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Contos-->Espantado -- 14/04/2001 - 11:46 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Juliana já tinha visto muitos peixes na vida. Peixes grandes, peixes pequenos, peixes que a mãe dela comprava na feira para o almoço, bichos estranhos, parados, inertes como os mortos, mas com olhos grandes arregalados, olhando fixamente para ela como se estivessem vivos. Ela já tinha visto peixes enormes no Aquário Municipal de Santos naquele fim de semana em que o sol resolveu sumir como se tivesse feito um acordo com o Departamento de Turismo. A família aceitou a ausência solar e a sugestão do Departamento. Foi conhecer outros lugares da cidade em vez de ir à praia.
Mas os peixes de que Juliana mais gostava eram os ornamentais. Tão lindos, tão coloridos, tão engraçadinhos, nadando pra lá e pra cá dentro do aquário que o pai dela havia comprado. Um aquário grande, bonito, com pedras empilhadas como um castelo aquático.
Ela criava kinguios. Havia os mais diferentes tipos, nas mais variadas cores: vermelhos com caudas enormes, dourados como ouro velho, um preto de olhos esbugalhados que ela chamava de Dudu numa gozação velada com um tio de olhos grandes chamado Durval. Ao todo ela possuía onze peixes. E queria o décimo segundo, pois achava que o fato de, nos últimos dois anos, ter mantido dentro do aquário um número de peixes igual ao seu número de anos de vida tinha dado sorte.
É, Juliana já tinha visto muitos peixes na vida. Mas um igual ao que ela estava colocando no aquário naquele momento, nunca tinha visto. Parecia um kinguio, mas era um pouco maior do que o normal. E as cores... Ah, as cores! Não havia no mundo cor que aquele peixe não tivesse. Ao menos que Juliana conhecesse. A cauda era como um imenso véu furta-cor. As nadadeiras se moviam com um vigor frenético. Parecia que o peixe queria atravessar o vidro do aquário e viver do lado de fora!
Mas o que ela achava mais divertido era o ar espantado que o peixe tinha. Juliana acreditava que era por causa da mudança de aquário, já que ele tinha vivido por um bom tempo na casa da Vera Lúcia, uma amiga de treze anos que morava na mesma rua, duas casas depois da dela. No momento em que menina colocou o peixe no aquário, já havia decidido:
- Vai se chamar Espantado!
Espantado parecia não se dar bem com o novo aquário. No princípio era aquele nado enlouquecido, como uma tentativa de fuga. Até o dia seguinte, foi ficando quieto, parecia triste, sempre com a boca colada no vidro, como se estivesse olhando pra fora.
- Mãe, acho que o Espantado está doente. Ele parece triste.
- Ora, Juliana, peixe triste? Onde já se viu?
- É sim, mãe. Ele fica lá, encostado no vidro, olhando pra mim quando eu passo.
- Vai ver ele está com saudade da antiga dona - brincou a mãe.
- Peixe com saudade, mãe?
- Ué... Se pode ficar triste, pode ter saudade.
- Estou falando sério, mãe. Ele fica me olhando, triste. Desde que chegou, não comeu nada.
- Como é que você sabe? Você fica olhando pra ele o dia todo? Vai ver ele comeu quando você não estava vendo.
No dia seguinte, Juliana acordou cedo. Era sábado, não havia escola, mas mesmo assim ela pulou da cama cedinho. Correu para o aquário e ficou olhando.
Espantado grudou no vidro! Olhava fixamente para a menina. Abria e fechava a boca sem parar. Espantado.
- Será que ele está com falta de ar? - pensou Juliana ainda sonolenta.
Um segundo depois, percebeu a besteira que tinha pensado.
- Que bobagem! Ele deve estar é com fome!
Pegou a ração e atirou umas pitadas pela borda do aquário. Foi uma festa! Onze kinguios pulavam e se debatiam em volta da comida que boiava e fazia evoluções na água. Mas o décimo segundo peixe não desgrudou do vidro.
- Espantado, você não come nunca! Fica aí me olhando, me olhando... O que você quer? Conversar? Mas como é que a gente conversa com peixe?
Juliana pensou um pouco e resolveu brincar com o peixe pra ver o que acontecia. Encostou o rosto no vidro, olhou fixamente para Espantado e ficou movendo a boca como se fosse um peixe.
Dona Lurdes, mãe de Juliana, ficou espantada ao levantar e encontrar a filha imitando o peixe na sala.
- Filha, o que está fazendo aí, tão cedo?
Juliana não respondeu. Continuou com o olhar fixo no peixe e continuou movendo a boca em silêncio. Dona Lurdes puxou-a pelo braço.
- Juliana, estou falando com você.
- O que? - ela parecia ter acabado de acordar - O que foi, mãe?
- O que está fazendo aí? Conversando com o peixe?
- É.
- Eu, hein?
E ali ficou Juliana, o dia inteiro, fascinada pelo peixe. Espantado, ainda mantendo o ar que tinha lhe dado o nome, também parecia fascinado pela menina. Ambos ficaram o dia todo como que hipnotizados um pelo outro. Juliana não quis almoçar, não quis atender telefonemas de amigas e não se abalou nem quando a mãe de sua amiga Vera Lúcia apareceu procurando a filha.
- Eu pensei que ela estivesse aqui.
- Não, hoje não apareceu - respondeu dona Lurdes.
- Ai, eu não sei o que anda acontecendo com a Lucinha. - queixou-se a mãe que se recusava a usar o nome Vera, escolhido pela sogra quando a menina nasceu - Primeiro aquela esquisitice com o peixe. Depois se livra dele assim, sem mais nem menos, e agora some...
- Que esquisitice com o peixe?
- Ah, ela ficou maluca com um peixe que ganhou de uma menina da escola. Ficou dias sem fazer mais nada. Só ficava olhando o peixe, parecia que conversava com ele, ficava ali, olhando o aquário, fazendo boca de peixe.
Dona Lurdes ia ficando cada vez mais intrigada. E cada vez mais preocupada.
- Depois disso, resolveu que não queria mais o peixe - continuou a mãe de Vera Lúcia - Saiu com ele num saquinho e voltou sem ele. E hoje saiu cedinho e até agora não sei dela. Pensei que estivesse aqui. Será que a Ju não viu a Lúcia?
E foi entrando pela casa, com a intimidade que só as vizinhas conseguem ter, mesmo quando ninguém a dá.
Dona Lurdes estava boquiaberta, sem condições de dizer nada. Deixou que a vizinha visse por si. E o quadro era estarrecedor.
Juliana estava ainda em frente ao aquário, olhando para o peixe de uma maneira tão profunda que parecia mergulhada nos olhos dele.
- Ju, você viu a Lúcia hoje?
Dona Lurdes não sabia dizer se foi o tom nervoso da voz da vizinha, se foi a interrupção de uma atividade tão concentrada, enfim, ela não tinha idéia do motivo, mas Juliana, após a pergunta da vizinha, deu um pulo e desmaiou. Espantado começou a se debater dentro do aquário e a se atirar contra o vidro. Dona Lurdes ficou tão assustada que nem percebeu que a ordem dos acontecimentos talvez não fosse exatamente aquela.
Correu para amparar a filha que, antes de perder completamente os sentidos, olhou para a vizinha e disse, num murmúrio:
- Tá com medo...
Dona Lurdes levou a filha para o quarto e chamou o farmacêutico que morava na casa ao lado. Seu Otávio, prestimoso como sempre, veio correndo.
- A senhora sabe que eu não posso fazer esse tipo de coisa, eu não sou médico. Se souberem que estou aqui atendendo sua filha posso ter problemas.
Seu Otávio sempre chegava com esse discurso, mas atendia a todos na vizinhança e, em geral, suas conclusões e suas prescrições davam certo. Dessa vez, após examinar a menina, ele disse que não havia problema algum, que talvez fosse coisa da idade, afinal, ela já era uma mocinha. Mas, dessa vez, ele estava enganado.
Seu Otávio foi embora e, apesar de Juliana ainda não ter acordado, dona Lurdes se tranqüilizou. Não devia. Mas não podia saber.
Quando a menina acordou não demonstrava nenhuma anormalidade. Mas não se lembrava do que havia acontecido. Quando o pai chegou, à noite, nem parecia que ela tinha tido qualquer problema. Estava normal, sorridente. A mãe, confiante no diagnóstico de seu Otávio, nem comentou nada. Preferiu falar no sumiço da filha da vizinha, assunto muito mais interessante e mais assustador.
- Eu sempre achei essa Vera Lúcia meio esquisita.
- Esquisita como? - quis saber o marido, que até simpatizava com a menina.
- Ah, sei lá, ela parece meio oferecida. Está sempre de olhos compridos nos meninos da rua.
- Ah, mas isso é natural da idade. A Ju também anda arrastando asa pra um ou outro.
- Pois eu acho que é por influência dela.
E pelo resto da noite, a conversa girou em torno de Vera Lúcia, a desmiolada Vera Lúcia, a oferecida Vera Lúcia, a desaparecida Vera Lúcia. E Juliana, esquecida dos cuidados dos pais, foi se deitar. Todos foram dormir. Dona Lurdes teria motivos de sobra pra se arrepender disso. Mas ela jamais saberia. Teria apenas um vislumbre de que algo lhe havia escapado. Apenas a vaga lembrança de que, um pouco antes de dormir, naquele momento em que se fica entre o sonho e a realidade, ela teria tido uma ligeira visão da filha olhando para Espantado. E uma frase intrigante, na voz da menina, teria ecoado em sua mente como um último recado, um derradeiro aviso do que estava por vir: "Tá com medo".
Os meses se passaram. Vera Lúcia continuou desaparecida. Os pais chamaram a polícia que investigou a vizinhança e nada descobriu. A história virou notícia no bairro. A família de Vera Lúcia não teve mais um momento de sossego. As pessoas sugeriam de tudo, desde seqüestro até fuga com algum homem adulto. Os pais não queriam mais ficar ali. Entristecidos, sem esperanças de encontrar a filha de volta, mudaram-se. Foram para outro bairro onde, ao menos, ninguém soubesse de sua história e não aumentasse sua tristeza fazendo comentários mórbidos e maldosos todos os dias.
A tudo isso, Juliana reagia apenas olhando para Espantado. Não mais durante o dia. Não mais provocando a curiosidade ou a estranheza de seus pais. Mas todas as noites ela se levantava e ficava durante horas em frente ao aquário, olhos fixos nos olhos do peixe, a boca se movendo, abrindo e fechando, abrindo e fechando. Até que uma noite...
Madrugada... Todos dormindo. Juliana ouvia, de seu quarto, o alto ressonar de seu pai. Ela se levantou e, movida por alguma coisa que ela não sabia explicar, dirigiu-se para a sala. Não acendeu a luz. No escuro, foi até o aquário. Ajoelhou-se, colou o rosto no vidro e ficou olhando para Espantado. O peixe multicolorido já estava encostado ao vidro pelo lado de dentro, como se estivesse à sua espera. Boca abrindo e fechando, abrindo e fechando... Olhos fixos nos olhos dela. Juliana começou a fazer os mesmos movimentos com a boca. Olhos fixos nos olhos do peixe. Pensamentos confusos. Pela primeira vez tinha pensamentos sobre o que estava acontecendo. Já havia feito aquilo por noites e noites, mas dessa vez se questionava. Por que estava ali, no meio da madrugada? "Tá com medo". A frase voltava, de repente, à sua cabeça. Como conseguia ver o peixe no escuro? Boca abrindo e fechando. Tudo era estranho. Mas ela não relutava. Por que não relutava? O que estava fazendo ali? Vera Lúcia. Boca abrindo e fechando. Olhos fixos nos olhos do peixe. Espantado. Pensamentos espantados. "Tá com medo". Pensamentos lentos. Olhos do peixe fixos nos olhos dela. Juliana. Vera Lúcia. "Tá com medo". Peixe com medo? Se pode ter saudade... Boca abrindo e fechando. Tontura... Tontura... Torpor... O ar pesado. Juliana olha fixamente os olhos do peixe. Tudo é pesado. Tontura. Juliana olha fixamente os olhos do peixe. "Tá com medo". Ar pesado. Tudo é pesado. Movimentos lentos. O ar segura os movimentos. Juliana olha fixamente os olhos do peixe. O ar está esquisito. Juliana olha fixamente os olhos do peixe. O ar está grosso como água. Juliana olha fixamente os olhos do peixe. Não! O ar não está grosso como água. É água! Juliana está envolvida em água! Juliana olha fixamente os olhos... da Juliana!
- Meu Deus! Como? Como é que eu estou olhando pra mim? E por que essa água toda em volta de mim? É sonho... Eu tenho que acordar.
Tenta gritar, chamar a mãe, mas de sua boca saem bolhas. Juliana vê ela mesma se levantar, sorrir aliviada e se dirigir para o quarto. Juliana se vê virando-se para ela e se ouve dizer:
- Tá com medo? É assim mesmo. Mas, se for esperta, você volta logo. Amanhã eu te ajudo.
Juliana passou o resto da noite nadando... Nadando... Tentando quebrar o vidro do aquário que agora a envolvia. Começava a entender o que havia acontecido. Não entendia como nem por quê. Mas sabia que estava no aquário, com os outros onze peixes. E sabia que devia estar com um ar bem espantado.

* * *

Gabriela já tinha visto muitos peixes na vida. Peixes grandes, peixes pequenos... Mas nunca tinha visto um peixe tão bonito como aquele multicolorido, com cara de espantado, que havia recebido de presente de sua vizinha, Juliana, um dia antes do desaparecimento dela.
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