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Contos-->Prováveis Escrituras -- 14/04/2001 - 11:43 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tataraneto de sobreviventes. Foi o que disseram a ele a vida toda. Na verdade, ele nem tinha consciência do real significado da expressão. Sabia apenas o que sua mãe lhe contava nas caminhadas que faziam entre Abaqar e Viamarin, a procura de comida e água. Nunca dera importância àquela denominação. Tataraneto de sobreviventes. Sobreviventes. Não entendia ao que seus tataravós teriam sobrevivido.
Sua mãe havia contado sobre os grandes clarões e a cinza eterna. No fundo ele não acreditava muito. Todos diziam que tudo havia acontecido havia mais de cem anos e é difícil de acreditar num passado tão distante. Pode-se contar qualquer coisa sobre o passado. Não se pode mesmo ir lá constatar. E ele já não engolia mais histórias fantásticas de outros tempos, tempos que ninguém viu e que diziam ser maravilhoso e nefasto. Como era possível algo ser bom e mau ao mesmo tempo? Ele sabia o que era bom. Comer era bom. Não ter frio era bom. Ser mordido pelos ratos não era bom. Isso ele entendia. Mas um mundo onde as coisas eram boas e destrutivas ao mesmo tempo não parecia lógico para ele. Na verdade, tudo aquilo devia ser só lenda dos velhos. Sua mãe já estava bem velha quando morreu. Já tinha feito 35 anos! Nem sua tataravó, que tinha virado lenda entre todos por ter chegado aos 33, tinha vivido tanto. Mas de nada adiantara a longevidade de sua mãe. Não havia mais ninguém para se admirar. Só ele estava ali. Ao menos no mundo que ele conhecia.
O mundo que ele conhecia... Agora que era um homem adulto, maduro, já tinha passado dos 18 anos, ele começava a achar que o mundo não podia ser apenas o que ele conhecia. As poucas pessoas com quem conviveu lhe falavam, às vezes, sobre mundos maiores, lugares de maravilhas e cores, principalmente o Guia. O Guia foi o penúltimo a morrer. Tinha ido antes da mãe dele. E o Guia falava desses lugares, regiões místicas, para onde se ia talvez após a morte. Uma gama de cores muito mais variadas do que as que eles conheciam, casas enormes, maiores do que aquelas em que viviam. Falava de um paraíso, onde se comiam coisas não imagináveis, manjares destinados a espíritos evoluídos, líquidos de várias cores e inúmeros sabores. A vida tinha espaços infinitos para se desenvolver, havia água em abundância para todos os fins, havia lugares onde a água era tanta que um corpo poderia afundar nela até desaparecer. As ruas eram largas, veículos maravilhosos percorriam por elas, as pessoas ficariam dentro deles e não tinham que se mexer para se locomover.
Mas tudo aquilo fazia parte da lenda. O tal Mundo Superior nunca tinha sido visto. Ao menos nunca alguém tinha voltado da morte para contar se era mesmo assim. E o Guia alegava com autoridade que só se podia atingir o Mundo Superior após a morte. E que não se devia pensar nisso. O importante era viver, sobreviver, trabalhar em grupo para que o Grupo pudesse existir. E assim tinha sido por tanto tempo. Mais de cem anos, diziam os mais velhos. Ele sempre se perguntava sobre antes. E antes desses cem anos? E antes da tataravó dele? Não havia nada? De onde tinha surgido a tataravó? Ela não tinha tido uma mãe, um pai? Mas nunca perguntava aos mais velhos. Eles não gostavam de falar de Antes. Antes era um tempo perdido, uma bruma deixada para trás e parecia que ninguém queria se informar sobre ela. Todos estavam bem como estavam. E o Antes, de alguma forma, tinha ligações com os grandes clarões e à cinza eterna. E isso era algo que todos temiam, mesmo sem saber direito do que se tratava. Só sabiam que tudo aquilo talvez ainda estivesse à espreita, em algum lugar, aguardando para pegá-los e levá-los como havia feito com os outros, com os Antigos. E além das paredes de concreto do mundo que conheciam, talvez ainda houvesse a cinza eterna. Talvez houvesse um grande vazio. Eles não sabiam. E não pareciam fazer questão de saber.
Mas agora ele estava sozinho. Agora ele não tinha mais o que preservar. Não havia o Grupo para proteger. E ele queria saber. Para trás de Abaqar não havia nada. Abaqar era o fim. Era o limite. Terminal, era como eles diziam. Mas Viamarin não era um limite real. Ele nunca tinha ido além, mas sabia que havia um além. Entrou na casa, pegou o essencial, uma tocha, a pequena lança, a rede caça-ratos, principal instrumento para garantia de alimentação e saiu. Ele iria desbravar o mundo além de Viamarin.
Enquanto ia passando pelas regiões conhecidas ia pensando em tudo o que havia aprendido ao longo de sua vida. Tudo o que sua mãe e o Guia haviam ensinado. Era curioso o modo como as regiões eram denominadas. O que significariam aqueles nomes? E quem teria colocado? Por que Abaqar se chamava assim? E a região a seguir, Concio. Logo depois, vinham Sadas, Sud, Pradavor e Sanauz. Aqueles nomes não pareciam parte da língua, não eram nomes de ninguém, eram sons, apenas sons. Não significavam nada. De onde teriam vindo? O Guia contava que os nomes não eram esses, que as regiões do mundo habitável, em outras épocas, tinham tido outros nomes e que esses nomes foram escritos em placas. As placas foram se desgastando com o tempo e as pessoas foram guardando o que liam. Quando as placas se acabaram, foram guardados os últimos sons. Essa era a história oficial dos nomes.
Logo ele chegou a Viamarin. Parecia haver uma continuação dali para frente, já que o ferro-de-chão tinha continuidade abaixo das pedras. Ele resolveu que iria desbravar. Com as mãos nuas começou a puxar pedras. No princípio era difícil, todo aquele entulho estivera ali por tanto tempo! Mas aos poucos as pedras foram cedendo. Primeiro uma pequena, depois uma maior que soltou outra e mais outra. E, de repente, começou o desmoronamento. Grandes blocos de pedra caíam do alto. Ele ficou com medo de que aquilo nunca mais terminasse, já que as pedras do alto eram infinitas. Encontrou uma reentrância na parede lateral, se escondeu ali e ficou esperando. Nada mais podia fazer, além de esperar.
Enquanto esperava, pensava nas pedras do infinito teto. Como podia haver pedra infinitamente? Uma coisa sem fim era incompreensível para ele. Mas se as pedras tivessem fim, depois das pedras o que viria? Mais pedras? Ou... o quê?
Pouco a pouco o ruído foi ficando menor, o tremor em volta dele foi diminuindo, o desmoronamento havia cessado. Ele saiu do esconderijo e olhou à frente. As pedras do alto haviam coberto grande parte da parede que ele conhecia desde a infância. Mas do lado esquerdo, o choque havia aberto uma passagem!
Ele se sentiu esfuziante! Uma passagem! E, como ele sempre havia imaginado, o ferro-de-chão continuava além da parede. Ele já havia comentado uma vez com o grupo. Sempre que olhava para aquelas duas barras paralelas de ferro, apoiadas sobre grandes toras de madeira, ficava intrigado com o fato de ser ali o fim de tudo. Não havia lógica. O ferro-de-chão parecia entrar pela parede e não acabar ali. E como alguém teria enfiado aqueles ferros naquele lugar? E pra que? Agora o buraco aberto pelo desmoronamento provava a sua teoria. O ferro-de-chão continuava. E havia alguma coisa além da parede de Viamarin.
Com cuidado, coração aos pulos, começou a passagem pela nova porta. Havia uma grande distância dentro da rocha a ser atravessada, mas ele não se intimidou. E seu destemor foi premiado com a chegada a um novo lugar! Um novo mundo, pensaria ele. Mas era novo apenas por não ter sido visto pelos outros. Era exatamente igual ao mundo que ele conhecia, muito parecido com a região entre Abaqar e Viamarin. À sua direita, uma passagem estreita, às vezes ladeada por barras de ferro. À sua esquerda, uma passagem mais larga, alta como a da direita, interrompida às vezes por blocos grandes de pedra. No meio disso, o ferro-de-chão, sempre seguindo em frente. Logo adiante encontrou duas casas metálicas em ruínas, muito parecidas com aquelas em que ele e o Grupo viviam, não fosse seu estado de total abandono. Não se importou com os fragmentos de ossos que encontrou pelo caminho. Na verdade, nem reparou neles. O que mais chamou sua atenção foi um grande retângulo pintado na rocha, esmaecido pelo tempo, mas onde se viam algumas letras. Ele tentou ler. Aproximou a tocha e foi seguindo, letra por letra. Um "A", um "R", um "O", um "S" e novamente um "A". Havia espaços entre as letras, mas essas ele pode ver nitidamente.
- Arosa! Deve ser o nome deste lugar.
Lembrou-se das lições do Guia sobre os antigos nomes conhecidos e viu que era verdade. Sua admiração pelo velho mestre começou a ser renovada. Se aquilo era verdade, então todo o resto também devia ser.
- Ah, se o Grupo estivesse aqui! Se minha mãe pudesse ver isso. Mesmo velhinha, como estava, sentiria orgulho de mim. Estou ampliando nosso mundo. Agora ele já vai de Abaqar até Arosa! E o ferro-de-chão continua em frente. Vou seguir até onde for possível.
Continuou andando. No caminho encontrou mais algumas casas abandonadas e, a maior das sortes, um ninho de ratos! Um ninho enorme, com buracos em todas as direções. Era como uma caverna de proporções médias, com corredores escuros que avançavam parede adentro. No interior da caverna, dezenas de ratos! Ele não pensou duas vezes. Lançou sua rede caça-ratos, apanhou cinco de uma vez, dos grandes. Abateu-os ali mesmo, e fez sua primeira refeição do dia com a satisfação de quem tinha realizado feitos acima do dever e, por isso, merecia aquele farto banquete.
Continuou avançando e, mais à frente, o espaço era tão reduzido, o caminho tão estreito que o ferro-de-chão tinha um lado só. Não havia as duas barras. Não havia passagens mais altas. Não havia placas visíveis. Só a passagem estreita, comprimida por pedras que talvez tivessem desmoronado e encoberto tudo. Em seguida o caminho se alargava e novamente ele viu as duas barras do ferro-de-chão. E mais à frente, uma nova placa: Vuiro. Logo após, Soaq e Lirdde, bem próximas uma da outra. Em seguida ele chegou a uma área maior, muito maior do que todas as anteriores, maior mesmo que Abaqar. Mas não viu placas. Não conseguiu definir um nome para o lugar. Mas dali em diante, as áreas largas seguintes tinham nomes: Soent, Lu, Trante...
Em Trante ele resolveu fazer mais uma parada e descansar. Precisava achar água. Na região que ele conhecia era fácil. Havia fendas nas paredes de onde minava a água que era recolhida e guardada. Mas ali, naquele novo mundo, tudo era diferente. Ele não tinha idéia de onde encontrar uma mina.
Resolveu subir na plataforma, na passagem alta da esquerda, para ver se achava alguma coisa. No meio da plataforma, numa entrada escondida, havia uma estrutura que ele não conhecia. Já tinha visto entradas como aquela, mas eram todas fechadas por pedras e nada se via além delas. O Guia sempre dissera que aquela forma retangular em torno das rochas era como que um altar que os Antigos haviam feito para adorar seus deuses de destruição. Não era para ser venerada, nem ao menos era para se levar em conta a existência dela. Mas ali, em Trante, o retângulo não era fechado. Em lugar de uma parede de pedra, havia blocos estranhos, superpostos. Pareciam feitos do mesmo material das casas, uma aparência metálica, estriados e colocados uns sobre os outros de forma que as beiradas de todos ficavam expostas. E iam em direção ao alto. Se os blocos suportassem seu peso, ele poderia subir por eles.
- Subir? - pensou intrigado. - Subir para onde?
Ficou parado, olhando para aqueles blocos, decidindo se devia arriscar e por os pés neles. Subitamente, uma pedra passou raspando pelo seu braço esquerdo. Ele perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Passos se aproximaram e, antes que ele pudesse se levantar, sentiu um pé sobre seu peito. Ao olhar para cima viu uma pedra parada no ar, acima de sua cabeça, sustentada por duas mãos que pertenciam à mulher mais linda que ele já tinha visto. Uma mulher adulta, madura, com seus 16 ou 17 anos, cabelos louros e longos. Os olhos ele não conseguia ver, mas a voz era um som agradável aos seus ouvidos, embora ríspida.
- Quem é você? O que quer aqui?
- Sou Arão, filho de Géia.
- Que importância tem de quem você é filho?
- Não é importante pra você? Saber de seus antepassados?
- Só há importância no passado quando há previsão de futuro. Não há futuro. Não há mais ninguém. Sou a última.
- E eu sou o último. Olha, não quero fazer mal a ninguém. Pode soltar essa pedra.
- Está bem. Mas fique longe. Não tenho idéia de onde você surgiu e não confio em quem não conheço.
A moça soltou a pedra e se encostou na parede oposta à que ele se encontrava.
- De onde você veio?
- De Abaqar.
- Abaqar? Que nome é esse? Não existe nada além de Larian.
- Larian? Não conheço esse lugar.
- É onde há a parede! Onde os trils acabam.
- Trils?
- Não conhece os trils? Olhe ali. No chão. As barras paralelas.
- Ah... O ferro-de-chão.
- Nós chamamos de trils.
- Por que? De onde vem esse nome?
- Não sei. Sempre chamamos assim. Foi assim que aprendemos.
- Vocês chamam as coisas de um jeito diferente do nosso. Talvez Larian seja Viamarin. Era onde o ferro-de-chão acabava para nós.
- Acabava?
- Não acaba mais. Eu abri a passagem. - era impossível, para ele, disfarçar o orgulho.
- Então... - ela começou a se aproximar dele. - Então existe mundo depois do fim do mundo?
- Pra nós ali era o fim também. Mas eu descobri que existia mais. E agora você também sabe que existe mais. E podemos contar pra mais alguém.
- Não há mais ninguém. Todos se foram. O Governador foi o último.
- Governador?
- Nosso líder. Era sempre o mais velho. Nunca entendi por que tinha que ser o mais velho. Devia ser o mais jovem para poder durar mais. Mas todos diziam que o mais velho era o que mais sabia. Escolheram Costelo. Tinha 29 anos quando foi escolhido. Durou três anos. Dizem que ele era meu pai, mas ninguém podia ter certeza disso.
- Você tem um nome?
- Claro, Arão. Que bobagem! Todos têm nomes. Eu me chamo Emma.
- Emma, filha de Costelo. É bonito.
Conversaram longamente. Contaram tudo o que sabiam a respeito de seus mundos. De suas histórias. Havia grandes diferenças de conceitos, principalmente quanto aos regulamentos, mas numa coisa os dois mundos concordavam: os grandes clarões e a cinza eterna. Isso fazia parte das duas histórias. E o nada acima do teto infinito.
- Mas além das paredes há mais coisas. Há mais mundos. Nós dois somos a prova viva disso. E se nós tentássemos achar mais saídas? Quem sabe poderíamos encontrar mais pessoas!
- Você disse que insistiu na abertura da parede porque viu os trils entrarem por ela. Então venha ver uma coisa.
Emma levou Arão pelas barras de ferro, na direção oposta à que ele viera. Pegou tochas e iluminou todo o corredor por onde elas passavam. E mostrou a Arão!
- Veja! Ali na frente os trils acabam. Também há uma grande parede de pedra. E ali também eles entram pela parede.
- Mas... Da maneira como eles estão... Não... Não é possível!
- Deve ser possível, Arão! Quando os trils iam em direção a uma parede, você abriu uma passagem e descobriu mundo do outro lado. Talvez aqueles trils nos levem a um outro mundo também.
- Mas... Aquele ferro-de-chão não é como os outros. Ele está indo... para cima! Não pode haver nada acima das infinitas pedras.
- Sua gente também achava que não havia nada além da parede, não é? Nós também acreditávamos que não existia nada além de Larian. Vamos tentar. O que temos a perder? Nossas vidas? Elas já estão perdidas mesmo. Nossos mundos se acabaram, Arão. Só nos resta tentar encontrar um mundo novo para nós.
Usando as mãos e pedaços de pedra, começaram a inusitada empreitada, cavando numa direção improvável: para cima!
Não sabiam por quanto tempo já estavam fazendo aquilo, mas os desmoronamentos tinham ajudado bastante. De quando em quando, blocos enormes de pedra despencavam do teto, algumas vezes ameaçando soterrá-los, mas abrindo cada vez mais o buraco que os levaria para a maior aventura que um ser humano pode experimentar: a descoberta de novos mundos.
Os ratos iam se tornando escassos. Fugiam por causa dos desmoronamentos. Ela os caçava para que ele não precisasse parar o trabalho.
E um dia, finalmente, o desmoronamento final. Eles já tinham chegado bem alto, o túnel não era largo, mas comportava os dois, com folga, e era longo. Eles tinham acabado de sair dele para comer e descansar quando ouviram o ruído ensurdecedor, as paredes pareciam tremer e as pedras começaram a rolar, desenfreadamente. Quando tudo terminou, a surpresa. Do final do túnel vinha uma luz! Não uma luz como a das tochas a que estavam acostumados. Uma luz muito mais forte! A luz de cem tochas, de mil tochas, um milhão delas.
Ignorando a hesitação do Medo e os cuidados da Prudência, a Curiosidade se esgueirou entre eles e fez com que começassem a subir. Quando mais se aproximavam do fim do túnel, iam sentindo coisas estranhas, havia um tipo de pressão nos ouvidos, um zumbido. E a luz ia se tornando cada vez mais forte, mais brilhante. Já estavam bem próximos da abertura e não conseguiam mais manter os olhos abertos. Um calor que nunca haviam sentido, a luz incomodava mesmo com os olhos fechados, tontura, mal estar, a inclinação do túnel parecendo cada vez maior, os dois deram-se as mãos, um tentando se amparar no outro. E perderam os sentidos.
Quando Arão despertou, tudo estava escuro. Emma estava com meio corpo para fora da abertura, olhando para o alto. Arão se aproximou dela.
- A luz... Desapareceu. Está escuro aqui. Mas... O que é aquilo lá em cima?
Arão saiu para olhar. Estava mudo de espanto. Havia, então, coisas acima. Como ele tinha ousado imaginar. As pedras não eram infinitas. Elas acabavam. E acima delas, havia tanta coisa! Tanta coisa!
- O que são aqueles pontos lá no alto? Parecem pequenas tochas. Será que há pessoas lá carregando tochas?
- Acho que estamos mortos, Emma. Isso aqui deve ser o Mundo Superior. E o Guia dizia que só se chegava aqui depois da morte.
- Não diga bobagens, Arão. Toque em mim. Toque em você. Chute uma pedra e você vai ver que sente dor. Não podemos estar mortos. Estamos vivos. E chegamos a um mundo que nunca imaginamos existir.
Os dois estavam já totalmente fora do túnel. O ferro-de-chão ainda continuava um pouco mais adiante, mas carcomido, destruído, interrompido em várias partes. E continuava subindo. Um pouco à frente, outra plataforma, como as que haviam embaixo. Uma placa parcialmente apagada dizia que o lugar se chamava Arnia. Ou pelo menos era o que se conseguia ler.
- O mundo continua além do que sempre conhecemos. Acho que não há vários mundos, Emma. É um mundo só. As paredes nos impedem de ver o que há do outro lado, mas sempre haverá um outro lado. Sempre vamos poder seguir em frente.
- E aquela luz? Onde ela está? O que era?
- Não sei. Era muito forte, feriu nossos olhos, mas enquanto ela não voltar acho que estaremos seguros. Vamos ver o que há mais pra frente.
Seguiram em frente e descobriram novas plataformas. Tet, Candiu e a última, aquela onde o ferro-de-chão realmente terminava: Satan!
- Satan! Engraçado. Parece que já ouvi esse nome.
- É... O Governador dizia que era uma das divindades dos Antigos.
- Mas... Por que puseram esse nome no lugar? E isso quer dizer que era aqui que viviam os Antigos?
- É possível, Arão. Veja o chão. É diferente do nosso chão. Não é duro e liso. É todo rugoso e coberto com essa coisa fina... Parece cinza.
- As cinzas eternas! E aquela luz... Será que era um Grande Clarão, como aqueles de que o Guia falava?
- Não sei... Esse Grande Clarão era destrutivo e o que vimos não nos destruiu. Mas e aquela roda iluminada lá em cima? Será que a gente consegue chegar até ela?
Sua surpresa e seu pavor foram enormes quando perceberam que aquela roda iluminada estava descendo e, do outro lado, no lugar dela, começou a surgir um enorme círculo que parecia feito de fogo, tal a sua luz. Ele veio vindo aos poucos, mas já começava a ficar cegante. Procuraram um lugar que servisse de esconderijo e ali ficaram por horas. Não sabiam o que aconteceria com eles. Mais tarde a bola de fogo começou a descer, a luz foi ficando menor e a bola prateada voltou a aparecer.
Depois de algum tempo perceberam que aquilo se repetiria sempre. Havia um período de luz intensa e um período normal. Começaram a cultivar o hábito de se esconderem nos períodos de luz para que pudessem dormir. E quando a luminosidade e a temperatura voltavam ao normal, eles voltavam à vida. Foram percebendo que o mundo que encontraram era bem maior do que podiam imaginar. Havia coisas imensas à sua volta. E cores! Cores que nem sonhavam que existissem! Resolveram sair das proximidades do ferro-de-chão e encontraram regiões cobertas de construções. Pareciam casas, diferentes, maiores do que as que eles já tinham visto. Não eram feitas de metal, com bancos no interior que serviam para tudo. Eram feitas de material parecido com as paredes do mundo conhecido e no interior havia uma infinidade de coisas, cuja utilidade era incompreensível para eles.
Como o local onde os trils terminavam tinha sido o ponto de partida para o empreendimento de desbravar o mundo à volta e como aquele lugar tinha o nome de uma divindade, resolveram adotá-la para si. E tudo o que acontecia, de bom ou de mau, eram desígnios de Satan, para eles.
Aquele era um mundo maravilhoso, onde se podia andar em qualquer direção e onde a comida era farta. Além dos ratos, descobriram novas formas de vida, outros alimentos rastejantes, voadores, uma infinidade de coisas às quais foram dando nomes. Havia grandes caminhos cheios de água, em quantidade tal que Arão podia ficar imerso nela. O Guia dissera a verdade! O Mundo Superior existia. Mas eles não precisaram morrer para chegar até ele. Só precisaram ter coragem.
Em Satan eles encontraram uma coisa curiosa. Uma placa com traços, pontos sobre os traços e nomes escritos em cada ponto. Os nomes estavam ilegíveis, mas os traços e pontos indicavam um caminho.
- São os trils! - concluiu Emma. Isso é uma representação dos trils. Veja... Este ponto é onde estamos. Este outro ponto, do outro lado, deve ser o lugar de onde você veio. Abaqar.
- Isso quer dizer que alguém aqui em cima sabia que o ferro-de-chão seguia em todas as direções. Isso quer dizer que se pode seguir o caminho do ferro-de-chão por cima. Vamos fazer isso?
- Acho que temos que fazer isso! Estamos em terras de Satan e se Satan nos proporcionou essa placa é porque quer que a gente siga em nossas descobertas.
E assim fizeram. Foram seguindo as indicações da placa e passando por cima de lugares que conheceram durante toda a vida. Aquele mundo era fascinante. Construções imensas inteiras, outras em ruínas, pequenas casas com bancos dentro e rodas embaixo, mas diferentes das que eles tinham. Apenas quatro rodas, bancos reduzidos e havia aberturas na frente, além das laterais.
Chegaram onde imaginavam que seria Pradavor. Ali havia mais construções inteiras do que em qualquer dos outros lugares. Resolveram dar uma olhada geral. Numa das casas em que entraram, encontraram o que seria o começo de uma nova era, o que mostraria para os dois uma grande parte do que havia acontecido e esclareceria muita coisa sobre os Antigos, sobre o mundo e sobre a região entre Abaqar e Satan. Eles encontraram livros!
O primeiro livro que viram se chamava Guia. Arão pensou se tratar de alguma coisa sobre seu líder, mas era apenas um amontoado de páginas com riscos e nomes. Emma identificou em uma das páginas a linha dos trils, o caminho que eles haviam percorrido. E descobriram que os nomes que eles conheciam eram realmente adulterações de nomes antigos.
- Veja! Abaqar... na verdade é Jabaquara!
- Em seguida vem Conceição, São Judas, Saúde, Praça da Árvore e Santa Cruz. São os nomes antigos de Concio, Sadas, Sud, Pradavor e Sanauz. Aqui, onde estamos, então, chama-se Praça da Árvore. O que é praça? E árvore?
- Veja... O outro lado se chama... Mas... não há referência ao outro lado.
- Está rasgado. Falta um pedaço, está vendo? Talvez lá se chame Satan mesmo.
Ali ficaram os dois, lendo tudo o que encontraram. E assim entenderam muito do que tinha havido. Conseguiram fragmentos do passado de sua gente e informações sobre como os Antigos tinham destruído tudo. Palavras como "poluição", "desmatamento", "radiatividade", "camada de ozônio", "energia atômica", "armas químicas", não tinham qualquer significado para eles. Mas entenderam o que era bom e o que era ruim. E como a luz do sol não era má, como pensaram no começo, começaram a se sentir bem quando aquecidos por ele. Habituaram seus olhos, seus corpos se tornaram mais fortes, descobriram mais tipos de alimentos, puderam viver bem mais do que o tempo a que seu povo estava habituado. E como eram um homem e uma mulher, geraram filhos que por sua vez geraram outros que geraram novos e logo o novo mundo estava povoado. Os livros encontrados foram guardados, pois os Líderes decidiram que aquele conhecimento não devia estar ao alcance de todos. Poucos quiseram conhecer o mundo subterrâneo e, com o passar das gerações, todos apagaram de suas mentes aqueles tempos e aqueles nomes. Os lugares receberam de volta seus nomes originais. Mesmo os que quiseram, depois, saber o que havia na parte perdida do Guia, nunca encontraram o local exato da região que Arão tinha descrito como tendo apenas um lado do ferro-de-chão. Uma placa ficou soterrada lá. Mas estava perdida para sempre. Nela, o nome do local: Paraíso.
E algumas gerações à frente, as pessoas falavam de forma respeitosa sobre o passado, quando tudo começou. Reverenciavam os nomes de Arão e Emma que, por desígnio de Satan, tinham ido ao Local da Árvore, onde adquiriram todo o conhecimento do que era bom e o que era mau.
E tudo recomeçou.

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