Usina de Letras
Usina de Letras
153 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62073 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50480)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Dez Segundos -- 14/04/2001 - 11:42 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Naqueles dez segundos Lívia se lembrou do pai. Fazia muito tempo que ela não pensava nele. Na verdade, foi o homem em quem ela menos pensou nos últimos cinco anos. Praticamente o único em quem não pensou. Curioso lembrar dele justamente naquele momento.
Depois que seu filho nascera, Lívia passou a viver uma vida que nunca imaginou ter. No começo ela achou que tinha sido uma loucura pós-gravidez, alguma reação ao fato de ter ficado tanto tempo fechada em casa. A gravidez não tinha sido fácil, ela precisou de cuidados especiais. Meses sem sair até o bebê nascer. Meses sem sair depois que o bebê nasceu. Quando voltou a sair, quando já havia condições de deixar a criança com alguém, Lívia sentiu um alívio como se tivesse estado enterrada viva e, no último instante, alguém houvesse aberto um enorme buraco por onde ela pôde escapar a tempo.
Naqueles dez segundos Carlinhos pensou que não devia ter matado aula para ir até aquele prédio. O edifício ficava a dois quarteirões da escola onde ele cursava o primeiro colegial. Ali funcionava uma emissora de rádio. Ele havia telefonado para lá. Participou de um concurso e ganhou um prêmio. Um boné, uma camiseta e um CD. Ele podia ter ido buscar seu prêmio em qualquer horário do dia seguinte, mas era um bom motivo para faltar à escola. E sempre que ele arranjava um bom motivo, ele o usava. Um dia antes ele tinha prometido a quatro colegas que iria um pouco mais cedo para ajudá-los com a matemática, eterna ameaça para estudantes em geral que Carlinhos dominava com facilidade. Ele devia ter ido.
Naqueles dez segundos, o doutor Olavo Souto, iminente advogado, imaginou que seu cliente, presidente de um conglomerado que controlava um razoável império da construção civil, talvez estivesse em maus lençóis, no dia seguinte. Haveria o julgamento de um processo onde seu cliente estava absolutamente inocente das acusações. O homem não era flor que se cheirasse, inocente naquela vez, culpado em tantas outras. Mas isso não importava. O importante era que naquele caso a atuação do doutor Olavo era importantíssima. Tanto para salvar o cliente, como para que se fizesse justiça. O presença dele era vital.
Naqueles dez segundos, o guru, vidente, astrólogo, cartomante e charlatão Raji Hamashik, nascido Paulo Roberto Santana, imaginou se não teria sido melhor se ele tivesse estudado psicologia. Muito estranho pensar numa coisa assim em um momento como aquele, mas passou pela sua cabeça que como psicólogo ele poderia opinar sobre as vidas das pessoas quase que da mesma maneira que fazia como místico, com a diferença de ter embasamento profissional para isso. Talvez não ganhasse tanto dinheiro como ganhava agora, mas estaria fazendo a coisa certa.
Lívia tinha brigado com o pai para se casar com o Cuca. Na verdade o nome dele era Dorival, mas poucos sabiam disso. Cuca era tecladista, a vida era difícil para um músico iniciante e o pai de Lívia achava um absurdo a filha ir morar com um sujeito assim. Sem profissão, era o que ele dizia.
- Ficar tocando música dia e noite é diversão, não é trabalho.
Carlinhos tinha sido uma criança difícil e estava se tornando um jovem impossível. A palavra de ordem de sua vida era "revolta". Contra o que quer que fosse. Fosse qual fosse o regulamento, ele tinha a necessidade imperiosa de transgredir. Muito engraçadinho quando se é bem pequeno e o regulamento é não dizer palavrões. Talvez uma demonstração de personalidade, quando se tem uns dez anos e o regulamento é almoçar, jantar, dormir e acordar em horários determinados. Mas começa a ficar perigoso, quando se é um jovem e o regulamento é, por exemplo, o não consumo de drogas!
Doutor Olavo tinha muito dinheiro. Começou a ganhá-lo de verdade quando começou a entender que ser um bom advogado não é necessariamente ser um advogado bom, quando começou a perceber que o conceito de justiça não tinha nada a ver com o que ele idealizou ao entrar para a Faculdade de Direito, quando percebeu que Justiça não era exatamente, como diziam os dicionários, "conformidade com o direito, a virtude de dar a cada um aquilo que é seu, a faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência". Na primeira vez em que se sentiu forçado a transformar a justiça em uma arma a serviço dos poderosos, um conjunto de regras que favorecem a quem paga mais, ele percebeu que essa nova maneira de ver as coisas poderia ser um passaporte para a fama e a fortuna. E daí em diante, não hesitou nunca mais em adequar leis e regulamentos em benefício de quem podia proporcionar a ele ascensão financeira e social.
Raji tinha ido à mesma emissora que Carlinhos. Mas não para pegar um pequeno prêmio por ter participado de um concurso. Raji tinha um programa de uma hora de duração, sucesso absoluto na cidade. Muitos telefonemas, muitas cartas, muitas consultas, gente querendo saber sobre negócios, saúde, cônjuges... E grandes patrocinadores por trás financiando o sucesso e a vida abastada de Paulo Roberto. Poucas vezes havia passado pela cabeça dele que as pessoas que o procuravam seguiam à risca o que ele dizia, na verdade um amontoado de palpites que poderiam ou não dar certo, como qualquer palpite de um amigo numa conversa de bar. Poucas vezes ele se lembrou de que, na verdade, não tinha a menor capacitação para resolver problemas alheios. Seu talento era meramente artístico. Sua habilitação era uma só: esperteza.
Lívia tinha voltado para o mundo, para a vida... E para os homens. Brigou com o pai, rompeu com a família por causa de um homem. Mas a vida com esse homem se tornou um mar de desilusões e tristezas. Cuca provou que tudo o que o pai dela dissera era verdade. Não por ser músico, mas sim por ser como era. O namorado boêmio, alegre, brincalhão, meio irresponsável, que topava tudo a qualquer instante, aquele namorado que a levava para todas as casas noturnas da cidade, que mostrou para ela o que era a vida na noite, que largava tudo para atender a um amigo, aquele Cuca era o homem mais fantástico e mais admirável que ela já havia namorado. Mas um marido assim não serve. Depois que ela engravidou e não pôde mais sair, ele continuou com sua vida. E ela não podia aceitar um marido como ele era. Agora ela queria um homem responsável, alguém que sustentasse realmente a casa, alguém que tivesse um horário de trabalho, que voltasse correndo para casa, ainda que algum amigo precisasse demais da presença dele. Para um namorado ela se fazia imprescindível, presente, aquiescente a todas as loucuras. Do marido ela exigia respeito. E Cuca não mudava. Quando ela voltou a sair de casa, não foi para ir atrás do Cuca. Foi para retomar sua vida. Uma vida que ela supunha que tivesse deixado para trás por causa dele. Ela queria retomar seu mundo. E seu mundo anterior, aquele que permitiu a entrada do Cuca, incluía exatamente isso: a entrada de novos homens. Dali em diante, Lívia não parou mais. A cada dois meses tinha um novo namorado, freqüentava novos lugares, voltava cada vez mais tarde para casa. E no fundo de sua alma, uma mágoa. Ela se entregava àquela vida que não queria mais e culpava o Cuca por isso. E a maior de todas as culpas do marido: obrigá-la a aceitar que o pai tinha razão. O casamento não dera certo.
Carlinhos já tinha experimentado a maconha, tinha achado fantástica a sensação e achava que se criasse coragem para dar um passo adiante, tentar coisas mais fortes, a coisa seria mais excitante ainda. Alguns amigos já tinham "apresentado" a coisa, como eles diziam. Ele evitou daquela vez. Mas foram tantas as críticas dos companheiros que acabou se decidindo. Na próxima, não pensaria duas vezes. Afinal, que mal poderia fazer algo que o deixaria tão bem, tão feliz? Era só um regulamento. Era só mais uma daquelas leis bobas, sem sentido, feitas para serem descumpridas. Todo e qualquer regulamento, na verdade, existia para isso: para ser burlado.
Doutor Olavo tinha ido tratar com seu cliente os detalhes do julgamento do dia seguinte. Não havia grandes dificuldades, desde que ele estivesse lá. Doutor Olavo já havia aprendido também que, além de não ter limites, um bom advogado deve se fazer necessário. O caso desse cliente não era dos mais difíceis, principalmente porque o homem era inocente. Mas o doutor Olavo não deixou que nada disso transparecesse na mídia. Até aconselhou seu cliente a não dar nenhum tipo de declaração. Alegou que era para proteção do cliente e do nome da empresa, mas a verdade é que assim só duas pessoas teriam certeza da inocência dele. O próprio cliente e o doutor Olavo. Quando tudo estivesse parecendo perdido, doutor Olavo surgiria como o grande salvador, poria tudo em pratos limpos e o cliente ficaria acreditando que sem ele a vida não seria possível.
Raji sabia que seu programa teria mais audiência de acordo com os escândalos provocados por ele. Por isso não tinha dúvidas ao dar para alguém uma fórmula mágica qualquer para resolver negócios ou ao dizer para uma esposa desconfiada que sim, seu marido tinha outra sim. Tinha como princípio que um negociante que procura ajuda esotérica já está tão mal que não irá atribuir a ele a sua ruína. E uma esposa procura cartomantes para saber se existem amantes quando já está desconfiada de alguma coisa. E se está desconfiada é porque viu alguma pista. E, afinal, que homem não tem amantes?
Lívia tinha ido ao décimo-sexto andar do prédio para se encontrar com o novo namorado, um economista que tinha um escritório ali e que havia dispensado sua secretária para ficar sozinho com ela e ter alguns momentos de loucura no sofá de sua sala com a doidinha que ele tinha conhecido duas noites antes.
Carlinhos estava saindo do décimo-quinto andar, onde funcionava a rádio à qual ele tinha ido para buscar seu prêmio, aparentemente mais valioso do que o seu futuro.
Doutor Olavo entrou no elevador no décimo-oitavo andar, a cobertura onde estava instalada a sede central de seu cliente.
Raji entrou junto com Carlinhos, após terminar seu programa.
No décimo-terceiro andar, o elevador parou. A porta não abriu. Doutor Olavo suspirou, se queixando internamente do pessoal de manutenção. Carlinhos apertou todos os botões pra ver se voltava a funcionar. Raji olhou para o relógio, pensando que aquilo talvez o atrasasse no compromisso que tinha com o novo patrocinador. Lívia gritou, pedindo que alguém abrisse a porta.
Um ruído forte. Algo se soltou. Ou se quebrou. Um balanço. Os quatro perderam o equilíbrio. Doutor Olavo se apoiou em Raji, os dois foram lançados para a parede do fundo. Carlinhos não conseguiu se apoiar e caiu no chão do elevador. Lívia sentiu-se fraca com o susto, dobrou os joelhos e ficou prostrada.
Novo ruído. Novo balanço. Som de atrito. A caixa do elevador raspando nas paredes do poço. Balançando de um lado para outro, desordenadamente, solta no espaço. A sensação de que o estômago subia em direção à garganta. Todos os órgãos subiam em direção à garganta. O elevador estava solto. Caindo! Em dez segundos estariam todos no chão.
Lívia pensou em seu pai. Em como gostaria de fazer as pazes. De retomar de verdade sua vida. De parar de se vingar.
Carlinhos pensou na escola. Se tivesse ido pra aula... Se tivesse feito as coisas direito... E os amigos que contavam com ele para ajudar com a matemática?
Doutor Olavo pensou no seu cliente. Se ele não estivesse no tribunal no dia seguinte, ninguém salvaria aquele homem cujo nome estava sendo destroçado pela mídia.
Raji pensou que se fosse um psicólogo e não um guru charlatão, talvez tivesse ajudado tanta gente! E não estaria sendo castigado. A mística inventada por ele já estava alojada em sua mente. Pecado e punição eram seus medos subconscientes constantes.
Em dez segundos não haveria mais homens.
Em dez segundos não haveria mais drogas.
Em dez segundos não haveria mais clientes poderosos e truques legais.
Em dez segundos não haveria mais escândalos e fortunas.
A queda era alucinante. Os gritos dos quatro ecoavam pelo poço do elevador. Os corpos eram jogados de um lado para o outro, chocavam-se contra as paredes, batiam uns nos outros, décimo andar, o som do elevador raspando na parede, o cabo chicoteando para todos os lados, oitavo andar, o espelho do fundo se partindo em pedaços, sexto andar, a velocidade aumentando, poucos segundos, tão poucos, quinto andar, um som mais alto, um ruído ensurdecedor, como uma explosão, um clarão fulgurante.
Nenhuma dor. Nenhum choque. Os quatro estavam abraçados, ainda gritando, quando perceberam que estavam bem. Não estavam mais caindo. Agora eles estavam... onde?
Olharam em volta, em silêncio. Nada. Tudo era completamente deserto. Uma leve bruma em torno deles, como uma neblina suave e refrescante. Estavam se sentindo bem. Estavam inteiros. Não havia nem ao menos desconforto. Mas estavam assustados.
- Que lugar é esse? - Carlinhos foi o primeiro a falar.
- O elevador... Nós... Nós morremos. Estamos em algum tipo de limbo. - Raji tentava achar explicações dentro do que estava habituado.
- Deixem de besteiras! - doutor Olavo era mais realista - Estamos inteiros. Corpos, roupas, relógios, o garoto está até com um CD na mão. Já viu morto levar CD pra ouvir durante a viagem?
- Então o que é isso? - Lívia estava muito confusa. - A gente estava caindo. A gente tinha que bater no chão e morrer. Como viemos parar aqui?
- E o que é aqui?
- Cada um de vocês pode chamar este lugar como bem entender! - a voz ecoou por toda parte e em lugar nenhum. Eles não conseguiram definir se vinha do alto, de baixo, de trás, ou de dentro de suas próprias cabeças. - Mas, se querem um nome único, que tal chamarem de Segunda Chance?
- Segunda chance? Segunda chance pra que?
- Há um consenso universal do que é bom. Do que é certo. Do que é direito. Não tem nenhuma ligação com as regras que são definidas a cada período da Humanidade. Cada tempo, cada povo, cada civilização tem seu Certo, seu Direito. O que em um século é transgressão, em outro é obrigação. O que para um povo é tradição, para outro é perdição. Mas há normas imutáveis. E por mais que cada criatura erre, uma das Leis é a da Segunda Chance.
- Eu já ouvi falar nisso... Dizem que a gente reencarna e...
- Nem sempre, Lívia... Nem sempre. - cortou a voz, de maneira imperiosa.
- Como sabem o seu nome, moça?
- Não é só o nome dela que é conhecido, Paulo Roberto.
- É Raji, por favor.
- Não... Raji é o nome do charlatão! Paulo Roberto é o homem dentro de você que sabe que como psicólogo poderia ajudar de verdade um número razoável de pessoas. Assim como você, Olavo, sabe dentro de você, que poderia ser um advogado melhor jogando mais limpo. Lívia sabe que seria mais fácil a vida sem suas loucuras de vingança contra um pai e um marido que podem ter participado de suas desventuras, mas não são os responsáveis por elas. E Carlinhos sentiu que futuro pode ter com a vida que tem levado, com os hábitos que tem cultivado. Ninguém é mau o tempo todo. Ninguém é bom sem esforço. Cabe a cada um decidir o que fazer de si mesmo. Há algo de muito bom em cada um de vocês. Provaram isso no último instante. Cada um pensou em outra coisa, em outra pessoa, em seus erros e acertos, um segundo antes de pensar "eu vou morrer". Demonstraram que há em vocês a capacidade do acerto. E não há falha maior do que a falha da criatura capaz. Um homem sem braços não pode ser culpado por não ajudar alguém a não cair de um penhasco. Mas um homem sadio que cruze seus braços e olhe para o outro lado, é um assassino. Segunda Chance não é um privilégio de uns poucos escolhidos. É um direito de todo ser humano. Cada um chega a este ponto por um caminho. E tem que decidir. Agora é com vocês.
Um estrondo, rangidos, gritos de homens e mulheres surgindo aos poucos, se tornando cada vez mais altos. A névoa sumiu e deu lugar a madeira quebrada, metal retorcido e cacos de vidro. As vozes foram se tornando claras. Policiais, bombeiros, curiosos em volta, um elevador quebrado no fundo do poço do prédio, os quatro sendo retirados. Vivos. Inteiros.
Lívia tinha apenas um corte nas costas, provocado por um caco do espelho. Saiu do local andando.
Doutor Olavo tinha quebrado uma perna. Saiu carregado, mas consciente. Foi levado diretamente para o hospital.
Na mesma ambulância que levou doutor Olavo, foi levado Raji, que tinha batido a cabeça, aberto o supercílio e estava um pouco tonto.
Só Carlinhos estava desacordado. Foi retirado por último e levado em outra ambulância. Nas mãos, o CD. A sacolinha com a camiseta e o boné ficou lá no fundo. Foi encontrada por um dos policiais que decidiu que aquilo seria um presentinho interessante para seu filho de treze anos.
Uma semana depois, todos estavam bem e de volta ao dia-a-dia. Todos tiveram a curiosidade de saber o que realmente tinha acontecido. Ficaram sabendo que o elevador dispunha de um sistema de freios de emergência que demorou, mas finalmente funcionou. Não conseguiu evitar o choque, mas diminuiu a velocidade da queda, o que salvou as quatro vidas. Nenhum dos quatro contou a ninguém o que tinham visto e ouvido. Cada um deles achou que tinha tido um sonho fantástico e não queria passar por louco. Nenhum dos quatro procurou os demais. Não tinham tido qualquer ligação até o acidente e não viam porque começar a ter agora.
Durante algum tempo, os quatro pensaram muito no que tinham ouvido no tal sonho. Mas logo a vida se encarregou de apagar as lembranças.
Raji tinha um contrato com a emissora e com patrocinadores. Que bobagem pensar em mudar de vida. Poderia até ser processado. E perderia todo o dinheiro que tinha ganho até ali.
Doutor Olavo, depois do julgamento do cliente importante do décimo-oitavo andar, se tornou uma estrela do Direito na cidade e ampliou sua área de ação de uma forma nunca imaginada. Como ele poderia voltar atrás e deixar de lado os tubarões com os quais trabalhava? E que importância havia se, para chegar à vitória, ele tinha que torcer uma que outra lei?
Lívia passou dois meses em casa, cuidando do filho, estudando inglês, se preparando para arranjar um emprego e ajudar o marido. Cuca não conseguia grandes trabalhos, era um músico talentoso, mas não ganhava muito dinheiro. E aquilo não era vida. Pra que ajudar um homem desses? Quanto ao pai, até estava disposta a um diálogo, desde que ele a procurasse. Ela não iria se rebaixar. Do terceiro mês em diante, a vida caseira não estava mais satisfazendo, sentia falta do espaço, das surpresas da vida, das alegrias da cidade... e dos homens. Em poucas semanas já estava de volta aos namorados, o pai era uma figura do passado a ser esquecida, o marido um idiota que não merecia nada do que ela fizesse e o filho um estorvo do qual felizmente ela podia se livrar pedindo aos outros que cuidassem.
Carlinhos resistiu mais tempo. Quatro meses. Todos os dias na escola, horários regulares de sono e refeições, entrou para uma academia de musculação. Mas lá foi convencido a usar anabolizantes. Drogas que fazem bem ao corpo, ele pensou. Ora, se essas fazem bem, por que as outras fazem mal? Procurou velhos amigos, refez antigos contatos, de fumar coisas passou a cheirar coisas e em seguida pulou para injetar coisas. Não conseguia dormir à noite, não era capaz de acordar cedo, não queria perder tempo com almoço ou jantar, os horários de escola só serviam para atrapalhar, a academia tinha virado um esforço inútil.
Um ano depois os quatro estavam de volta às suas velhas vidas. Nem se lembravam mais do acidente ou do sonho. Ao menos até aquele dia, exatamente um ano depois. Paulo Roberto tinha ido fechar negócio com uma rede telefônica onde os Seguidores de Raji iriam dar conselhos a quem ligasse, cobrando um significativo valor por minuto de ligação. Doutor Olavo foi entregar pessoalmente uma documentação que limpava definitivamente o nome de um importante político que andou envolvido com entrada ilegal de equipamentos eletrônicos no país. Carlinhos nem estava mais freqüentando a escola e agora prestava serviços para seus fornecedores em troca dos pacotinhos que tanto prazer lhe davam. Fora ao prédio para fazer uma entrega a domicílio. Lívia tinha um encontro com um senhor mais velho do que o pai dela, mas muito interessante, com quem ela já vinha mantendo um caso por dois meses.
Os quatro estavam no mesmo edifício. Cada um entrou no elevador em andares diferentes. Quando estavam juntos, foram se lembrando. Foram se preocupando. Doutor Olavo, disfarçadamente, tentou parar o elevador. O botão não funcionou. Continuaram a descer. Cada um dos quatro se encostou em uma parede, a espera.
E aconteceu. Um balanço. Estrondos. Ruído de um cabo chicoteando.
Nos dez segundos seguintes, Doutor Olavo não pensou em seus clientes, Carlinhos não pensou na escola, Raji não se preocupou com seus ouvintes e Lívia nem se lembrou do pai.
Os quatro só conseguiam pensar que lá no fim, no fundo do poço, quando o elevador chegasse ao chão, não seriam levados a um lugar chamado Segunda Chance.
E eles só tinham dez segundos!

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui