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Artigos-->As muitas evas -- 09/03/2000 - 19:41 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
No trânsito às 19h30min:

A minha alma nacional é crudelíssima - interpreta lumes por entre as frinchas do amor incendiário, filtra-os a modo de um quebra-luz, até confiscar para si um único lampejo, julgando ter decifrado o grande enigma. Isso não resolve nada, porque o crime, tanto faz, permanecerá sem culpado e sem vítima, até que alguém o esqueça e arrebente de vez a corrente do que era fato.

Toda a massa populacional anseia por um slogan, berra modas, cria personagens, inventa pesadelos. A respeito desta minha voz, eu venho repetindo que, urdida de uns (poucos) exageros, não encontrará par tão cedo - um eco -, pelo menos enquanto durarem as litanias malévolas. Devo policiar minhas intromissões no cenário, apenas freqüentando com assiduidade uns poucos momentos meus, senão já adianto que serei a próxima a estancar passos num beco sem saída, cercada de bom muro de Berlim ou intransponível muralha da China, sem a menor possibilidade de fuga na hora em que soar a sirene bombástica. Assim como as tais viúvas prostitutas, de véu escondendo bocas - que mulheres veementes! Pois a partir de hoje eu as deserdo de sua nobreza, afinal não existem pra valer viúvas que se tenham tornado prostitutas - eu pelo menos não conheço nenhum caso, então "para mim", não existem tais espécimes, e pronto. Só o rasgo do jornal calunia a história apócrifa e ventila a notícia aos quatro cantos.

O mundo procura balizas - estrelas e céus só em último caso. Palavras bonitas, nunca. Jóias, nem pense: fast food! -- e vai o lixo virando peça contemporânea, ícone muito cult, com direito a luz desmaiada e tênue, num beco chique de museu. Pois saibam todos que em minha casa sou discípula do triturador, sem mágoa. Moer, moer, moer, para depois esculpir o magma, e nunca mais saber notícia dessa saudade. O que era biodegradável o peixe comeu e engoliu. Veio a reciclagem. E se grilos cantam e sapos coaxam, esse é assunto de outro ecossistema que não me diz respeito.

Ninguém teima nada hoje em dia, que parece mais tranqüilo amar o que já vem bonito e pronto: apascenta a alma madura. Procurar a beleza no feio é exigir demasiada loucura. Que importa a certeza das nuvens à noite, em vigília sobre cabeças descobertas à cata de carinhos? Cadê o mendigo, o gato? O brejo? Esses é que dariam conta de cada raio prateado ou mesmo do papel carbono de um dia que ninguém viveu. E daí, se não estive ali para presenciar?

Mas ainda não aconteceu nenhuma história, nenhum herói se sublevou, permanecemos pacíficos automóveis neste engarrafamento, um olhando para os faróis do outro, à espera de um semáforo, e nada mais. Nada de mais. Normais. Mudemos o CD.

Tanto rezei para que no momento exato eu estivesse pronta para achar tudo de um bonito e de um aprazível a perder de vista. Minha volubilidade! - dela fujo porque às vezes eu sinto uma coisa e tudo me vem de boa graça, daí a pouco já não estou tão caída de amores, então: que na hora exata eu esteja pronta para ver tudo em cores e pulsando vivo; que minhas águas não se turvem à situação injusta de eu ter que me refazer a cada minuto, virando-me de meus avessos, tirando e vestindo abas, e tendo ainda que me achar, a mim mesma, no perene, no preconcebido, no finco.

A barafunda que me traceja a silhueta não condiz com o aprendizado cartesiano que me vem em chuvinha de conta-gotas. Eu queria mesmo era algo mais preto no branco, casamento do custo com o benefício, tipo "afinal isso exige que credencial? Essa? Aqui, coma-a". Digamos que o preço seja honesto para tanta generosidade despendida às personagens que venho vestindo de evas, distintas senhoras errando em seus mundos. Todas me saem bonecas, títeres exangues de paixões. Eu as respiro e guardo em meus escaninhos, para compor, quando der e puder, a suma teológica, ao sabor do veneno de lábios túrgidos, num ensaio de meus silêncios, como se de minha boca fosse voar uma verdade densa e espectral - divina -, como se o calar fosse uma dádiva, o jejuar compensasse a fome. Se eu fosse perene, eu teria a meu dispor algum embrião gêmeo, sei. Mas desde que sou passageira, condeno-me a vagar nesse trem em busca de algo que só me semelhe e já basta, um troço que me equilibre no anzol de um freio, algo. Sou a única sublime nesse meu mundo infame, entoando refrãos para mendigar moedas. Merda! De toda a minha linguagem de transgressão, o único gesto mais ousado é eu-te-amo.



Dia seguinte, pelas ruas, pagando contas, etc.:

Agora estou aqui. A promessa não se cumpriu, o riso do retrato. Tudo em paz ao meio-dia. Nada importa e ao mesmo tempo preocupa, num algo que, ao que sei, vem numa liberdade de quintal sem cercas, e se me põe de enxerto, artificial. Sou eu que te velo, anjo noturno de asas depenadas. Anjo noturno, sou eu, sou eu.

Quando o cheiro de gasolina misturou-se à fogueira do asfalto, quebrei um ovo no acostamento e deu para sentir o cheiro do coração em brasa. Ah, me conte uma história para dormir, de cenário falso! Todos querem e suplicam uma história diferente desta. Criticar acerbamente os excessos. Assuntos que tocam a algo mais político, mais socioeconômico. Com o concurso de compósito grupo a berrar motes publicitários. Ai, uma dor me escapa desta janela! Que eu não tenho o talento repentista.





Num dia qualquer de outubro de 1997, sei que era uma quinta-feira, e:

Uma de mim sentou a alma na pedra e olhou para as pernas jeans azuis. Assim permaneceu um sem-tempo à disposição do céu aberto, naquele canto encharcado de mijo. Desde aquela data, ela se lembraria daquele endereço por onde se espalhavam mamonas mendigas, que, se não pensasse nelas, dava para notar a simbiose dessas vidas com a onipresença da mulher-rato. As pedricas do chão não fora ela que colocara, isso não. O lixo que o sol bronzeava, a bosta seca do cachorro, tudo escárnio da natureza a quem procurasse filosofias debaixo de cada tijolo.

Aquela agenda morreu em outubro, no dia em que a tal moça se plantou na paisagem do beco. Era para criar raízes e ela fincou-se para valer, sob o chão de estrelas que o céu lhe debruçou, lá e cá uns poucos assobios de chuva. Natural.



O motivo de tanto... alheamento?

Um encontro marcado a que ninguém comparece. Fica o cenário em excesso. Como o antevisto nunca chega, o romance permanece. Enquanto se espera, contam-se verrugas na pele branca. Todas malignas. Tumores condenáveis, sentenciados, prisão perpétua. Faltou o amém sacramentado, desde o dia em que ela saíra vestida de pantera negra, mulher da noite, algemas nas orelhas - que ela não era de ferro, porque mulher, então sabia esconder seus servilismos com diligência, e tal e coisa -, nesse dia vestiu a carapuça e cantou o tralalá que lhe deu na telha. Precavida, guardou a última lágrima para regar a ponta de ansiedade que começava a borbulhar sob a tampa da chaleira. O chá de frutas cítricas caiu bem - não fosse o gosto de groselha -, e afinal sabia que fora enganada, comprando lebre por gato, mas, no fim, dava na mesma. Olhou para os olhos desenhados, a boca curingada de batom vermelho, a cara branca de giz, os tomates redondos na bochecha. Ela era a cara dela, ali sem tirar nem pôr.





A quem interessar possa:

Quem quiser pagar para ver, a moça de outubro permanece até hoje no beco de mijo, entre trepadeiras e latões de lixo, e, mesmo que o veludo negro me escorregue do cabide, mesmo que eu o povoe com este meu corpo, quando penso na moça de outubro, a vestimenta vira bandalho. Quisesse ou não quisesse, os mais tenebrosos sentimentos povoaram a moça naquele dia, até que seu coração fez-se mais deserto do que ele até então se permitira. Ela tentava que tentava recordar um tema que lhe viesse num tapa, para não enxergar o tempo que lhe sobrava, mas o instante era de ser sorvida pelo tubinho preto, maior medo de ficar entalada e ter que gritar por socorro. Nenhuma vida a queria, nem mesmo a dela. Até o gato que vasculhava as moitas ignorou-a solene.

Rococós e rapapés, casquem fora! - arrojou longe o colar de pérolas que lhe custou um mês de martírio. Ainda deu tempo para que o choro das pérolas (verdadeiras) se consumasse, debulhando lágrima a lágrima toda a pedraria sobre o latão de óleo diesel. O que lhe tiraria a idéia de prenúncios? O respirar do dia, objetos personificados, pessoas concretadas debaixo do sol amarelo... nada disso. Ela vinha se divertindo criando pistas falsas com mapas verdadeiros, que a máxima mentira parecia de uma verdade insofismável, mais ainda do que a que ela própria, a moça, se contava antes de dormir, quando emaranhava os recortes da vida vivida hodiernamente para depois grudá-los na primeira parede.



Como os dias foram passando um a um:

Um garço olhar chamando a zoada de gatos pingados atrás da falsa lua de olhos fosforescentes, raios X de chapas negras do espaço escuro que matou o borrão branco sete cores do que era um dia cheio de agouros vivos. Ela era uma única alma? Pois cortou-a toda ali mesmo, a caco de vidro, e pôde ver que o veio de sangue não era de glóbulos nem de células: puro champanha em rega da trepadeira de são-caetano. Um milharal de coisas para fazer, e essa agora?

Dissipação bravia açulando a verve. Casca-grossa, boneca pulguenta atirada nas achas de lenha, dando seu recado, alvoroçando os presságios. Chapinhou o que pôde na poça de óleo e lume sob o sol em eclipse que sorria volúvel à primeira luneta. A moça precisava de muletas e, por onde andava, carregava ao pé de si algum pobre coitado. Desta vez, nem o gato.

A situação inquietava pela permanência de um porvir que nunca se apresentava. Tudo de uma petulância, própria de quem não se sabe o maior dos ignorantes - esse mestre Tempo. Mas como xingar o tempo e seus melindres? Esse deus mesmo é que não podia oferecer-lhe nada. Melhor dizendo, podia oferecer-lhe somente uma guerra não declarada - a pior de todas - entre evas que não brincam mais de roda. De todos os frangalhos, valeriam a pena talvez as boas lembranças do que eram fábulas cotidianas, e tudo de repente pareceu tão eterno quanto o cheiro de um bom perfume. Ah, vida certa, morte mais bela, evolando até o azul-celeste!



Chegando em casa à noite, depois do trabalho, cansada e robótica, eu:

Aqui neste escuro, as imagens ganham dimensões de Ilha da Páscoa. Vai ficando bonito. Recrio tudo e mando ver. Quero e posso e consigo e me dou de presente a mim. A mais bela Cinderela/ foi aquela, foi aquela/ que o bicho um dia comeu/ e nunca mais esqueceu./

Entro no chuveiro de roupa e tudo (sapatos inclusos).





Não adianta querer passados - a vida não tem reprises, mas:

Voltando lá, eu quis casar os corpos, o de antes era o corpo meio-meu meio-seu, nosso, o idealizado de mim no espelho de seus cristalinos. Agora eu era uma face oca em busca da face perdida de uma noite a navegar sonâmbula, estrelas de naftalina rebrilhando no negro do veludo obscuro daquele vestido de baile, escorregadio vestido de baile exato. Para matar a pau (eu naquela noite). Sem deixar rastro de canseira. Mas quem usa uma pele como essa não está pronta para bancar a Cinderela.

Só minhas jóias me protegiam deste corpo nu e vivo.



Enquanto eu caminhava, visitando becos de ontem:

Não me tenha em bom nome. Resolva o drama assim: me invente um pseudônimo. Escrevi o nome no chão e o capeta passou o rabo. Inconsúltil, um mistério ronda a pradaria aonde irei nunca. Torque não há quem me diga que seja - vou morrer sem desvendar essa verdade. Quando o cara tem o que dizer, aí é que se silencia! Todo o urgente deveria ser obrigado a uma exclamação antes, à espanhola. Quer dizer: tenho direito a ensaios antes da estocada final da misericórdia. Deliberadamente me coloco à disposição da situação que já vivi, permito-me, mas sem me lembrar do protótipo, da viga mestra por onde tudo começou. Pelo contrário, vem-me a forte impressão de que a situação é completamente determinada pelas balizas do momento. O próprio entrecho do romance queria comunicar isso. Não que eu não fosse amada e agora estivesse sozinha, eu com minhas imagens engessadas, mas talvez eu me fizesse amada apenas para depois sentir o gosto do abandono e marcar encontro com a escorpião de outubro que eu deixara me esperando no beco, eterna e para sempre.

Pobre moça, se soubesse que seu sonhado encontro era comigo! A folhas tantas, aquela boneca virou meu marcador de página. Para que nos dessem ouvidos, cantamos juntas uma canção de esfera solta no bamboleio giratório na cintura da menina. Minha cabeça de vento ansiava pelo aperto do botão certo. Mas pois é! Se viver era desonesto, morrer parecia assaz concreto. Uma pessoa muito absoluta eu queria ser. Hoje sei: vou voltar. Armada de fone. De telefone celular.



O que eu sei que a moça de outubro deve pensar desta de hoje:

Ela faz isso para. Sempre desejando algo. Sempre para frente Brasil. Assistindo a todas as partidas do Juventude Esporte Clube. Tente não interpretar! Isso deve ser uma experiência enriquecedora, lembre-se. Essa teimosa não me ouve.





Uma nota de pé de página:

Ao gênio que me suplicou três pedidos eu lhe dei: 1) uma paisagem de girassóis; 2) com moinhos de vento; 3) num deserto imenso. Para ser lembrado, você tem que se preocupar com os outros, não era esse o ensinamento? Desatavie-se.





E continuando:

Mas onde flanaria a de mim, completa, que só eu tinha certeza de que existia? Só uma bússola e mais ninguém ou nada poderia me dar o rumo dela. Quase eu ouvi o tamborilar do seu coração dentro de mim, não estivesse essa última boneca presa num copo de vidro.



Quando nos encontramos - eu e a de outubro:

Ganhei confiança e comecei a puxar papo, entre pregos enferrujados, música de fundo tintilando campainha, metal, sino - eu estava viva, colecionadora de bons vexames e tudo. A minha mais recente edição me viera plena de excelência, dei-lhe esta boa notícia. Estremunhei ao reflexo de uma poça volátil de óleo. Deu vontade de repetir alguma faxina e abastecer-me de rodos, vassouras e panos de chão. Apagar os borrões, as grafites.



O abandono:

Foi naquele dia tal, às tantas horas, minutos e segundos, sol e sombra, tarde e noite, que abandonei ali aquela boneca estouvada, sofrendo de mal de Parkinson. Desalinhada e de olhos tristes. "Fique onde está, manequim contemplativo, botas de canos curtos, corpo estirado na grama falha! Essa última que pari não sei se mereceria tanto manejo meu. Foi saindo de mim carregando cacos, carregando cacos, até construir seu lar na gruna sob a ponte. Agora o universo é seu, não tem que pagar um centavo pela paisagem grandiloqüente. Que mais quer de mim?"



A única coisa que ela respondeu (parecia bêbada):

"Passo."



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