Usina de Letras
Usina de Letras
295 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62176 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50582)

Humor (20028)

Infantil (5424)

Infanto Juvenil (4757)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6183)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Lepinha -- 14/04/2001 - 11:44 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Eufrásia, Eufrásia
é uma borboleta azul.
Ela é azul e voa assim.
Mexe as anteninhas, piscando para mim.
Por isso eu amo ela assim.
De asas abertas, de asas fechadas
Sorrindo pra mim."

A primeira vez que Doris ouviu a canção, tinha oito anos. Tinha ido a um passeio promovido pela escola em que estudava, no Brás. Escola boa, como todos dizem que eram as de antigamente. Doris, mais pro fim da vida, percebeu que todas as gerações que vieram depois dela diziam que bom mesmo era antigamente. Mas o antigamente de cada um era um tempo diferente, então ela não entendia o que era bom mesmo. Bom mesmo era o antigamente dela, o da filha dela ou o do neto?
Mas aos oito anos ninguém pensa em outros tempos. Tudo é só diversão. Principalmente quando se está num passeio numa chácara, com algumas professoras e todos os amigos da escola. Crianças correndo para todos os lados, tudo era novidade para ela. Havia grandes árvores frutíferas, havia animais, havia muito verde e muitos bichinhos pequenos também. Alguns ela já tinha visto, afinal o Brás, no final dos anos 40, não era o que é hoje. Ainda havia grandes casarões com quintais e muitas ruas sem asfalto. Mas a chácara com a turma da escola era diferente. Tudo em volta era um grande quintal. Passaram um fim-de-semana inteiro no local. À noite fizeram uma fogueira, todos se sentaram em volta e começaram a contar histórias e cantar canções. Uma das professoras ensinou a música da Eufrásia e Doris ficou imaginando uma borboleta azul abrindo e fechando suas asas em volta dela, sorrindo para ela. Achava engraçada a idéia de uma borboleta sorrindo. Nunca tinha visto boca de borboleta!
No dia seguinte, todos acordaram, tomaram o café reforçado e foram brincar. Doris correu pra fora também e tropeçou num arbusto com uma frutinha vermelha parecida com um tomate. Os adultos já tinham avisado que aquilo se chamava "mata-cavalo" e que era venenoso. Ninguém devia tocar naqueles pequenos frutos vermelhos. Claro que isso fez do arbusto a árvore do conhecimento do bem e do mal para as crianças. Todos os pequenos adões e as pequenas evas provaram do fruto proibido e adquiriram o secreto conhecimento de que, mais uma vez, os adultos estavam errados. Doris até comentou com os meninos que se a fruta se chamava "mata-cavalo", devia fazer mal pra cavalo e só. Se fizesse mal pra eles, a fruta se chamaria "mata-criança".
Doris tropeçou mas não caiu. O arbusto balançou levemente e do meio das folhas saiu a borboleta azul mais linda que ela já tinha visto na vida. Ela pensou em correr atrás do inseto, mas foi surpreendida com um vôo à sua volta seguido de um pouso em seu ombro.
Ela chamou todo mundo pra ver, mas quando as crianças se aproximaram, a borboleta voou e desapareceu por entre as árvores.
Na volta do passeio, Doris ficou o tempo inteiro pensando na borboleta. E cantarolava a canção:

"Eufrásia, Eufrásia
é uma borboleta azul.
Ela é azul e voa assim.
Mexe as anteninhas, piscando para mim..."

Doris ficou imaginando como uma borboleta faria para piscar. Mas isso não importava. O importante é que enquanto ela cantava, já bem perto do portão de sua casa, a borboleta voltou a pousar em seu ombro. Ao menos Doris achou que fosse a mesma borboleta.
Contou o caso para a mãe, que riu. Ora, onde já se viu uma borboleta percorrer tamanha distância voando?
Só alguns anos mais tarde ela poderia retrucar o comentário da mãe. Naquele momento, só deixou pra lá. Se a mãe não queria acreditar, que não acreditasse. Ela sabia que a borboleta azul tinha vindo atrás dela. Ela sabia que era a mesma. Tinha de ser.
No dia seguinte, Doris foi para a escola bem cedo. Ao sair de casa, encontrou sua amiga borboleta. A menina se recusava a chamá-la de Eufrásia. Queria arranjar um nome bonitinho pro bichinho, mas não conseguia pensar em nenhum.
O diretor da escola, senhor Rubens, que tinha mania de falar difícil, foi quem resolveu o problema de Doris.
- Bom dia, Doris. Oh... Veja, atrás de você! Há um belo exemplar de lepidóptero!
Doris olhou pra trás e só viu sua borboleta azul.
- Lepi-o-quê, seu Rubens?
- Lepidóptero, menina. Aprenda. Aproveite cada momento neste templo do saber que é o Educandário. Lepidóptero é a espécie à qual pertencem as borboletas. A palavra vem do grego lepidis, que significa "escama", e pteros, que quer dizer "asa". Com efeito, as asas desses insetos são revestidas de pequeninas escamas, semelhantes a um pó colorido. Há quem já tenha constatado que...
O velho Rubens continuou falando por mais alguns minutos, mas Doris já havia se perdido em seus pensamentos e não estava mais prestando atenção. Tinha achado a palavra "lepidóptero" interessantíssima, não por seu significado, mas sim por sua sonoridade. O som dava a entender alguma coisa ágil, rápida. Ela gostara.
- Já sei! - pensou enquanto o diretor continuava com sua preleção - Minha borboleta vai se chamar Lepinha! É um nome bem bonitinho! Muito melhor que Eufrásia...
Os dias foram se passando e Lepinha continuou acompanhando Doris pra onde quer que ela fosse. Os amigos da escola achavam aquilo engraçado. Todos tinham cães ou gatos, havia uma menina que criava uma preá em casa, mas uma borboleta como bicho de estimação era uma grande novidade.
Mas a coisa realmente curiosa sobre Lepinha só começou a acontecer umas duas semanas depois do passeio. A professora tinha passado um problema de matemática que ninguém soube resolver. Lá estava o problema escrito no quadro-negro e a professora dizendo a todos que tudo era muito simples, que bastava pensar um pouco, que todos os problemas podiam ser resolvidos com as quatro operações básicas. Dizendo isso, quase que instintivamente, a professora ia escrevendo os sinais das operações na lousa.
Bastaria que alguém soubesse a qual das operações o problema se referia e tudo estaria resolvido. Silêncio na classe. As crianças, umas com vergonha, outras com medo de serem chamadas à frente, baixaram as cabeças. Doris arriscou uma última olhada para a frente antes de se afundar na carteira. Nesse momento, a borboleta azul entrou pela janela da escola, por trás da professora e foi pousar no quadro-negro. Coincidência ou não, ela pousou em cima do sinal de divisão. Doris achou aquilo engraçado e arriscou:
- É de dividir, professora?
O que se seguiu foi inesperado para Doris. Primeiro um silêncio pesado na classe, os colegas achando que ela tinha feito a última coisa que se poderia fazer numa situação daquelas: chamar a atenção para si mesma. Mas depois do "muito bem, Doris" da professora, todos suspiraram aliviados. E os elogios foram maiores quando Doris, chamada à frente para concluir a solução do problema, o fez com precisão. Afinal, a dúvida era apenas quanto à operação. Sabendo-se isso, era fácil resolver o resto.
Desse dia em diante, Doris passou a prestar mais atenção aos movimentos de Lepinha. E começou a se interessar por tudo o que se referia a borboletas.
- Preciso saber o que borboleta come pra alimentar a Lepinha.
- Filha, pára com isso. Borboleta dura pouquinho. Não vai dar nem tempo de você aprender e a sua Lepinha vai morrer. Isso se ainda for a mesma. Borboleta azul existe aos montes!
Mas Doris sabia que era a mesma. Doris sabia que era a sua Lepinha, todo o tempo.
Aos doze anos ela já sabia mais sobre borboletas do que qualquer professor de sua escola. Sabia até que sua mãe estivera errada quanto às distâncias percorridas por aqueles insetos. Ficou sabendo que um tal de Charles Darwin tinha registrado borboletas voando em alto mar! Se elas podiam voar até alto mar, a borboleta azul podia ter voado atrás dela. Mas não tinha muita utilidade para todo aquele conhecimento. Sabia do que se alimentavam, mas Lepinha se alimentava sozinha. Na verdade, Lepinha fazia tudo sozinha. Nem havia um bom motivo para estar tão ligada a Doris. Lepinha não dependia dela para nada. Já Doris tinha se habituado a depender de Lepinha. A borboleta lhe mostrava tudo, sempre. Todos diziam que era coincidência. Mas, para Doris, Lepinha tinha aparecido na sua vida para lhe mostrar os caminhos.

"Mexe as anteninhas, piscando para mim.
Por isso eu amo ela assim."

Doris realmente amava Lepinha. Passou a consultar a borboleta para tudo. Um passeio sugerido. Se Lepinha saísse voando pela janela, Doris ia ao passeio. Se Lepinha pousasse em algum canto, nada faria Doris ir. E sempre que Lepinha pousava, alguma coisa acontecia no passeio. Ou chuva, ou algum acidente. Lepinha sabia das coisas. E Doris tinha aprendido a ouvir.
- Ouvir uma borboleta? Você deve estar brincando.
Doris também tinha aprendido a não comentar mais sobre Lepinha. Quando alguém via a borboleta azul pousada perto da menina, ela fazia de conta que nem tinha visto, ou fingia estar admirada com a beleza dela. Nunca mais comentou nada sobre Lepinha.
Quando Doris fez quinze anos, os pais da menina fizeram a maior festa que o Brás já tinha presenciado. Chegaram a colocar mesas nas ruas. Filha única, quinze anos, era o evento da década que estava no início.
Os anos 50. Tempos depois seriam chamados de anos dourados. Na época, Doris estava mais interessada na festa, na grande homenagem a ela, na roupa nova que iria usar, em toda e cerimônia que haveria, rapazes e moças bem vestidos, muita comida, a família reunida, o bairro inteiro envolvido. Chegou até a esquecer temporariamente de sua amiga Lepinha.
Temporariamente porque a borboleta não quis ficar de fora da festa. Esvoaçou por toda parte, apareceu em todos os lugares, indicou a Doris o que devia e o que não devia comer. Durante muitos anos Doris iria se lembrar da maionese que não comeu porque viu Lepinha voar em volta da travessa e se afastar ligeira. Todos tiveram desarranjos no dia seguinte. Alguns atribuíram à maionese que deveria estar contaminada porque viram um inseto pousar na travessa. Doris sabia que não era um inseto qualquer. E sabia que não havia pousado. Lepinha tinha apenas avisado Doris para que não comesse.
Com o passar do tempo, nem todo o conhecimento sobre borboletas explicava para Doris como Lepinha ainda estava viva. Não era possível um inseto viver por tantos anos. Ela já sabia que borboletas existiam desde o período jurássico na Terra, mas nunca tinha ouvido falar em uma que tivesse vivido por tanto tempo. Doris já estava com vinte e cinco anos, tinha se tornado uma moça linda, loura, olhos verdes, não muito alta. O rock e canções românticas italianas embalaram sua vida durante os anos 60. Depois da morte de seu pai, que se deu menos de três anos após o falecimento da mãe, Doris se viu sozinha no mundo. Não era uma moça despreparada, mas a sensação de estar sozinha, de viver por sua própria conta e risco, de não ter com quem contar econômica ou emocionalmente, deixou-a assustada. Ia do trabalho para casa, de casa para o trabalho, sem passeios, sem diversões, finais de semana vazios e solitários.
- Agora, minha única amiga é você, Lepinha. Só tenho você pra me ajudar neste mundo.
O casarão do Brás parecia um enorme castelo abandonado, cheio de fantasmas do passado. Sozinha dentro daquela casa enorme, ela era esmagada pelo silêncio e pela solidão. Mas um dia...
Um dia, Doris estava saindo para o trabalho quando por ela passou um homem de seus vinte e oito anos, não excessivamente bonito, não excessivamente bem vestido, não excessivamente apressado... Nada nele era excessivo. Do bolso de trás da calça do homem caiu um papel. Doris viu, mas não prestou atenção. Ou não teria prestado, não fosse a borboleta azul ter pousado imediatamente sobre o papel. Doris se abaixou para pegá-lo. Enquanto isso, Lepinha saiu voando em direção ao homem que se afastava e pousou nas costas dele.
Doris não entendia o que Lepinha queria, mas já tinha aprendido a não discutir com a borboleta. Pegou o papelzinho e correu atrás do homem.
- Moço! Moço! O senhor deixou cair.
O rapaz se virou, olhou para ela, sorriu um sorriso não excessivamente largo, agradeceu e continuou sorrindo. Doris sentiu que seus olhos verdes nunca mais se desviariam daquele sorriso.
Um ano depois, Doris estava se casando e entendendo o que Lepinha fizera naquela manhã.
Roque, o marido, concordou em viver no casarão. Antes de se casar ele morava num pequeno apartamento. Era melhor mesmo se mudar para um lugar maior. Além disso, quando os filhos viessem...
Quando os filhos vieram, Roque mostrou que nem em tudo ele era "não excessivo". Eram gêmeos. Dois meninos. A irmã caçula dos garotos viria dois anos mais tarde.
Doris vivia feliz. Uma casa grande, um bom marido, três filhos lindos que cresciam a olhos vistos. Atarefada o dia inteiro com os afazeres da casa e no cuidado das crianças, não pôde continuar trabalhando. Mas não era necessário, Roque não ganhava mal.
Aos trinta e cinco anos podia-se dizer que ela era uma mulher realizada. Feliz na vida, feliz no amor, feliz como mãe. Os anos 70 estavam sendo negros, ela ouvia dizer na TV, mas não parecia nada disso para ela. Tudo o que havia de mal parecia fazer parte de um outro mundo. Não chegaria jamais à porta dela. Passar para dentro do casarão, então, era coisa impensável! E se houvesse algum problema, alguma questão a ser resolvida, algum impasse a ser definido, fosse no que fosse, ela contava com a inestimável ajuda da Lepinha.
Uma noite ela contou ao marido a história da borboleta, como se tivesse acontecido com uma amiga dela. Roque riu e chamou a amiga de maluca. Onde já se viu uma borboleta seguir uma pessoa por mais de vinte anos? E ainda por cima dando palpites na vida!
Doris começou a pensar que o marido devia ter razão. Afinal, em tudo ele tinha razão... Por que não teria desta vez? Era mesmo estranho que uma borboleta vivesse por tantos anos. Tinha de ser outra. E, se fosse outra, poderiam ser outras, poderiam ser várias. Talvez a mãe dela tivesse tido razão quando disse que aquela borboleta no portão não era a mesma do sítio. Ela mesma já tinha aprendido que borboletas azuis são comuns, existem aos milhares. Mas e as informações? E os conselhos? Ora, que bobagem... Pura coincidência. Tudo o que ela supunha que a tal Lepinha tivesse dito, ela mesma teria feito, descoberto, decidido ou optado por si própria. Roque tinha razão. Quem acredita que uma borboleta azul possa dirigir os destinos de um ser humano tem de estar meio maluco mesmo. Aquilo como coisa de criança, podia ser bem curioso. Mas para uma mulher adulta, uma senhora respeitável, mãe de filhos, chegava a ser um absurdo!
- Bom... Vamos cuidar da comida e chega de borboletas!
Doris levantou-se da cadeira bruscamente e, sem querer, a empurrou para trás. A cadeira virou e caiu batendo o encosto estrondosamente no chão da cozinha. Cecília, a filha mais nova, vinha entrando, passou pela cadeira caída, levantou e riu:
- Chi, mãe... Você esmagou um bicho...
Doris olhou de relance. Estava ocupada demais. Era uma mulher com responsabilidades, com filhos, uma casa, horários, o almoço estava atrasado e ela não podia ficar se importando com bichinhos.
- Limpa aí pra mim, vai filha... Pega um pano de chão e limpa pra mamãe.
Doris continuou cortando cebola, enquanto Cecília recolhia com um pano úmido os restos de um corpinho de inseto esmagado e alguns frangalhos de asas azuis.
Coisas estranhas acontecem com a gente quando se passa dos quarenta anos. Essa passagem é às vezes fascinante, às vezes dolorosa, às vezes assustadora. Para Doris, passar dos quarenta foi um tédio. Havia já alguns anos que a vida não apresentava nada de novo, nada de excitante. Os filhos, já adolescentes, nunca estavam em casa. Quando precisavam de alguma coisa, quando tinham qualquer dúvida sobre a vida ou sobre o mundo, a última pessoa a quem recorriam era a mãe. Ela nunca sabia. Nunca tinha uma posição definida sobre nada.
- Quando comecei a ficar assim? - pensava Doris. - Eu sempre fui decidida, sempre fui determinada, sempre soube o que queria. Desde os tempos de escola, depois quando eu era mocinha... Ora, pois não fui eu que decidi ir atrás do Roque assim que o vi na rua?
Não. Não fora ela... Lá no fundo, ela sabia que tinha tido ajuda em suas decisões. Lá dentro dela, ainda sonhava com sua Lepinha. Mas os quarenta anos e os anos 80 não permitiam que ela pensasse nisso. Uma mulher de mais de quarenta anos está alheia a tudo, está sem rumo, está sem saber o que fazer da própria vida por sua própria culpa. Não pode ficar atribuindo culpas a criaturas imaginárias como borboletas azuis que dão palpites certos.
E pensando na sua vida vazia, no seu marido cada vez menos excessivo, nos filhos que se distanciavam, ela foi para o quarto, desejando lá no fundo de sua alma um pequeno apoio, um motivo plausível qualquer para voltar a acreditar na amiga Lepinha.
Quando o marido chegou, à noite, encontrou-a sentada na cama, olhando para fora pela janela, cantarolando uma velha canção:

"Eufrásia, Eufrásia
é uma borboleta azul.
Ela é azul e voa assim.
Mexe as anteninhas, piscando para mim."

No dia de seu sexagésimo-segundo aniversário, Doris estava mais sozinha do que nunca. Se após fazer quarenta anos sua vida tinha se tornado uma monotonia sem par, após os cinqüenta tudo tinha sido só tragédia, tristeza, dor e abandono. O Brás já não era o mesmo à noite, mas ela insistia em sair para comprar coisas após escurecer. O marido dizia pra não fazer isso, os filhos diziam pra não fazer isso, mas Doris não se conformava e até se ofendia se alguém dissesse que o lugar onde ela tinha nascido e crescido era um lugar perigoso. Não entendia a passagem do tempo, as mudanças que isso traz. Não acreditava que aquelas rodinhas de rapazes na esquina perto da casa dela envolvessem qualquer atividade ilícita. Não aceitava que o Brás estivesse envolvido naquelas coisas que ela ouvia na televisão, assaltos, brigas, morte. Tudo isso era coisa do mundo e o mundo ficava do lado de fora do Brás.
Mas o mundo invadira o Brás e ela recebeu essa informação na forma de uma bala perdida que se alojou em sua coluna, deixando-a sem movimentos da cintura para baixo para o resto da vida.
De sua cadeira de rodas ela viu um dos filhos ser preso injustamente, pois ele jurava que aqueles pacotes com uma substância branca que parecia açúcar não eram dele, estava apenas guardando para um amigo. De sua cadeira de rodas viu o outro filho, gêmeo do primeiro, brigar com o pai, sair de casa e nunca mais aparecer, nem escrever. De sua cadeira de rodas viu sua filha caçula se casar, ter um menino, ser abandonada pelo marido, tomar um vidro inteiro de calmantes e morrer. De sua cadeira de rodas viu Roque voltando cada vez mais tarde para casa e soube da mulher com quem ele estava ocupando seu tempo, uma antiga moradora do Brás, não excessivamente mais nova do que ela, porém mais bonita e com as pernas funcionando. De sua cadeira de rodas viu o neto crescer sem pai nem mãe, sob os cuidados dela, uma velha entrevada, e antevia que futuro poderia ter o garoto. Mas adorava vê-lo correndo pela casa, feliz, brincando, inventando histórias, fazendo peraltices. Teve então, num dos raros momentos sem tristezas nos últimos quinze anos, um vislumbre da resposta à pergunta que fizera a si mesma. Quais eram realmente os bons tempos? Os dela? Os da filha? Os do neto? Não importam os tempos. Chamamos de bons tempos os tempos em que fomos crianças. Sejam quais forem os tempos.
De sua cadeira de rodas viu, ainda, a maior de todas as tristezas. Um dia, sentada à janela, olhando o neto que brincava no jardim da frente da casa, viu se aproximarem dois homens. Um deles, o de terno, cabelo bem cortado, ar de seriedade que carregam todos os que julgam que fazer bem um trabalho é fazê-lo de cara amarrada. O outro ela conhecia bem. Era o ex-marido da filha. Ele se aproximou, cumprimentou, apresentou o advogado que estendeu a mão para cumprimentá-la e imediatamente colocou uma pilha de papéis em seu colo. Documentos que provavam que algum juiz, sabe Deus de onde, havia decidido que uma criança que ainda tem um pai não pode viver sob os cuidados de uma velha numa cadeira de rodas. E sem grandes rodeios, pegaram o menino, entraram no carro e desapareceram, sem nem ao menos deixar endereço.
Doris não tinha mais lágrimas para chorar. Não esperava mais nada da vida. Não havia mais vida. E ali ficou, dia após dia, mês após mês, em sua cadeira de rodas, olhando pela janela. Às vezes Roque aparecia, providenciava algumas coisas que ela precisasse, comida, algum dinheiro. Dizia sempre que lamentava tudo, mas que ela precisava compreender. Ela não dizia nada. Não reagia. Não brigava. Não chorava.
Havia chegado o dia de seu sexagésimo-segundo aniversário. Ela pedia a Deus que a levasse, que a poupasse, que ela já havia sofrido muito, que já não havia mais o que sofrer e que, portanto, estava na hora de ir.
- Por favor, sempre pensei num anjo para me ajudar, para me guiar na vida, para me tirar de dificuldades. Agora estou implorando por um anjo, ainda, mas não o anjo branco das certezas e das soluções. Que venha o anjo negro da morte e me leve de uma vez por todas.
Foi então que ela viu as asas. Não negras, como ela havia pedido. Asas que se aproximavam lépidas da sua janela. Asas que batiam alegremente, como se sorrissem para ela. Asas azuis!
- Lepinha! Não é possível! Não pode ser você!
A alma da pobre velhinha se encheu de uma alegria incontida. Lágrimas que por anos não caíram de tristeza, rolavam de felicidade. Agora ela seria atendida em tudo novamente! Como pudera ser tão tola? Como pudera aceitar a intolerância e a incredulidade de todos quando sua amiga já havia demonstrado mais de uma vez, no decorrer da vida, a sua existência real e a sua eficácia como amiga e como guia? Quanto tempo perdido! Desperdiçado!
- Mas agora você voltou! Agora tudo vai ficar bem novamente. Nós vamos ficar juntas de novo, Lepinha. Para sempre.
A borboleta azul esvoaçou pela casa. Doris fazia sua cadeira de rodas percorrer todos os cômodos atrás de Lepinha. O vento empurrou a porta da frente que se abriu. Lepinha foi para fora, para a rua. Doris, como uma criança em sua bicicleta nova, saiu em grande velocidade atrás dela.
Só quando estava no meio da movimentada rua Piratininga é que ela teve uma vaga lembrança de uma cadeira caída, um inseto esmagado, sua filha limpando o chão com um pano, pedaços de asas azuis sendo recolhidos. No instante seguinte, só teve tempo de tomar consciência da estrondosa buzina que se aproximava. Viu um pára-choque na altura de sua barriga, ouviu o baque da lataria contra a cadeira de rodas e sentiu seu corpo subir e esvoaçar. Como uma borboleta. Depois... silêncio.
As poucas pessoas que estiveram no enterro, uns velhos vizinhos do Brás e o Roque de paletó preto, mas de calças marrons, num luto não muito excessivo, não notaram. Só o homem do IML é que percebeu que a mancha azulada deixada na testa de Doris pela pancada do carro tinha um esquisito formato de borboleta.
E ainda hoje, quem for ao cemitério da Vila Formosa e tiver paciência de procurar, vai achar um túmulo discreto, cimentado, com uma pequena lápide que contém apenas o nome de Doris, sua data de nascimento e a data do falecimento. Mas, se prestar atenção, vai ver que no cimento está aprisionado um inseto. Uma borboleta, que pousou ali quando o cimento ainda estava fresco e ficou presa com as asas abertas. O cimento a envolveu, endureceu, e ali ficou aquela marca para sempre. Só se vê o contorno, sem nenhuma cor. Mas há quem jure que ela era azul.
"De asas abertas, de asas fechadas
Sorrindo pra mim."
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui