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Contos-->Olhos Pretos -- 14/04/2001 - 11:53 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Encontrei com ela de novo, ontem.
O comentário foi feito entre um gole e outro de cerveja, de uma maneira quase casual. Roberto sabia que não era tão casual assim porque Otávio já tinha falado naquele assunto umas três vezes nas duas últimas semanas.
- Ela quem? A moça de olhos pretos?
- É... Fui lá de novo ontem.
- Cara, pára com esse papo. Você ainda vai ser internado! - sorriu Roberto, pedindo mais uma vodca.
- Não, espera um pouco. Eu não estou dizendo que acredito que o lugar exista.
- Mas não está dizendo que não existe.
- É que é tão real, Betão. E é tão bom estar lá.
- É só um sonho, Otávio. Chega dessa conversa. Enquanto você sonha com essa mulher de olhos pretos, tem mulheres nesse bar com olhos de tudo quanto é cor e você nem vê.
- Não, também não é assim. É claro que estou vendo. Mas não consigo parar de pensar. Não é fácil! É a vida toda, Betão!
Otávio tinha tido aquele sonho pela primeira vez aos doze anos. Na época nem ligou muito. Só achou muito gostoso. Afinal, quem não gosta de ser bem recebido por todos?
Ele chegava num lugar. Não sabia descrever de outra maneira. Era um lugar. Uma cidadezinha, um bairro, não sabia. Só sabia que estava andando por uma rua qualquer e de repente alguém dizia:
- Gente, o Tatá chegou!
Nunca, em nenhum momento de sua vida, tinha sido chamado de Tatá. Os familiares reduziam seu nome, quando muito, a Tavinho. Tatá era só lá. No lugar.
Após o grito, a festa começava. Todos saíam de suas casas e vinham ao seu encontro. As casas eram bonitinhas, nada de especial, um ou dois prédios pequenos, de três andares, no máximo, diversas casas térreas espaçosas, uma quitanda, uma padaria, uma lanchonete. Não havia uma farmácia, mas isso ele só notou anos depois. Todos corriam pra ele, sorridentes, dando boas vindas, algumas mulheres até se emocionavam.
- Ah, que bom que você veio!
Ele não ficava intrigado. Não ficava curioso. Parecia muito normal que todos o adorassem daquela maneira. Homens queriam conversar com ele, mulheres o convidavam para o almoço ou ofereciam bolos e doces que tinham acabado de fazer, crianças corriam para brincar com ele.
Marcava-se uma festa para mais tarde. Na festa, todos felizes com a sua presença, uma faixa ao fundo do salão com o nome Tatá escrito em letras grandes. Todos eufóricos, festivos. Todos, menos ela. Uma menina mais ou menos da idade dele, bonita, de uma beleza comum, nenhuma exuberância, mas que chamava a atenção. Vestida normalmente, nada de roupas de festa. Parada a um canto, braços cruzados, olhando fixamente para ele. Sem a euforia que atingia a todos. Apenas parada, rosto sereno, olhos pretos fixos nele. Pra onde quer que ele fosse, os olhos da menina o acompanhavam. Isso o incomodava e fazia com que acordasse. O sonho sempre terminava aí, com a aparição da menina de olhos pretos.
Um sonho gostoso, mas nada excepcional. Exceto pelo fato de, um mês depois, se repetir. Lá estava ele no lugar. Uma festa já estava acontecendo quando ele chegou. Todas as fachadas das casas estavam enfeitadas com flores. As pessoas corriam pra lá e pra cá, com os preparativos.
- Tatá, que bom que deu pra você vir! A gente achava que você não ia aparecer pra festa...
- É... Ia ficar chato sem você.
Mas antes do horário da festa, no meio do corre-corre alegre dos habitantes do lugar, ele olhou para a porta da padaria. Lá estava ela, encostada à parede. Quieta. Tranqüila. Olhando para ele. Olhos pretos fixos nos dele.
Acordou. E mesmo sendo um garoto, achou intrigante, achou curioso ter sonhado com o mesmo lugar, com as mesmas pessoas, duas vezes seguidas em tão pouco tempo.
Daí pra frente, o sonho foi se tornando cada vez mais inquietante. Porque Otávio foi crescendo, sua vida correndo normalmente, terminou o primeiro grau, o segundo, começou a faculdade, foi ficando maior, mais velho, a vida foi tomando rumos que um garoto jamais suspeita. Amigos diferentes, gostos diferentes, o menino Tavinho, que queria ser baterista, agora era o universitário Otávio, que estava a caminho de ser um grande artista plástico. E o sonho continuava. Ao menos uma vez a cada seis meses ele sonhava com o lugar.
Agora todos estavam mais velhos. As crianças que brincavam com ele também tinham crescido, também eram jovens a caminho de alguma coisa em suas vidas. Os comerciantes, os homens da cidade, suas mulheres, todos envelheciam como se o tempo real estivesse passando também naquele lugar de sonho. Agora ele já tinha se acostumado à viagem, como ele chamava. Ele já não dizia mais que tinha sonhado. Ele se referia à experiência como "ter ido ao lugar". Mas estando lá, ele sabia que iria acordar. Ou, pelo menos, tinha consciência de que iria voltar. De que a sensação de amor coletivo, de ser querido por todos, homens, mulheres e crianças, iria acabar. Ele sabia que uma hora iria voltar pro mundo dele, onde havia pessoas que gostavam dele, sim, mas não daquela forma tão profunda. E havia pessoas que nem ao menos tinham ouvido falar nele. Ele sabia que a festa acabava uma hora. E ele sabia qual era a hora. Sabia que quando a menina de olhos pretos aparecesse, tudo estaria terminado.
Ela também já não era uma menina. Tinha crescido com ele. Agora era uma jovem, cabelos curtos, uma simpática franja sobre os olhos que tanto o incomodavam. Ou fascinavam?
Otávio não queria sair dali, mas sabia que assim que visse aqueles olhos pretos tudo terminaria. Mesmo assim, não resistia. Procurava.
- Onde ela está? Quando irá aparecer? Por que nunca falou comigo, como os outros?
As perguntas e a curiosidade sobre ela eram maiores que qualquer outra sensação. E ele procurava. E achava. E acordava.
Tudo aquilo o impressionava muito. Ele queria entender como pessoas de um sonho podiam crescer, envelhecer... Se era uma coisa imaginária, uma fantasia, por que a fantasia não permanecia inalterada? Ou não era uma fantasia?
- Chi, você já anda exagerando, Otávio! Como não é fantasia? Sonho é sonho, cara!
- Mas seria bom se não fosse.
- Tanta coisa seria boa se não fosse como é, mano velho... Mas não entendo você ficar o tempo todo com esse papo de sonho. A sua vida real não é das piores que eu já vi, não!
Otávio sabia que o amigo tinha razão. Aos trinta anos já era um artista plástico bem conhecido, bem comentado e, acima de tudo, bem consumido. Seus quadros vendiam bem. Era um homem plenamente realizado, no que se referia a uma carreira.
- Mas a minha vida pessoal não é das mais fantásticas, Betão. Não duro com ninguém. Nunca tive uma namorada que durasse mais do que três ou quatro meses.
- Vai ver que elas ficam com ciúme da sua gata de olhos pretos - riu Roberto.
- Não, sério... Eu nunca falei de nada disso com nenhuma delas. Mas elas não ficam.
- Bom, também elas não ficam porque você não deixa, né, Otávio? É você quem dá o fora sempre. Sempre some, não dá a menor satisfação. Mulher gosta de atenção, cara!
- Mas eu tenho o meu trabalho que também precisa da minha atenção. Tenho minhas pinturas que exigem concentração. Não tenho tempo de fazer mais nada. Olha, se não fosse essa cervejinha de vez em quando com você, acho que eu não teria nenhuma vida social.
- É... Artista é bicho esquisito mesmo.
- Mas quando eu vou pra lá...
- Ah, lá vem de novo com esse lugar?
- Deixa eu te contar - os olhos de Otávio brilhavam - Quando eu vou pra lá, a coisa é bem diferente. Eu me sinto feliz, cheio de gente que gosta de mim, nem falam em quadros, nem em como eu sou importante, nem fazem análises dos intrincados meandros da mente que levam o artista a se entregar a um estilo profundo de sei-lá-o-quê, como faz essa gente que diz que analisa minha obra. Lá gostam de mim e pronto. Todo mundo. O seu Gustavo da padaria, a dona Nina da quitanda, o barbeiro Chiquinho, as crianças, a rapaziada... Todo mundo faz a maior festa quando eu chego. É outra coisa. É outro mundo...
- Só falta você dizer que preferia viver lá...
O rosto de Otávio continuou sorridente. Mas se Roberto tivesse olhado no fundo dos olhos do amigo, talvez tivesse notado uma expressão mais significativa do que o habitual sorriso de botequim. E talvez encontrasse a palavra certa pra descrever a expressão: esperança.
Tudo desapareceu rapidamente, restou apenas o sorriso e um ligeiro baixar de pálpebras que poderia ser um disfarce, um desvio de olhar, mas também poderia ser apenas resultado do incrível peso que a cerveja costuma adicionar à bexiga e aos olhos de quem a bebe.
- Não... Não estou dizendo isso. Só estou dizendo que é bom sonhar com o lugar. Eu até pintei um quadro sobre isso, sabia?
- Ah, é? Já colocou em exposição? Um quadro desses, com uma boa divulgação da história dele, vai valer uma bela nota!
- Não... Esse é meu. Não vou vender.
- Estou dizendo que você não anda bem... - e gritou pro garçom - Amigo, tá um calor danado aqui, a vodca está evaporando depressa. Olha o meu copo vazio!
O garçom deu uma risadinha e foi providenciar mais uma dose.
- Cara, você gastou tempo e material pra pintar um quadro que não vai mostrar pra ninguém? O que você quer? Entrar pra história como mais um pintor maluco? Fique famoso por ser rico, não por ser doido. Pelo menos vai ser mais original.
- Não, eu não disse que não mostro. Só não vendo. Eu o pintei pra mim. É uma forma de estar lá quando estou acordado.
- Já vi tudo.
- Você quer ver o quadro?
- Agora?
- Por favor... Ele já está pronto há quase um ano. Nunca mostrei pra ninguém. Você é meu único amigo. Vem ver.
- Tá bom, Otávio, tá bom... Eu vou ver a obra-prima.
Roberto saiu do bar meio contra a vontade. Estava de olho numa ruiva duas mesas à esquerda. Ela também já tinha olhado para ele e ambos tinham trocado uns sorrisos à distância. Quando ele se levantou e pediu a conta, ela fez uma carinha triste. Ele notou.
- Mas eu volto logo, tá? - disse bem alto, como se estivesse falando com o garçom, mas claramente se dirigindo à mesa da ruiva - Só vou ver um quadro deste maluco aqui e volto pra cá.
Otávio não morava longe dali. Afinal, como o Roberto sempre dizia, "todo mundo que importa, mora ou bebe na vila", referindo-se à Vila Madalena, local de encontro de artistas e intelectuais da cidade.
Chegaram ao apartamento de Otávio, mas ele não acendeu a luz. Roberto ainda brincou:
- Me tirou do bar, com uma ruivinha encaminhada, pra me fazer ficar no escurinho com você? Estou te estranhando!
- Não... É que eu quero que você veja o quadro com a luz que eu coloquei.
Acendeu um refletor. Roberto nem podia acreditar. Otávio tinha instalado um refletor dirigido para o quadro na parede do quarto. A pintura era enorme. Ocupava quase toda a parede em frente à cama.
- Mas... Você pintou direto na parede! Se alguém quiser tirar vai ter que levar a parede junto!
- Pra quê alguém iria tirar isso daí? Ninguém vai levar.
- Mas se você se mudar? Como vai levar o quadro com você?
- Não vou me mudar. O apartamento é meu e não tenho a menor intenção de sair daqui.
Loucuras do amigo à parte, o quadro era lindo. Roberto já tinha visto trabalhos de Otávio, mas aquele superava qualquer coisa. Era real, as imagens eram fortes, tridimensionais, tinha-se a impressão de estar olhando através de uma janela para um mundo ao mesmo tempo comum e surpreendente. O lugar, descrito tantas vezes pelo pintor, estava inteiro ali. As residências, as casas comerciais, pessoas andando pelas ruas, gente trabalhando no interior das lojas. Um trabalho meticuloso e detalhado. Roberto se sentiu atraído pela pintura. Não sabia dizer por quanto tempo ficou olhando tudo, detalhe por detalhe. Otávio percebeu o deleite do amigo e não o interrompeu. Sentou-se aos pés da cama e fez companhia a ele. Um exame a quatro olhos de cada centímetro da obra. Nos olhos de Roberto, a surpresa. Nos olhos de Otávio, a entrega.
Otávio, decidindo que já era hora de tirar o amigo daquele passeio imaginário, perguntou:
- Você entende, agora?
- Entende o que? - Roberto ainda não tinha tirado os olhos da parede.
- Não é um lugar magnífico? Não são pessoas fantásticas?
- Um lugar comum com pessoas comuns - declarou de forma definitiva Roberto, saindo do torpor - Não há nada de especial aí, Otávio. É um quadro lindo, muito bem feito, uma naturalidade impressionante, mas é só. O lugar que ele retrata poderia ser qualquer bairro da cidade ou qualquer cidadezinha de interior. Nada muito diferente.
- E a farmácia?
- Que farmácia? Onde? - Roberto deu mais uma olhada para o quadro - Não vejo farmácia.
- Não tem! Você não entende? Não tem farmácia!
- Bom, sim, não tem farmácia no quadro. Você esqueceu. E daí?
- Não. Eu não esqueci. Não tem mesmo. O lugar não tem farmácia. Depois de muitos anos indo lá, eu percebi. E perguntei. Não tem farmácia, simplesmente porque lá ninguém fica doente. Nunca! Não há porque alguém vender remédios.
- Otávio, pára de falar desse lugar como se ele existisse. Você está ficando maluco por um local no qual você não vai poder ficar. É um sonho, Otávio. Um sonho.
- Mas você também se perdeu no meu sonho, não foi? Você também ficou fascinado pelo lugar.
- Não... Não é verdade. Foi seu talento. Eu fiquei fascinado pela pintura em si, não pelo lugar. Afinal, o que haveria de tão fascinante numa quitanda, um bar, um açougue, gente andando e...
Roberto parou de falar de repente. Não de forma intencional. Não achava o que dizer. Não tinha vontade de dizer nada. Enquanto se esforçava por diminuir a importância do lugar dos sonhos do amigo, virou-se novamente para o quadro. E viu!
- E ela, não é?
- O que?
Roberto aproximou-se mais do quadro e apontou para um canto, próximo a uma casinha de janelas azuis.
- É ela. A tal moça de olhos pretos...
Ao lado da casa, encostada à porta, alheia a tudo o que estava acontecendo à sua volta, ali estava uma moça de cabelos pretos, curtos, um vestido simples, azulado, indo até a altura dos joelhos, não muito decotado. Ela não olhava para nada da cena. Olhava em frente, com olhos negros profundos. A sensação era de que ela olhava para fora do quadro, diretamente para o observador.
- Você pintou a moça olhando pra você!
- Não... eu a pintei olhando para o nosso mundo. É ela quem me põe pra fora de lá. Quando eu a vejo, acordo. Quando ela me olha, me expulsa. Eu quero que ela veja onde eu vivo. E que me deixe ficar lá mais um pouco da próxima vez.
Roberto saiu do apartamento do amigo tarde da noite. Não voltou para o bar, nem se lembrou da ruivinha. Saiu impressionado com o estado de Otávio, achou que ele não estava muito bem. Aquele sonho contínuo estava confundindo o amigo. Otávio já não conseguia separar o sonho da realidade. Não sabia bem o motivo, talvez a preocupação com o amigo, talvez a vontade de analisar mais vezes o quadro, talvez alguma coisa que ele ainda não soubesse, mas decidiu que iria voltar mais vezes ao apartamento. Travestiu suas intenções reais em altruísmo. Na verdade, nem ele sabia bem de suas intenções. Na verdade ele se esforçava por acreditar que sua única preocupação era com o bem estar e a sanidade de Otávio. Começou a aparecer no apartamento com mais duas ou três pessoas, diferentes a cada vez.
- Betão, o que é que há? Você não combina mais nada no bar, já combina direto aqui em casa. E traz o pessoal pra cá. Por que?
- Pra te dizer a verdade, Otávio, eu estou querendo te ajudar no social, tá me entendendo? Você está sempre sozinho aqui, quando sai é só comigo, se chega mais alguém na mesa você dá uma desculpa e vem se enfiar no apartamento. Vai ver fica aí, olhando para o quadro até dormir. Acho até que o processo do sonho é inverso. Você sonha toda hora com esse lugar porque dorme olhando pra ele.
- Não, não, eu já te disse... Eu sonho com o lugar desde criança. E com ela. O moça dos olhos pretos. Tá, eu passei um bom tempo sem sonhar, uns sete ou oito anos. Mas quando o sonho voltou, foi com força total. Agora tenho ido lá quase toda noite.
- Ah, eu não sei, não... Acho esquisito. Ainda vou achar o motivo desses seus sonhos e um jeito de você parar com isso e viver no mundo real. Por falar nisso, deixa eu dar mais uma olhada lá no quadro. Quero ver se vejo algum detalhe que perdi. Vai lá ficar com o pessoal. Vou dar uma olhada e já vou, tá?
Cada vez Roberto usava uma desculpa, mas a verdade é que sempre que ia ao apartamento de Otávio, ele dava um jeito de ficar sozinho com o quadro.
As visitas foram se tornando cada vez mais freqüentes, as pessoas que Roberto levava iam variando. Todo mundo queria conhecer mais intimamente o pintor Otávio Menezes. Alguns até estranhavam, esperavam encontrar uma pessoa diferente, com hábitos ou roupas incomuns e acabavam se decepcionando com aquele homem normal, cabelos bem cortados, nada de brincos, nada de adornos pessoais, roupas simples. Roberto, com seus cabelos longos e dourados, o cavanhaque e o bigode num anacrônico estilo Errol Flynn, parecia mais um artista do que Otávio. Mas enfim, se todos fossem o estereótipo de seus modelos físicos, o mundo seria uma coisa bem sem graça. Não haveria surpresas.
Surpresas estavam reservadas para Otávio naquela noite. Depois que os novos amigos se foram, ele ainda teve algum trabalho em retirar Roberto do quarto.
- Você está ficando mais maluco pelo lugar do que eu.
- Nada disso, mano velho - Roberto não encarava o amigo - Só fico aqui admirando porque o quadro é muito bonito. E porque acho que a partir do que está aqui eu vou poder te ajudar.
- Sei... Mas se você não se importa, eu quero dormir um pouco. E aqui, além de ser sua galeria pessoal, é meu quarto, lembra?
- Puxa, não precisa ficar tão bronqueado. Eu já estava indo embora mesmo. Também estou com sono.
Roberto se foi. Otávio sentou-se na beira da cama e ficou olhando o quadro. Já fazia um bom tempo que não ia ao lugar. Dormia pensando naquilo e acordava sem se lembrar de nada. Ele ficava angustiado. Queria ir lá. Reencontrar as pessoas tão queridas. Ele aceitava aquele monte de gente em casa apenas em consideração ao amigo Roberto, mas não suportava as pessoas do chamado mundo real. Eram chatas, sempre as mesmas perguntas, a maior parte delas tecia elogios ao trabalho dele sem entender nada. Diziam como ele era ótimo, que grande pintor, o maior artista contemporâneo de que tinham notícia, só para valorizar a si mesmas. Todos queriam poder dizer que freqüentavam a casa do maior pintor de todos os tempos. Roberto não entendia o quanto isso incomodava Otávio. E ele queria escapar um pouco. Precisava ir ao lugar de novo. Estava com saudade de todos, não se contentava mais em apenas olhar para o quadro na parede. Ele tinha de voltar lá. Havia assuntos mal resolvidos, conversas não terminadas, coisas a serem perguntadas. E havia... ela!
Otávio acabou adormecendo enquanto olhava o quadro. E a felicidade invadiu toda a sua alma ao perceber isso, pois se deu conta de que estava no meio da rua em frente à padaria do seu Gustavo. Mas a felicidade extrema deu lugar a um sentimento confuso de estranheza e de abandono. As pessoas não correram para ele. Algumas passaram e o cumprimentaram rapidamente.
- Olá, Tatá, tudo bem? - perguntou um senhor com um ar ocupado que seguiu seu caminho sem realmente querer saber se estava tudo bem.
Otávio entrou na padaria e sorriu para o seu Gustavo. O comerciante estava atendendo uma mocinha, olhou rapidamente para ele, um sorriso profissional no rosto.
- Oi, Tatá. Apareceu, hein?
Otávio estava achando aquilo tudo muito estranho. Mais estranho ainda o fato de seu Gustavo estar mais jovem. Na verdade, ele devia estar uns vinte anos mais jovem. Aparentava a idade que tinha quando Otávio sonhou pela primeira vez.
- Seu Gustavo... - Otávio estava muito confuso - O que... O que está acontecendo aqui?
- Acontecendo? Ora, nada... Tudo anda muito normal.
- Mas todo mundo parece distante... Diferente...
- Diferente? - seu Gustavo baixou os olhos por um instante - Não há nada diferente por aqui.
- Como não? - Otávio quase gritava - O senhor está mais moço. Todos estão mais novos. Lá fora tem uns meninos brincando que eu sei que são os mesmos que estavam com mais de vinte e cinco anos da última vez.
- O que é isso, Tatá? Você está imaginando coisas.
- Bom, isso eu sei... Estou imaginando tudo isso aqui, não é? É só um sonho, não é?
Seu Gustavo se limitou a um sorriso triste.
- Olha, Tatá, eu gosto muito de você. Na verdade, todos aqui gostam de você. Mas, acima de gostar, todos aqui precisavam de você. E todos estão muito felizes por você não ter ficado abaixo das expectativas. Foi muito tempo investido.
- Investido? Investido em quê?
- Em você... No seu talento... No seu futuro. No que você seria. Tivemos muito trabalho com tudo isso.
- Como? Como assim? Trabalho? Tiveram trabalho quanto ao meu futuro? Pra quê?
- Tudo a seu tempo, Tatá... Tudo a seu tempo. Tudo o que importa, agora, é que você entenda que todos aqui gostam muito de você. E todos são muito gratos. Por isso sempre havia tanta festa quando você chegava. É que todos queriam agradecer pelo que você faria por nós, mas sabiam também que depois de feito talvez não tivessem a chance de agradecer.
- Mas... Agradecer o quê? O que eu vou fazer que merece gratidão?
- Você já fez, Tatá. Por isso não precisamos mais aparecer como velhos ou gente crescida. Não precisamos mais de truques impressionantes de sonho. A verdade é que aqui não se envelhece. Não se cresce. Não se fica doente. Você já perguntou isso uma vez, lembra? Quando notou que não tínhamos farmácia. Mas aqui sempre foi um lugar parado, as mesmas pessoas, nada mudava. A monotonia perturba qualquer um. E nos perturbava também.
- E eu vim para acabar com a monotonia...
- Você não imagina o quanto, Tatá.
Otávio ia perguntar o que ele queria dizer, mas ela apareceu. Entrou na padaria como quem ia comprar alguma coisa e, pela primeira vez, Otávio ouviu sua voz:
- Seu Gustavo, eu ouvi dizer que...
Otávio se virou e olhou para ela. Ela parou de falar e ficou petrificada, com a expressão de quem tinha visto uma aparição não desejada.
- Você falou! Finalmente, depois de tantos anos, eu ouvi sua voz!
Ela estava linda. Um vestido um pouco mais curto do que os habituais, os cabelos haviam crescido um pouco e estavam à altura dos ombros. Os olhos pretos se desviaram dos dele.
- Mas você continua grande... Todos voltaram à idade do começo, menos você! Você continua como a vi na última vez!
- Você deve ir agora, Otávio.
- Otávio? Todos aqui me chamam de Tatá. Por que você me chama de Otávio? O que está acontecendo? Parece que não queriam que eu viesse mais. E você... Principalmente você! A criatura com quem sonhei acordado todos os dias da minha vida. A pessoa de quem nunca pude me aproximar. O motivo de eu nunca estar satisfeito com ninguém. Agora eu sei, com certeza. Era você. Eu não queria mais ninguém, porque queria você. E na primeira vez em anos que você fala comigo é pra me mandar embora?
- Desculpe, Otávio... Talvez tenhamos feito mal... mas foi um mal necessário. Agora você tem de ir.
- Mal necessário? Que mal é esse? O que vocês fizeram? E o que foi que eu fiz pra vocês? Em que eu era necessário?
Os olhos pretos se fixaram nos dele. Não sem expressão. Não placidamente, como sempre tinha sido. Desta vez eles vieram marejados com pedidos de perdão. E o que ela não conseguiu com a voz, realizou com os olhos. Otávio sentiu tudo se desvanecendo à sua volta, um zumbido no ouvido, vozes de crianças ganhando ecos e distorções como se estivessem sendo carregadas por um túnel infinito. E ele acordou.
Os dias se passaram e ninguém mais viu Otávio. Roberto ainda levou algumas pessoas ao apartamento, na vã tentativa de animar o amigo e de olhar mais um pouco o quadro do lugar. Otávio não atendia à porta. Depois de duas semanas sem encontrar o pintor, Roberto, preocupado, resolveu que iria vê-lo a qualquer custo. Foi para a porta do apartamento e bateu, gritou, chamou, implorou, sem resultados. Resolveu invadir. Arrebentou a fechadura com os pés. Entrou, passou pela sala e foi direto para o quarto.
Lá estava Otávio. Sentado na beira da cama, barba por fazer, roupas sujas e amassadas, o odor que se espalhava no ambiente evidenciando a ausência de banhos por muitos dias. Olhos fixos no quadro. O olhar perdido para dentro daquela imagem. O rosto, uma máscara de dor e tristeza, a certeza de um Shan-gri-lá perdido para sempre. Na mão, um formão.
- O que houve, amigo? - Roberto estava sinceramente preocupado.
- Não me querem mais lá.
- O que?
- Não me querem mais lá. Não posso mais voltar. Não sei o que houve, não sei o que queriam de mim, mas não querem mais. Não precisam mais de mim. E me descartaram.
- Deixe disso, amigo. Era só um sonho. E ele acabou. Agora você pode viver a vida real.
- Vida real! O que é real, Roberto? Que diferença faz se os meus amigos são de mentira porque eu sonho com eles ou se são de mentira porque fingem admirar uma coisa que não entendem e da qual nem gostam muito? Que diferença faz se eles me usaram lá, sei lá pra quê, ou se me usaram aqui pra se sentirem importantes freqüentando a casa de um artista da moda? Vida real! Pois eu preferia o falso de lá...
- Mas você mesmo disse que não pode mais ir lá. O que vai fazer?
- Ainda não sei. Estou há dias aqui, olhando para o quadro e decidindo se devo destruí-lo ou não.
Um lampejo de pânico passou pelos olhos de Roberto.
- Não... Você não pode destruir o quadro. É sua melhor obra!
- É só uma fantasia, como tantas outras. E, como você mesmo disse, não posso vendê-lo. Ele está preso dentro do meu apartamento. Pra que ele serve agora?
- Você está maluco mesmo! Não pode destruir o quadro... Seria como destruir todo o lugar! Seria como destruir... ela!
Os olhos pretos, no quadro, pareciam fixos nos dois.
- Ora, e que diferença isso faz, Roberto? Por que está tão irritado?
- Por quê? Por quê? - Roberto estava sentindo dificuldade em encontrar as palavras - Porque não é justo, não é certo, uma obra de arte como esta ser destruída, ser raspada com um formão, só porque o grande Tatá não é mais querido no seu sonho maluco!
Otávio se levantou. Olhou para Roberto. Olhou para o quadro. Voltou a olhar para Roberto.
- Quem não é mais querido?
- Você... Você inventou uma rejeição das pessoas no mundo real e agora está empurrando essa rejeição para dentro do seu so...
Otávio deu um pulo e agarrou Roberto pelo pescoço, com uma mão.
- Não foi isso que eu perguntei! - disse, ofegante - Do que você me chamou?
- Eu sei lá... De louco, de maluco, não sei... Mas não precisa ficar ner...
- Você me chamou de Tatá!
- Ah? Foi? Tá bom, desculpa, não gosta de apelidos, tudo bem. Mas larga meu pescoço, está machucando.
- Nunca! Nunca, em toda a minha vida eu fui chamado de Tatá! Só em um lugar me chamavam assim.
- O que... O que está querendo dizer? - Roberto começou a suar frio.
- Você esteve lá!
- Você está maluco mesmo!
- Você esteve lá! - toda a verdade caiu como um raio na consciência de Otávio - Foi pra isso que me levaram pra lá, desde de pequeno. Eles sabiam... Eles sabiam que eu iria ser pintor. Seu Gustavo disse que não precisavam mais fingir que envelheciam. O tempo lá é diferente. E eles sabiam que eu iria pintar o lugar. Era só uma questão de esperar. E esperar é tudo o que eles podem fazer! Monotonia. Ele se queixou disso. As mesmas pessoas, o mesmo lugar, as mesmas casas. Nada muda. Mas o quadro... O quadro iria interessar a outras pessoas. E outras pessoas além de mim iriam começar a ir lá. Foi o que você fez não foi? Diga, Roberto, não foi?
Roberto deu um empurrão no amigo, para se livrar da mão que lhe apertava a garganta.
- Foi! Está bem, foi isso! Eu fiquei impressionado com o quadro. Não conseguia ficar sem olhar pra ele. E pra ela! Os olhos pretos dela me cativaram. E eu me apaixonei, Otávio... Acredita nisso? Me apaixonei por uma mulher que só existia no seu sonho e no seu quadro. E quando me dei conta disso, decidi que tinha que ir até lá. E minha vontade foi tão grande que comecei a ter os mesmos sonhos. Eu fui lá, Otávio. E lá me falaram de você. Lá me falaram do Grande Tatá que tinha aparecido para salvar o lugar da monotonia e do abandono em que esteve por tantos anos.
- E ela... Ela falou com você? Quando ela olhou pra você, você não acordou?
- Não, Otávio. Comigo há essa diferença. Comigo ela pode conversar. Eu só acordo quando quero.
- Não é justo! Não é justo! Tantos anos... O lugar é meu! Eles não tinham o direito de me usar para levar outras pessoas. E se o quadro é o caminho para isso, eles vão se dar mal! Ela vai se dar mal. Porque eu estava indeciso, mas você acabou com a dúvida! Vou raspar esse quadro da parede agora!
- Não!
Roberto pulou em cima de Otávio, na tentativa de impedir a destruição do que, agora, era o canal de ligação entre sua vida e sua paixão. Otávio levantou a mão com o formão para começar a raspar o quadro. Roberto tentou agarrar a mão de Otávio, mas o pintor foi mais rápido. Desviou o braço e abaixou a mão. O formão agora estava entre os dois, virado para cima. Roberto perdeu o equilíbrio, ainda tentou se segurar em alguma coisa, mas sua mão só encontrou a pintura na parede. Seu corpo caiu para a frente. Otávio não fez nenhum gesto para impedir que o formão se cravasse até a metade no peito do amigo.
Roberto caiu no chão, estirado, de costas. Não conseguia falar, a dor insuportável o impedia de respirar, o sangue brotando começou a se espalhar pelo chão. A última coisa que viu foi o quadro, acima dele. Seu último pensamento foi de que a moça de olhos pretos na pintura estava olhando para ele. E estava sorrindo. Depois, tudo escureceu.
Otávio ficou olhando para o corpo do amigo no chão. Pessoas dos apartamentos próximos tinham ouvido os gritos e saíram para o corredor, para verificar o que era aquilo. Moradores de apartamentos podem disfarçar sua curiosidade mórbida quanto às brigas dos vizinhos em indignação pelas regras do condomínio estarem sendo feridas.
Quando viram a porta do pintor esquisito arrombada, se acharam no direito de entrar para ver o que estava acontecendo. O que presenciaram fez com que alguns agarrassem Otávio e o prendessem à cama. Outros foram chamar a polícia.
Quando os policiais chegaram, Otávio estava amarrado, em cima da cama, aos gritos:
- Ele não tinha o direito! O lugar era meu! Ela era minha!
Otávio foi preso, considerado insano e levado para tratamento. Nunca saiu da clínica. Nunca se recuperou. E nunca mais sonhou.
Ele não tinha parentes próximos, apenas uma velha tia que morava no interior e que se apossou do apartamento. Como não pretendia ficar em São Paulo, deixou o imóvel sob a guarda de uma imobiliária que cuidaria de alugá-lo. Nada foi mexido no interior dele. Não havia necessidade. Diziam que o antigo dono, apesar de louco, era muito cuidadoso. E era um pintor famoso. Depois que se envolveu em uma história de crime passional, seus quadros haviam triplicado de preço. E o aluguel do apartamento era caro, pois no quarto havia uma pintura de Otávio Menezes ocupando uma parede inteira.
Os primeiros moradores do apartamento se deliciavam em olhar para o quadro. Levavam as visitas ao quarto e exibiam a pintura com o indevido orgulho de quem tem uma obra-prima sem ter feito nada para merecê-la. E todos ficavam maravilhados com os detalhes do quadro, as residências, as casas comerciais, pessoas andando pelas ruas, gente trabalhando no interior das lojas. O quadro inspirava alegria, em alguns olhares das personagens se viam sensações agradáveis como esperança ou alívio. Mas todos que o viam, sem exceção, ficavam encantados com a expressão de felicidade de uma moça de olhos pretos ao lado de uma casa com janelas azuis. E com o misto de surpresa e alegria no rosto do rapaz ao lado dela, uma anacrônica figura de cabelos dourados compridos, um cavanhaque e um bigode que lembravam os de Errol Flynn.
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