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Contos-->Seu Pedro -- 14/04/2001 - 11:45 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Seu Pedro suava em bicas. O calor era muito forte e ele ali, de terno, dentro de um jipe sem capota, ficava pensando, arrependido:
- Nem sei pra quê eu vim... Não vai dar certo de novo... E mesmo que dê certo, pra quê? Na minha idade, nem vou poder aproveitar.
Seu Pedro já estava com mais de oitenta anos. Até onde se lembrava, como ele sempre dizia, trabalhou com terras. Queria até ser fazendeiro. Juntou dinheiro durante anos, trabalhando no Rio de Janeiro, primeiro como office-boy da imobiliária, depois crescendo no emprego, aprendendo coisas, subindo de posto. Como sempre viveu sozinho, jamais constituiu família, pôde se dar o luxo de guardar quase tudo o que ganhou. Ao final da década de 40, com pouco mais de trinta anos, ele já possuía a quantia suficiente para realizar seu sonho. Comprar umas terras, mudar-se para o interior e ali viver até o fim de seus dias. Ele sempre sentiu essa necessidade do contato com a terra. Mas jamais conseguiu. Não gostava de nenhum lugar. Viajava, ia a locais distantes para ver terrenos que nunca o satisfaziam. Às vezes pensava que não ia adiantar, que aquela idéia de um sítio, uma fazenda, a vida de interior não era pra ele. Até onde se lembrava, tinha tido uma vida urbana, desde os tempos do Abrigo, como era chamada a instituição para menores sem família onde ele tinha ficado até os 12 anos, quando fugiu. Mas era quase uma compulsão. De tempos em tempos, voltava aquela vontade e lá ia ele ver terrenos.
A vida nunca fora fácil para o seu Pedro. Depois da fuga do Abrigo, dormiu muitas noites na rua, passou dias sem comer, não caiu na marginalidade por um princípio muito forte que sempre o mantivera no caminho do correto. Das poucas coisas que conseguia se lembrar de sua primeira infância, a imagem mais forte era a de um herói: Peter Pan. O menino que jamais crescia e que combatia o mal personificado pelo Capitão Gancho. E mesmo grande, mesmo adolescente, ele ainda se sentia Peter Pan. E um herói não rouba. Um herói não assalta pessoas. Um herói passa fome, sofre tormentos, mas não faz maldades. Só que aquele Peter Pan estava crescendo. E precisava comer. Precisava viver. Precisava de um lugar pra dormir. Mas não o Abrigo. Nunca mais o Abrigo.
- Já tamo quase chegando na greba, doutor...
Para o motorista do jipe, qualquer um que usasse terno sob um sol daqueles ou era louco ou era doutor. E o seu Pedro não tinha cara de louco.
- Graças a Deus, meu amigo. Até onde me lembro, nunca senti tanto calor. Espero que haja alguma casa na região, onde a gente possa entrar e tomar um pouco de água.
- Tem sim... Tem a casinha da véia Lula. É uma véia esquisita que mora no terreno que fica no fim da greba. Ninguém nunca vai lá. Ela num gosta muito de gente em vorta. Mas ela num distrata não, doutor. Se o senhor chegar e pedir água ela dá. Comida também. Mas é só... Papo ela num qué com ninguém. Dizem que ela fica conversando sozinha. Ela diz que tem uma menina lá com ela, mas nunca ninguém viu essa tar de menina.
Seu Pedro não ligou muito pra conversa do motorista. Ficou pensando no tempo em que também conversava sozinho, por não ter com quem falar. E nunca foi tido como louco por isso. Todo mundo conversa consigo mesmo. E seu Pedro adorava conversar consigo mesmo. Era o que lhe restava, naqueles tempos de sofrimento e solidão. Não tinha cultivado o hábito de ler, tinha se criado quase sem leitura, aprendendo em livros apenas o básico pra trabalhar e sobreviver. Sabia muitas coisas, mas, até onde se lembrava, não tinha aprendido em livros. Conseguiu seu primeiro emprego numa corretora de imóveis como office-boy e ali ficou até se aposentar. Foi crescendo dentro da empresa por méritos, por trabalho. Nunca por ascensão cultural. Seu Pedro nunca lia. Nem jornais. Ficava sabendo das coisas pelo rádio e, com o passar do tempo, pela televisão.
Ah, a televisão! Quando aquilo apareceu pela primeira vez, parecia coisa de outro mundo. Ele já tinha entrado em cinemas. Mas um cinema pequenininho, em casa? Que você liga e desliga quando quer? Era o começo dos anos 50, coisas fascinantes estavam acontecendo e a televisão era a mais assombrosa para ele.
- Aqui, doutor... A greba começa aqui. O que o doutor acha?
O jipe parara numa pequena elevação. Dali se podia divisar quase toda a gleba que seu Pedro tinha ido ver. Sua última tentativa. A última chance do sonho de ter um terreno, um sítio, uma chácara, o que fosse que pudesse fazê-lo reviver... o quê? Não sabia. Tinha a estranha sensação de algo a ser revivido, mas até onde se lembrava, nunca tinha estado nem ao menos num sítio. Visitou alguns de amigos, depois de adulto, mas essa compulsão por terras, árvores, água corrente era uma coisa de infância. De vida inteira.
- Antes de achar qualquer coisa, meu amigo, eu adoraria ir até a casa dessa senhora Lula, ou a qualquer outro lugar que tivesse água.
- O senhor é que manda, doutor. A véia Lula num mora longe daqui não. Vamo até lá, então.
O jipe entrou por uma estradinha estreita. Árvores altas iam passando por eles, balançando seus galhos ao vento leve. Seu Pedro já sentiu um certo alívio. As árvores faziam uma sombra gostosa e reduziam um pouco o calor que ele sentia. Por um breve instante ele teve a impressão de estar sendo recebido por um comitê de boas-vindas. Os galhos balançando pareciam braços acenando à sua passagem. Mas a impressão passou logo. Seu Pedro não era um homem de impressões. Até onde se lembrava, sempre fora uma pessoa com os pés no chão, alguém para quem a imaginação e os sonhos não tinham lugar. Não entendia porque tanta fixação com Peter Pan na juventude. Talvez tivesse sido culpa do cinema. Seu Pedro conseguia lembrar de sempre ter gostado do heroizinho fantástico, mas em 54, quando pôde vê-lo na tela do cinema foi como se alguém tivesse enfiado alguma coisa em seu cérebro num lugar de onde nunca mais poderia ser tirado. Ele olhava para aquele menino vestido de verde, voando sorridente e a sensação era de que tinha vivido a vida toda com ele, que tinha voado com ele, que era um amigo íntimo que há muito não via.
- Quanta bobagem a gente pensa quando é jovem!
- O que disse, doutor?
- Nada não. Estava pensando alto.
- O senhor vai se dar bem com a véia Lula...
O motorista tinha um sorriso franco que confundiu seu Pedro. Era um comentário irônico ou só uma brincadeira simpática? Seu Pedro optou por um sorriso e encerrou o assunto.
- O povo diz que nesse pedaço das terras ainda tem saci.
- Saci?
- É... Contam cada história daqui! Mas tudo história antiga. Coisa de mais de setenta anos. Só de saci é que ainda se fala hoje em dia.
- Ora, saci!
- O senhor num acredita em saci, doutor?
- Não, eles são muito mentirosos - brincou seu Pedro num de seus raros momentos de humor.
- Ó, a casa da véia Lula é ali, depois daquele bambuzar. Se o senhor num s importá, eu prefiro ficá esperando aqui, doutor. Num gosto muito do jeito dela não. É esquisita.
Seu Pedro já tinha visto muita coisa esquisita na vida. Nada mais o espantava. Ou pelo menos, era o que ele achava até aquele momento. Já tinha ido a lugares muito estranhos, já tinha se embrenhado em matagais, já tinha feito trabalhos de avaliação, compra, venda, arrendamento de terras e, para isso, teve de ir a lugares indescritíveis. Não seria uma pobre velha solitária num casebre no meio do mato que haveria de assustá-lo.
Seu Pedro chegou ao terreno da velha, depois do bambuzal, como o motorista explicara. A frente era de chão batido. Havia uma porteira velha, destruída pelo tempo. A casa era grande, mas estava em ruínas. Com boa vontade seria possível imaginar que ali teria sido a sede de um sitiozinho bem simpático e aconchegante. Mas, com certeza, isso fora há muito tempo. Seu Pedro, apesar do cansaço, do calor e da sede, sentiu uma vontade irresistível de olhar tudo antes de chamar pela dona da casa. Deu volta ao casarão e viu, no fundo, o que um dia deveria ter sido um pomar. Ainda havia ali uma velha jaqueira, algumas jabuticabeiras e muito mato. Um total abandono. Por trás do velho pomar, um riacho borbulhava. Esse parecia conservado por si mesmo. O abandono da região tinha feito por ele o oposto do que é feito aos rios, em geral, quando o homem resolve ficar por perto. A ausência de cuidados e de humanos preservaram o riachinho. A água límpida, o movimento rápido e alegre por entre pequenas pedras, alguns peixinhos pequeninos e coloridos se agitando dentro dela, tudo isso lembrou seu Pedro do calor e da sede. Por um rápido instante ele se lembrou de mais alguma coisa, mas logo a imagem fugiu. A sede era a coisa mais importante naquele momento.
Seu Pedro se abaixou, juntou as mãos em concha e pegou um pouco daquela água clara. Bebeu com um prazer indescritível, um gosto estranho e maravilhoso invadiu sua boca, uma sensação de euforia percorreu seu corpo. Parecia que ele nunca tinha bebido água na vida. Sentou-se à beira do riacho, ficou olhando para aqueles peixinhos e imaginando, surpreso e assustado, o que haveria naquela água. Por que sentira aquilo? Era quase como uma vertigem. Aquele riachinho tão abandonado, tão distante de qualquer dos malefícios da civilização, poderia conter alguma substância tóxica?
- O que o senhor está fazendo aí?
A voz rouca e cansada tirou seu Pedro do delicioso torpor. Antes de se virar, já foi se desculpando:
- Ah, me perdoe a invasão, é que eu estava...
Não conseguiu terminar de falar. A criatura que estava na frente dele era tão insólita, tão estranha... Uma velha de idade indefinida, talvez menos velha do que parecia, talvez mais. Uma pessoa destruída pelo tempo, rugas que contavam cada segundo que passara ali naquela solidão. Um vestido surrado de chita, coisa que ele não via já fazia uns quarenta anos. Cabelos brancos desgrenhados, caídos por sobre o rosto. Num primeiro exame, uma criatura assustadora. Um segundo depois, ao perceber a profundidade de seus olhos pretos, seu Pedro já a classificaria como fascinante. Se tivesse tido um pouco mais de tempo para pensar, chegaria à definição correta: familiar.
- É você! Você veio! - a velhinha tinha lágrimas nos olhos.
Seu Pedro não entendeu. Mas não se preocupou muito em entender. Afinal, tentar entender uma velha louca que insistia em viver sozinha no meio daquele mato, entre um bambuzal e um pomar abandonado, seria perda de tempo.
- Vem! Vem! Vamos entrar.
Seu Pedro seguiu a velha Lula até a porta do casarão. Ela abriu e eles entraram. Uma grande sala, quase sem móveis. Destacavam-se uma cristaleira já sem os vidros e uma cadeira baixinha, com as pernas serradas, bem no centro.
- Vem! Senta aqui! Eu vou fazer um café.
- Um momento, senhora... Eu só queria...
- Senhora? Você me chamou de senhora? Deixe de brincadeira... Você sabe bem como me chamar.
- Desculpe, eu não estou entendendo... Eu não conheço a senhora e...
- Você não se lembra? - a voz dela caiu instantaneamente da euforia de um reencontro para o lamento de uma decepção.
- Não me lembro de quê?
- Não é possível! Tantos anos esperando... Quantos? Cinqüenta? Sessenta? Setenta? Nem sei... Perdi a conta. Eu e ela ficamos aqui, esperando, esperando... Sabíamos que um dia você iria voltar. E você voltou... Tantos anos depois... E não se lembra? Nós sofremos tanto, todo santo dia olhando para aquela porteira, esperando você aparecer montado no pangaré... O pangaré já nem existe mais, mas mesmo assim sabíamos que você ia voltar. E quando volta, não se lembra de nós? Sofremos sozinhas? Você nunca sentiu saudade!
A velha Lula sentou-se na cadeira de pernas serradas, abaixou a cabeça e chorou baixinho. Um choro sofrido, um choro magoado.
- Olhe, me desculpe, eu não tenho a intenção de magoar a senhora, mas não tenho idéia do que está falando.
- Pára de me chamar de senhora! Você sabe quem sou eu! Tem de saber! Nós sabemos quem é você, os anos não apagaram a saudade, tanto tempo depois eu mal bati os olhos e sabia! Como pode não saber?
- Saber o quê?
- Meu Deus, você era tão bom! Forte, heróico, nobre, educado, bondoso... Eu me sentia protegida com você. Podia acontecer o que fosse, com você por perto eu não tinha medo. Como pode agora me magoar tanto, dizendo que nem ao menos pensou em nós, nem se preocupou em saber de nós... Todos acharam que você tinha morrido, mas eu sabia que não. Você nunca foi achado, não podia ter morrido. Alguém saberia. E nunca ninguém soube.
Seu Pedro já estava arrependido de ter entrado naquele sítio em ruínas. O motorista do jipe tinha razão. Uma velha louca. Ele nunca tinha visto aquela mulher. O mais certo agora era arrumar uma desculpa e ir embora o mais rápido possível. E novamente desistir do sonho. Não poderia passar o fim de seus dias naquela região. Aquela velha iria atormentá-lo com histórias de um passado que não era seu. Até onde lembrava, nem mesmo tinha estado na região de Taubaté em toda a sua vida, até aquele momento.
A velha Lula parou de chorar. Olhou fixamente para ele, assumiu um ar de dignidade ofendida, uma postura de nobreza ultrajada, ficou em pé, empinou ainda mais seu nariz arrebitado e disse em tom baixo e seguro.
- Está bem! Se quer fazer como todo mundo, se quer fazer de conta que nós nunca existimos, não faz mal. Vá embora e nem pense em nós. Mas pelo menos, dê um jeito nele, antes de ir.
Seu Pedro não compreendeu. A mulher tirou um objeto estranho da cristaleira e estendeu para ele.
- Dar um jeito em quê?
- Nele! - disse a velha, estendendo a mão e entregando o objeto a ele.
- Mas... Dar um jeito em um sabugo de milho?
- Sim... Por favor... Só você sabia fazer isso, além da tia Na...
Seu Pedro sentiu uma tontura e dobrou as pernas. A velha Lula interrompeu a frase, largou o sabugo e correu para ele, num grito:
- Pedrinho! O que foi?
- Como... Como sabe meu nome?
- Ora, que pergunta mais boba... Tinha graça alguém não saber o nome do próprio primo, com quem conviveu por tanto tempo.
A vertigem de seu Pedro aumentava. Alguma coisa estranha estava acontecendo dentro dele. Uma parte da vida dele parecia a ponto de explodir.
- Primo? Mas... Mas até onde me lembro, nunca tive família... Fui criado num abrigo para menores...
- Até onde se lembra! E quanto ao que você não se lembra? Nunca pensou em procurar? Nunca tentou saber como chegou nesse tal abrigo?
- Não sei... Não. Nunca pensei nisso. Me lembro do Abrigo, quando eu tinha uns dez anos. Vivi lá por uns dois anos e fugi. Mas como cheguei lá, nunca soube. Nunca me disseram. Com o tempo, isso deixou de ter importância.
- Mãe, família, parentes, nunca tentou procurar ninguém?
- Me disseram que eu não tinha ninguém. Que eu só tinha minha mãe e que ela tinha morrido. Nunca soube como.
- Automóvel.
- O quê?
- Acidente de automóvel. Sua mãe morreu num acidente. Você estava junto. Provavelmente viu sua mãe morrer. E fugiu.
- Não! Eu não fugiria da minha mãe. Eu sempre quis uma mãe. Se eu soubesse que tinha uma ali, ao meu lado, não fugiria. Por que alguém fugiria daquilo que mais quer?
- E o que você mais queria? Qual era o seu maior sonho?
- Com certeza não era ver minha mãe morrer.
- Terra do Nunca!
- O quê?
- Peter Pan. Os Meninos-Perdidos. Só meninos sem mãe vão definitivamente para a Terra do Nunca. Só meninos sem família vão para o lugar onde nunca se cresce. Onde um menino não vira homem com um bigode feito taturana na cara.
- Que conversa é essa? E como sabe que eu gostava do Peter Pan?
- É que vocês dois se deram tão bem...
- Olha aqui, eu não sei o que está acontecendo. Não sei quem é você, não sei porque estou tão tonto, talvez haja alguma coisa errada com a água daquele riacho, mas não estou interessado nas suas loucuras. Vou embora daqui!
- Pedrinho, não dá mais! Podia esconder tudo de você, mesmo até morrer, se não tivesse vindo aqui. Mas agora não pode mais. Está tudo dentro de você e vai aparecer, queira ou não queira! Se eu não sou suficiente pra trazer tudo de volta, talvez a presença dela ajude!
- Ela? Ela quem? A tal menina que você diz pra todo mundo que mora aqui? A tal menina com quem você conversa e que ninguém mais vê?
- Não é verdade. Vovó via... O seu José via... Hoje em dia ninguém vê. Porque ninguém quer ver. Ela é como o saci que você pegou. Só vê quem quer. Quem não quer, esconde a imagem dentro de uma idéia preconceituosa de superstição e imaginação e faz de conta que não vê.
- Saci?
- É sim, saci! Pelo amor de Deus, fecha essa boca, muda essa cara de besta! Se o seu José estivesse vivo ia ficar bem triste por ver você tão incrédulo.
- Que seu José?
- O homem que morava perto do sítio e que acompanhava nossas estrepolias. Dizem que ele contou tudo o que a gente fez naquele tempo pra todo mundo. Mas ninguém queria informações de coisas em que não acreditavam. Então ele fez de conta que inventou tudo e virou escritor. Mesmo assim, continuou contando o que viu e ouviu aqui. Só que disfarçou tudo em fantasia. Aí todo mundo passou a respeitar o que ele contava. Engraçado o bicho homem, né? A vovó já dizia isso, lembra?
- Vovó... Bendita... Esse nome me vem na cabeça, de vez em quando... Bendita.
- Não era esse o nome! Não vou contar mais nada, Pedrinho. Você vai ter de lembrar. Se não lembrar de nós, do nosso tempo, do seu José, que foi até o Rio quando soube do acidente pra tentar achar você pra nós, se você não lembrar da vovó, do marquês, do saci, se não lembrar de nada disso sozinho, não vai lembrar de como é que se conserta... ele!
- O sabugo? Consertar um sabugo?
- Ah, não tem jeito. Sozinha não vou conseguir. Ela vai ter que me ajudar.
- O que seria de vocês sem mim? Vai ser assim a vida inteira, não é?
A vozinha fina, estridente, vinda da porta da cozinha, fez seu Pedro dar um pulo. A tal explosão mal podia se conter.
Aquela voz! Ele já tinha ouvido aquela voz! Mas onde? De quem era?
Olhou para a direção da voz e o que viu o deixou intrigado. Uma criaturazinha de uns três palmos de altura, olhos esbugalhados, cabelos espetados, um vestidinho velho, parecendo feito de retalhos. Uma menina, sim, mas a menor menina que ele tinha visto na vida. Um aroma suave invadiu a sala. Um cheiro antigo, um cheiro de saudade. Ele conhecia aquele cheiro. Sabia que conhecia. Macela!
De repente, deu-se a explosão! Seu Pedro ficou tonto, tudo girou à sua volta, imagens passaram ante seus olhos, como um velho filme num cinema barato. Imagens truncadas, um passado sendo revivido. Até onde ele não se lembrava...
Águas claras... Peixinhos... Lula... Macela... Vovó... Bendita... Não, não Bendita. Benta! Era esse o nome! Benta! O pomar... Jabuticabas... Lula... Menina com cheiro de macela... Marquês... Marquês de quê mesmo? O pangaré... "O povo diz que nesse pedaço das terras ainda tem saci". Meninas não tem cheiro de macela. Lula... Luíza... Não, Luíza não... Explosão! Tudo gira! Lula! Bonecas é que eram feitas de macela! Bonecas é que tinham cheiro de macela! O sabugo. Consertar um sabugo? Lula. Lúcia! É isso! Lúcia! O nariz altivo! Arrebitado! Narizinho! Boneca de macela!
- Emília! - gritou seu Pedro, quase desfalecendo.
- Você lembrou! Você lembrou!
- Claro! - grunhiu a pequenina - Alguma vez na vida um de vocês dois fez alguma coisa direito sem a minha participação?
- Você lembrou! - a velha estava em lágrimas, desta vez lágrimas emocionadas, toda uma saudade de décadas rolando pelo seu rosto em pequenas gotas de felicidade.
- Meu Deus... Não é possível! Eu devo estar ficando maluco... Nada do que estou me lembrando pode ser verdade... A vovó. As histórias contadas nos serões, a gente ouvindo ao pé dessa cadeira.
- Ora, o que há de errado em netos ouvindo uma avó contando histórias?
- Não, nisso não. Mas o resto envolve lendas, envolve sacis, contos de fadas, viagens interplanetárias... Envolve uma boneca... Peter... Pan!
- Claro que sim, Pedrinho, claro que sim! E foi tudo verdade! Uma maravilhosa verdade que só nós, a vovó, tia Nastácia e o seu José pudemos compartilhar. Seu José morreu, a vovó também, todo mundo se foi e ficamos eu e a Emília aqui, sozinhas, esperando você aparecer pra trazer ele de volta.
- O sabugo...
- É... Era um sabuguinho chato, metido a besta com toda aquela sabência, mas até eu sinto falta dele.
- Sabedoria, Emília.
- Pois pra mim é sabência e sabência vai ficar - e mostrou a língua.
- Nós nunca conseguimos trazê-lo de volta. Só a tia Nastácia e você sabiam fazer isso. Tia Nastácia se foi há muitos anos. Você precisava voltar.
- Tudo é tão claro pra mim agora, Narizinho. Meu Deus, por isso eu andei tanto por esse mundo afora atrás de terra. O que eu queria era voltar. Só não sabia pra onde. Me tornei um menino-perdido, mas Peter Pan não veio me buscar. E eu cresci. Lamentavelmente, cresci. E me perdi mais ainda. Não conseguia me lembrar de nada da minha infância. Mas alguma coisa me empurrava pra cá, pro velho sítio. Pra voltar a ouvir histórias. Pra voltar a saber das coisas pela boca da vovó ou indo lá ver como foi. Eu não queria me informar lendo sozinho. Eu queria as coisas como eram.
- Eu tentei dizer pras pessoas da região, pedi que me ajudassem, mas ninguém nunca acreditou em mim. Todo mundo, com o tempo, foi pensando o contrário. Todo mundo achou que eu li os livros do seu José e acreditei na fantasia. Por isso nunca ninguém viu a Emília. Ninguém queria que fosse real. As pessoas preferem a fantasia como fantasia. E não deixam que ela entre de verdade nas suas vidas.
- Quanto tempo perdido... Por que só no fim da vida eu fui me reencontrar? Por que não pude achar este lugar a tempo de aproveitar minha volta?
- Tempo... Não seja bobo. Estamos juntos de novo. Agora tudo é possível outra vez. Traga o Visconde de volta. E nada mais será importante. Nem as pessoas, nem o falso limite entre fantasia e realidade, nem o tempo. Só falta ele. Tudo será possível de novo.
Seu Pedro ficou frenético. Suas mãos começaram a trabalhar no sabugo com uma maestria que nem mesmo ele sabia que tinha.
Quando o trabalho terminou, coroado de êxito, os quatro se juntaram no centro da sala, quietos, calados, deixando aquela sensação invadi-los. Uma emoção tão grande que nenhum deles poderia explicar em palavras. Subitamente, a pequena Emília rompeu a corrente, correu para fora da sala e voltou com um bauzinho velho.
- Agora sim... Guardei isso por todo esse tempo, mas está na hora de usar.
Abriu o baú e tirou de lá uma caixinha de madeira. Dentro dela havia uma substância estranha, um tipo de areia bem fina, quase uma poeira.
- Pedrinho, veja o que a Emília tem! Ela guardou um pouco. Desde aquele tempo. E nunca me disse nada!
- Mas... Será que isso adianta agora? Será que ainda funciona? Mesmo com dois velhos?
Um som irrompeu na sala... Não exatamente na sala, mas o som envolveu todo o ambiente. Um som antigo, mas que todos ali conheciam bem.
- Co-co-ri-cóóó!
- É ele! Anda Pedrinho, pegue um pouco. Ele veio nos encontrar. Vamos, pegue! Sem medo! É só um fiuuun e estaremos com ele. Para sempre!
- Para sempre! - repetiu seu Pedro, abrindo a caixa de madeira.
A autópsia dos dois corpos encontrados pelo motorista do jipe que havia cansado de esperar não revelou nada de anormal. Tanto o homem quanto a mulher haviam morrido de velhos. Ponto final. A polícia ficou intrigada com um certo pozinho encontrado numa caixa ao lado dos corpos, mas a análise do laboratório não conseguiu determinar nada de tóxico naquilo. Ninguém ligou muito para o fato de o velho Pedro ter um sabugo de milho com uma cartola nas mãos e da velha ter morrido abraçada a uma boneca recheada de macela, com olhos de retrós preto. Atribuíram essas coisas a "atos de velhos malucos".
O motorista achou melhor não comentar que quando encontrou os corpos ouviu na sala um canto de galo e risos de crianças. Iriam pensar que ele estava maluco. E na verdade, aquela era a coisa mais maluca que ele já tinha visto. Pelo menos, até onde se lembrava.

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