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Contos-->Quadro a Quadro -- 14/04/2001 - 11:47 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aldo era um homem de bem com o mundo. Estava se aproximando de seus cinqüenta anos, morava sozinho em um apartamento próprio, amplo. Não tinha grandes contas e nenhuma dívida.
Mas não fora assim a vida inteira. Aldo tinha tido uma família, estivera casado por vinte e dois anos. Dois filhos, um menino primeiro, em seguida uma menina. A diferença de apenas dois anos entre eles tinha tornado as coisas muito difíceis no começo. Se um bebê dá trabalho, dois tornam a vida bem complicada. Mas quando os dois cresceram mais um pouco, Aldo e a mulher viram que tinham feito o melhor. As idades próximas facilitavam as coisas. Passeios, brinquedos, filmes, escolas, tudo era feito para os dois ao mesmo tempo, sem prejuízo de nenhum.
Aldo era desenhista dos bons. Cedo se deu bem no mundo das artes gráficas e, embora tivesse tido na juventude o sonho de um dia ser um grande pintor, fez fortuna com os quadrinhos e com desenho publicitário.
Já fazia cinco anos que sua esposa tinha falecido. O desabamento de um andar do edifício onde ela trabalhava como secretária bilíngüe tivera como saldo doze feridos e três mortos. Entre os mortos, ela. Aldo ficou desolado e quase abandonou a própria vida. Deixou seus trabalhos de lado, passou meses trancado no apartamento, não queria receber ninguém, não queria falar com ninguém. Seu filho mais velho, que estava vivendo em Amsterdã, escrevia cartas, telefonava, mas Aldo não respondia às cartas e era lacônico ao telefone. A filha mais nova, casada havia três anos, vinha de vez em quando, cuidava de algumas coisas do pai, mas foi desistindo de conversar com ele. Aldo não queria conversa. Passava horas olhando para a única imagem que tinha da falecida esposa. Ela detestava fotografias e as únicas que havia eram dela bem jovem, antes de se casar. Por isso, Aldo tinha resolvido pintar um quadro. Ela não precisaria posar. Ele pintaria de memória, nos horários em que ela não estivesse em casa. Faria uma surpresa. E fez. No último aniversário dela, a presenteou com o quadro, já emoldurado. Agora, aquele quadro era o que lhe restava de lembrança.
Mas o tempo passa, a vida continua, Aldo nunca fora um homem de se entregar de vez às dificuldades. Sempre tinha sido um lutador, um batalhador, e superar a dor da perda se tornou uma batalha a ser vencida. Voltou ao trabalho, voltou à rotina, os anos foram se sobrepondo e cada ano colocava uma camada a mais de esquecimento cobrindo a dor.
Aldo estava de novo de bem com o mundo. Com uma vida estável, já não precisava se dedicar tanto ao trabalho e podia se entregar por mais tempo ao que gostava de fazer. Viver sozinho, agora, já não era mais uma coisa solitária. Ele tinha amigos, tinha um largo círculo social e, como ainda era um homem interessante, até tinha namoradas eventuais.
Como todo ser humano com um sonho, Aldo transformou seus anseios de juventude em hobby. Ele não tinha conseguido ganhar a vida como pintor, não teve a chance de pintar quadros que fossem admirados pelo mundo. Até uma certa idade, isso o incomodou. Mas depois de ter pintado o retrato da esposa, ele descobriu que se satisfazia com a admiração dos amigos. Ele já não precisava mais de um grande público e críticos de arte louvando seus trabalhos. Pintar para que um pequeno grupo visse e admirasse já era o suficiente.
Foi assim que Aldo passou a fazer retratos dos amigos.
Primeiro pintou o Gustavo, velho companheiro dos tempos difíceis, amigo de juventude que tinha se conservado fiel durante toda a vida. Com o Gustavo ele tinha tomado sua primeira cerveja. Com o Gustavo ele tinha ido ao seu primeiro acampamento. Eles tinham sido hippies juntos, tinham brigado juntos contra a ditadura, Gustavo foi quem lhe apresentou, numa mesa de bar, aquela que mais tarde seria sua esposa.
Depois pintou Débora, uma ex-namorada que, apesar de ter-lhe dado o fora na juventude, nunca se afastou de sua vida, tornando-se uma de suas melhores amigas.
Chicão, o sexagenário dono do bar que ele freqüentava havia mais de vinte anos, foi o terceiro modelo.
Escolheu essas três pessoas como uma homenagem. Eram as mais próximas e as que conviveram mais tempo com ele. Pintou seus retratos e os pendurou em sua sala, ao lado do quadro da esposa que agora já não era mais motivo de dor e sim de orgulho. Ela não mais existia, mas o quadro passara a ter valor por si, por sua qualidade, pela delicadeza nas cores, pela precisão dos traços.
Depois que terminou os retratos dos mais íntimos, tarefa que consumiu algumas semanas, Aldo decidiu que não iria ficar só fazendo homenagens aos mais velhos. Resolveu continuar pintando gente que conhecia. O porteiro do prédio em que morava também mereceu uma pintura. Afinal, o homem fazia enormes favores a ele, desde receber encomendas e guardá-las com carinho até mentir para visitas indesejáveis, ou cobradores, nos maus tempos. A recepcionista da agência para a qual trabalhava, Mônica, não tinha nada de especial, era uma moça bonita, sim, mas como tantas outras. Só que seus olhos verdes impressionaram Aldo e ele guardou aquele rosto e aqueles olhos em um belo quadro na sua sala.
Realmente Aldo voltara à vida e estava de bem com o mundo. Passou a escrever para o filho na Holanda, e voltou a receber a filha e o marido com longas conversas nos fins-de-semana. Num desses fins-de-semana, a filha, olhando os quadros de pessoas que ela conhecia na sala do pai, teve uma crise de ciúme.
- Você pinta todo mundo. Mas nunca fez um retrato meu. Nem quando eu era pequena, nem agora depois de grande.
Aldo suspirou. Filhas! São tão melindrosas... A vida inteira tinha sido assim. Ela sempre achava que o irmão tinha mais coisas, que as atenções eram para os outros, nunca para ela. Por mais que ele e a esposa fizessem, ela sempre dava um jeito de fazer um biquinho e se queixar de alguma coisa. Mas no fundo ela sabia de todo amor de que era alvo. Aldo tinha verdadeira paixão pelos filhos e um imenso orgulho do que eles se tinham se tornado. Prometeu que o próximo retrato seria o dela.
Começou a cumprir sua promessa no dia seguinte. Preparou cavalete, tintas, tela e começou a esboçar o rosto da filha. Seria a pintura mais bonita de todas. A mais fiel. A mais perfeita. Tinha que ser.
Levou duas semanas pintando. Nunca ficava satisfeito. Sempre havia um detalhe, um retoque, uma coisa a mais a fazer. Finalmente o quadro ficou pronto. Decidiu que faria uma festa. Convidaria todos os amigos e a filha. No meio da festa, mostraria o quadro a todos. A filha ficaria contente com essa demonstração pública de seus sentimentos.
Mas nem tudo é como planejamos na vida. Ele teve que cancelar a festa, pois naquela semana ocorreu um fato muito triste. Não se podia fazer uma comemoração, estando todos, especialmente ele, de luto. Gustavo, o velho amigo de tantos anos, havia morrido. Atropelado. Não se tinha notícia do carro, nem do motorista. O corpo fora encontrado de manhã, pelo pessoal que entregava jornais nas bancas. Gustavo estava caído próximo à calçada, os ferimentos no corpo levaram o legista a concluir por um atropelamento. Devia ter acontecido na madrugada, Gustavo era um eterno boêmio. Alguém o atropelou e a ausência de testemunhas garantiriam a impunidade do causador do acidente.
Com Gustavo morto, não podia haver festa. Aldo guardou o quadro e decidiu deixar o tempo passar um pouco para mostrá-lo a todos como ele havia planejado.
Mas parecia haver alguma coisa querendo impedir a exibição do retrato da filha. Duas semanas depois, Débora tropeça perto da janela e cai pela sacada. Ela morava no primeiro andar e a queda não fora grande o suficiente para matá-la. Mas talvez ela mesma preferisse ter morrido. Caiu com a cabeça na calçada em frente ao prédio. Pequeninas células cinzas tão invisíveis quanto vitais foram destruídas com a pancada. A coluna afetada com o choque. E Débora, a eterna ex-namorada, a grande amiga de toda a vida, não mais existia. Agora era um corpo inerte, ligado a máquinas, insensível, sem movimentos, sem reações, sem sentimentos, sem sonhos. Era melhor que estivesse sem vida.
Aldo começou a estranhar o fato de não se sentir tão triste quanto deveria com os últimos eventos. Ele cancelou a festa, não fez reuniões em casa em respeito aos amigos, mas não se sentia triste com o amigo morto e a amiga em vida vegetativa.
Desistiu da apresentação festiva, simplesmente ligou para a filha, pediu que ela o visitasse no fim-de-semana e pendurou o quadro na parede. Colocou-o à direita dos outros que estavam perfilados. Afastou-se para olhar e, com isso, pode ver todos ao mesmo tempo.
Uma idéia estranha o acometeu, um pensamento sombrio passou por sua mente, e ele logo o afastou como sendo absurdo. Mas teve que voltar a pensar no assunto cinco dias depois, ao saber que o bar do velho Chicão tinha sido assaltado, Chicão tinha reagido e morrera com três tiros desferidos por um dos assaltantes.
Correu de volta para casa e ficou olhando para os quadros, intrigado. Da esquerda para a direita, ali estavam todos. Sua esposa, Gustavo, Débora, Chicão... Todos mortos. Em circunstâncias trágicas. Débora não estava morta, mas era como se estivesse. Os quadros teriam alguma coisa a ver com aquilo?
Ele não conseguia mais pensar em outra coisa. Os dias foram se passando, ele mal dormia, não comia, a idéia de que seus quadros estavam matando pessoas era ao mesmo tempo aterrorizante e fascinante. Como? Como aquilo poderia acontecer? Não tinha coragem de falar com ninguém sobre o assunto. Não se abria, não conversava, foi se fechando novamente, passou a ficar em casa mais tempo do que devia, como antes. Como tinha feito quando sua esposa se fora.
A filha visitava, ele não falava. Antes ela ainda sabia o motivo, mas agora não tinha idéia, não podia passar pela sua cabeça que o pai estivesse afundado na sensação de ter pintado quadros assassinos.
Aldo pensava, pensava e pensava. Ele tinha que entender como aquilo podia acontecer. Ou seria só coincidência? Não... Não podia ser... Os quadros tinham que ter alguma ligação com as tragédias. Pobre Gustavo. Se ele não tivesse pintado o amigo, talvez nada tivesse acontecido. E Gustavo não merecia. Nunca tinha feito nada de mau na vida. Pelo menos não voluntariamente. Aldo esboçou um sorriso triste ao pensar que talvez a única coisa ruim que Gustavo tivesse feito fora tê-lo apresentado à esposa. Não que isso tivesse sido ruim. Mas se ele não a tivesse conhecido, não teria sofrido o que sofreu com a morte dela. Gustavo tinha feito o amigo sofrer porque, anos antes, tinha feito o amigo feliz. Mas isso não tinha sido de propósito. E a coitada da Débora? Quantas vezes o ajudou, quantas vezes o apoiou e foi sua tábua de salvação? Grande criatura, a Débora, mulher fabulosa! Ele até teria se casado com ela, se não tivesse sido rejeitado como namorado. E se tivesse se casado com ela, não teria sofrido a dor da perda da esposa. Uma idéia monstruosa foi se formando em sua mente. Chicão! Onde se encaixaria o Chicão? Claro! Tinha sido no bar dele que Gustavo fizera a apresentação que resultaria no casamento! Se o bar do Chicão não existisse, ele talvez nunca a conhecesse!
- Não! Não foram os quadros! Fui eu! Externamente eu deixei de sofrer com a morte dela, os anos foram cobrindo a o sofrimento, mas a dor não deixou de existir. E alguma coisa dentro de mim responsabilizou meus amigos por isso. Por isso eu não me entristeci... A pintura dos retratos foi só a exteriorização de um plano que nem eu mesmo sabia que estava concebendo! Que horror! Eu matei meus amigos! Minha raiva por tê-la perdido alcançou todos eles e executou uma vingança. Uma vingança que eu não queria!
Mas tinha acabado. Os quadros seguintes eram de gente recente, tinham sido pintados por mero diletantismo, não tinham ligação nenhuma com a história. E ele tentou ficar em paz com essa idéia. Tentativa que foi frustrada no terceiro dia, ao saber, logo de manhã, que o velho porteiro do prédio tinha subido ao último andar para consertar a bóia da caixa d água e caíra lá dentro, se afogando em seguida.
Aldo enlouqueceu. A maldição continuava. Iria atingir a todos. Seu ódio inconsciente tinha se soltado e não havia mais controle. Já havia impregnado as telas e dali partido para o mundo. Para uma vingança sem medidas. Ódio puro, sem freios, sem as amarras da consciência, pronto para se abater sobre as vítimas. E as vítimas estavam marcadas na parede da sua sala.
Ficou prostrado no meio da sala, abriu uma garrafa de uísque e começou a beber. Bebeu, bebeu, até quase cair. O mundo girava em torno dele, os quadros não paravam quietos à sua frente, numa dança macabra, cada rosto passando por seus olhos como cobradores infernais, vindo receber o pagamento de um serviço que estava sendo executado sem que alguém houvesse encomendado. Bebeu mais e mais, sentiu que ia perder os sentidos pelos efeitos do álcool. Mas antes de desmaiar, teve uma idéia. Se ele destruísse os quadros, talvez tudo terminasse. Conseguiu, a muito custo, alcançar o retrato da Mônica, a linda moça de olhos verdes da agência. Com uma espátula, desfez toda a tela. Em movimentos frenéticos e enlouquecidos, cortou aquele rosto em tiras. Depois bateu com a moldura na mesa até quebrá-la em pedaços. Em seguida o torvelinho o sorveu. Sentiu-se caindo em um vazio e tudo à sua volta foi se apagando.
Acordou com sensações horríveis, um gosto amargo na boca, a cabeça doendo, ainda um pouco zonzo, o estômago embrulhado... Não se lembrava direito das coisas, sabia que havia bebido demais, só não sabia o porquê, as idéias ainda estavam embotadas. Dirigiu-se ao banheiro, tirou a roupa, abriu o chuveiro e tomou uma ducha fria. Aos poucos seus reflexos foram voltando, suas idéias se aclarando, foi se lembrando de tudo. E o telefone tocou.
Enrolou-se em uma toalha e foi atender. Era um dos diretores da agência comunicando que estava cancelada a reunião que havia sido marcada para a tarde. Eles gostavam muito da moça da recepção e se sentiam no dever de ir ao velório.
- Como... Como assim? Que velório?
- A Mônica... Coitada. Foi encontrada morta no apartamento. Ela mora com uma amiga que trabalha à noite. Quando a amiga chegou, de madrugada, encontrou a porta arrombada. A coitada da Mônica foi estuprada e morta a facadas. Dizem que foi horrível. Dezenas de facadas! Ela estava em tiras!
Em tiras! Aldo largou o telefone e correu para a sala. Procurou os pedaços do quadro que havia destruído e não encontrou nada. Olhou para a parede, e lá estava, sorridente, vivo em suas cores, com brilhantes olhos verdes, o rosto da Mônica! O quadro estava inteiro e em seu lugar!
- Não é possível! Eu destruí você! Ou não? Bebi tanto que imaginei aquilo? Não, não... Eu destruí sim. Cortei você todo! Em tiras! Meu Deus, em tiras!
Aldo sentou-se em uma cadeira e ficou olhando para a sua galeria macabra.
- Não há o que fazer. Está descontrolado. Vai acontecer até o fim. Todos estarão mortos. Na ordem em que foram pintados. Gustavo, Débora, Chicão, o porteiro, Mônica... e... Não! Não!
O último quadro! Sua filha! Ela era a última da galeria. A última da fila. Ele tinha que fazer alguma coisa! Já tinha sido o responsável pela destruição de todos, mas a da filha não. Talvez houvesse tempo! Talvez pudesse fazer alguma coisa!
- Destruir o quadro não adianta. Então, quem sabe... Quem sabe?
Levantou-se, arrumou o cavalete, tintas, pincéis, tela e começou a trabalhar como louco.
O filho, quando soube, veio voando da Holanda. A irmã tinha ligado para ele e avisado do repentino falecimento do pai. Ela e o marido tomaram todas as providências para o sepultamento. O irmão não chegou a tempo para o serviço fúnebre, mas ficou no Brasil até a missa de sétimo dia. Foi com a irmã ao apartamento que tinha se mantido intocado desde que o corpo fora encontrado. Viu como o pai tinha vivido nos últimos dias e voltou para Amsterdã. Durante a viagem, teve muito em que pensar. Por que o pai tinha deixado a porta do apartamento aberta? Ele sabia que ia acontecer alguma coisa e queria ser encontrado logo? Por que tantas garrafas espalhadas pela sala? O pai sempre gostara de uma bebidinha, mas não era um alcoólatra inveterado. E finalmente, que maluquice teria sido aquela de, em seu último dia de vida, pintar um auto-retrato e pendurar a pintura na parede por cima do retrato da irmã?
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