci nenhum francês.
- Não agora. Não pode se lembrar. As pessoas não se lembram de outros passados. Mas o amor de vocês foi um modelo, em outra época, até mesmo para alguns escritores românticos descreverem seus personagens. Foi um amor como nunca houve. Era para ser eterno. E vocês juraram que seria. Só que a vida, a morte, o tempo e os desígnios misteriosos do universo separaram vocês dois. Você está aqui. Ele não. Mas ele diz que vai esperar. Para sempre. Diz que você não precisa ter medo. Ele estará sempre por perto. Mas não veio buscar nada. Não veio levar nada. Só veio dizer que vai esperar. E que acredita que um dia, nem que seja no fim dos tempos, o destino vai permitir que estejam juntos no mesmo lugar.
Ela não sabia o que dizer. A história era insólita demais. Levantou-se, agradeceu e já ia saindo quando a mulher acenou novamente com a cabeça, como que concordando com alguém, tomou a dianteira, abriu a vitrine e pegou o anjo.
- Leve. É um presente. Por causa deste anjo você entrou aqui. Quem sabe o rosto dele não é parecido com o de alguém de quem você não consegue se lembrar?
Ela pegou o anjo, agradeceu num murmúrio e foi embora.
Em casa, colocou o anjo entre os outros e ficou o resto da tarde olhando para ele, cismando. E se fosse verdade? E se aquela história maluca da mulher da loja fosse real? Se tudo aquilo fosse mesmo possível? E se não fosse real, que diferença faria? Tinha sido a história de amor mais bonita que ela já tinha ouvido. Um amor acima de todas as coisas. Além da própria vida. E estava acontecendo com ela! Decididamente, tinha que ser verdade!
Dali em diante ela passou a se sentir mais segura, mais protegida. Afinal, a mulher dissera que ele estaria sempre por perto. Era inacreditável, mas era tudo o que ela queria. Tudo de que precisava. Uma figura etérea, como um anjo da guarda, sempre por perto, velando por ela, se preocupando com ela. Ao mesmo tempo, um homem, sentindo amor por ela, tendo saudade dela, jurando esperar eternamente por ela.
Começou a ver a presença dele em tudo o que acontecesse de inexplicável. Se uma porta batia sem que houvesse corrente de ar, ela achava que era ele quem tinha batido. Ruídos estranhos à noite, ela atribuía a uma tentativa de comunicação.
Como não se permitia a idéia do adultério em nenhum sentido, viu-se na obrigação de contar para o marido a história que tinha ouvido. E ambos passaram a conviver com a suposta presença de um francês entre eles. O marido, normalmente ciumento e desconfiado, neste caso abriu uma divertida exceção.
- Bom, namorado assim pode. Ele namora de longe e a parte boa é minha? Então, tudo bem.
Ambos riam, às vezes falavam com o francês como se ele estivesse na sala, mas sempre em tom de brincadeira. Ele, nunca levando muito a sério. Ela, sempre com uma esperança no coração de que fosse verdade.
A vida da família foi seguindo, ano após ano, altos e baixos financeiros, altos e baixos emocionais, ela às vezes achando que o marido se aproximava, às vezes supondo que ele estava prestes a ir embora. Ela chorava, ele sorria. Ele chorava, ela sofria. Mas ninguém ia embora. Por que ninguém ia embora?
Sons se repetiam, pequenas batidas em móveis, lâmpadas que se apagavam de modo inexplicável, sensações de sombras que passavam em corredores, tudo era atribuído ao francês, mas nada era assustador. A família comentava sobre "o namorado francês" dela, mas ninguém fazia isso com medo. Até que uma noite...
Uma noite o marido chegou tarde. Muito tarde. Dormir era o recurso que ela usava para não sentir a ausência. O vazio que uma saudade deixa não é notado quando se está sonhando. Saudade... Era inacreditável, mas ela sentia saudade do homem que morava na mesma casa que ela. Do homem a quem ela via todo dia. Sentia saudade. Saudade que, com o passar das horas foi virando tristeza. Quando o marido chegou, o que encontrou no quarto foi um retrato vivo da ansiedade e da desilusão. Ela não sabia mais o que fazer. Não sabia mais o que dizer. Ela nem sabia mais se queria fazer ou dizer qualquer coisa. Ele chegou alegre, tinha tido uma noite divertida, ainda estava no ritmo do mundo fora de sua casa. O rosto dela foi um balde de água fria na alegria boêmia dele. Sentou-se. Começaram a conversar. Da conversa passaram à discussão. Ela queria presença. Ele queria o mundo. Ela queria romance. Ele falava em trabalho. Ela queria o sonho. Ele queria a vida. Ela queria voar. Ele era só pés no chão. Ela chorou. Mais uma vez chorou. Sentiu-se sem forças, sentiu-se vazia, ali estava ele, voltando como sempre, mas ela preferia que não voltasse. Tornaria tudo mais fácil. Ficar sem ele talvez fosse o meio mais rápido de não sofrer por ele. Ela estava hesitando. Tinha que dizer. Tinha que tomar uma decisão em sua vida e ninguém iria tomar por ela. Respirou fundo, fechou os olhos para não ter que encará-lo, e se preparou para dizer:
- Quero que você vá embora!
Mas não teve tempo. De olhos fechados ainda, ouviu um som estranho que a fez abri-los rapidamente. Batidas. Batidas na madeira do guarda-roupa. Mas não como as que tinham ouvido por tantos anos, duas batidinhas leves, como se fosse alguém pedindo delicadamente para entrar. Eram batidas frenéticas, ininterruptas, ruidosas, assustadoras, como se alguém fosse invadir.
O marido se levantou, olhando para o guarda-roupa. Ela se encolheu na cama e, instintivamente, agarrou a estatueta do anjo-homem que ganhara. O marido colocou as duas mãos no peito, dobrou as pernas, caiu de joelhos e ficou olhando para o chão, ofegante.
- O que foi? O que você tem?
Ele não conseguia responder. Não conseguia respirar. Seu rosto foi ficando vermelho, seu corpo se contorcendo, agora estirado no chão, uma mão no peito e a outra se debatendo no ar como se ele estivesse tentando desesperadamente sair de águas profundas.
- O que é isso? O que está acontecendo?
As batidas na madeira ainda continuaram por uns segundos. Pararam. O marido caído no chão, agora os braços já nem se mexiam. Seu rosto começava a arroxear, sua expressão demonstrando claramente a surpresa e a agonia de estar sem ar. De tentar respirar e nada vir. A angústia de um coração querendo bater sem poder. Sem ter forças, como se estivesse sendo comprimido e impedido.
Ela pensou em gritar. Em acordar os vizinhos, em pedir ajuda. Mas a voz a impediu.
- Não se assuste. Você não precisa mais chorar.
Mais do que ouvir uma voz vinda do nada, o que mais a espantou foi o "r" arrastado. A voz tinha um sotaque. E parecia francês!
Curiosas são as leis naturais... As lágrimas eram tantas, que ela mal podia enxergar o marido. Mas as mesmas lágrimas criaram uma distorção tal que ela passou a enxergar o que não podia ser visto. E ela viu! Não conseguia ver detalhes, mas a forma que ali estava era semelhante à humana. Ao menos tinha braços e mãos e era só o que importava, pois aparentemente uma mão estava sobre o peito do marido.
- Meu Deus! É você! Você é de verdade!
- Claro que sou de verdade. E vou proteger você até nosso reencontro.
- Mas você está matando ele!
- Não. Ele está se matando. Ele também tem suas próprias angústias, suas dúvidas, seus medos, suas incertezas. Mas talvez não seja tão forte quanto você, então está se deixando ir. Eu só estou evitando que ele reaja. Se ele for, acaba seu sofrimento.
Por uma fração de segundo ela pensou. Talvez fosse verdade. Talvez se ele partisse assim, definitivamente, tudo estivesse resolvido. Talvez ela deixasse de sofrer. Mas a presença daquela criatura ali, fez com que percebesse. Talvez ela mesma tivesse partido definitivamente da vida dele de uma maneira trágica, em algum tempo. E ali estava ele. Aquele a quem ela chamava de seu anjo francês. Ali estava ele sofrendo além da vida, sofrendo eternamente uma ausência que talvez nunca mais fosse resolvida. Eternamente.
- Pare! Não faça isso. Deixe ele reagir!
- Pra que? Para a sua vida continuar o que era?
- Podemos fazer com que fique melhor.
- Ele te abandona. Eu te protejo.
- Ele me aquece.
- Nas poucas vezes em que está por perto.
- Tem estado mais vezes.
- Ele te engana.
- Eu tenho me deixado enganar.
- Ele tem vidas paralelas! Mundos paralelos!
- Mas uma dessas vidas e um desses mundos me pertencem.
- Você não tem certeza de ser amada!
- Mas tenho certeza de amar.
- A sua vida não vai mudar!
- Você não pode saber. Você pode ser meu anjo, mas não é Deus! Tire sua mão dele. Você não tem esse direito.
- O amor dá direitos! O amor permite tudo! Mais alguns segundos com minha mão nesse coração e ele não conseguirá mais bater. E então não terei mais que ver você sofrer.
- Tire a sua mão daí! Se é verdade que você me ama, se faz o que faz por amor, deixe que ele viva.
- Pra que?
- Pra mim!
- Nada dele é seu. Ele é seu próprio dono e não vai se deixar submeter.
- Não é verdade! Eu sei que não é!
A mão dela pousou sobre a imagem diáfana da mão sobre o coração do marido. E o toque daquela mão, de carne e osso, aquela mão tão marcada de lavar pratos e enxugar lágrimas teve um poder insuspeitado. O coração começou a reagir. Começou a bater cada vez mais e mais, com mais força, a freqüência se estabilizando. A mão fantasmagórica, ainda colocada sobre o peito do homem, não tinha mais nenhuma influência. A cor voltou ao rosto. Ele não recobrou os sentidos imediatamente, mas tinha voltado à vida. Ia ficar bem.
- Está vendo? Talvez você tenha razão. Talvez eu jamais consiga submeter esse homem em sua totalidade. Mas no coração dele, mando eu. Esse coração pertence a mim!
- Ele pode tornar a fazer da sua vida um inferno. Eu te prometo o céu.
- Mas eu estou na Terra. Tenho que viver no meio dos dois.
- Ainda vou te esperar.
- Não me espere. Talvez eu não vá.
- Mas... Eu sou o teu anjo!
Ela soltou a estatueta que caiu no chão e se partiu em pedaços.
- E ele é meu homem!
As lágrimas estavam desaparecendo. A imagem indefinida também estava indo embora. No fundo, ela sentiu uma ponta de dúvida. Sabia que ali tinha havido uma batalha e que o seu ideal de amor eterno havia perdido. Sabia que ele iria embora. E que ela estaria por sua própria conta com o marido e os filhos.
Mas a dúvida durou pouco. Colocar os pés no chão teve um saudável efeito sobre ela. A angústia deu lugar à força. A tristeza se foi e a vaga deixada foi ocupada pela esperança. A eterna sensação de derrota foi substituída por uma imensa vontade de lutar. E de vencer. Ela sabia, finalmente, que poderia vencer. Que poderia conseguir. Que poderia dirigir os rumos de sua vida e melhorar as coisas à sua volta. Ela era forte. E, afinal, do que não seria capaz uma mulher que criava anjos?
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