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Contos-->O ADVOGADO NEÓFITO -- 15/05/2009 - 11:28 (Nezinho Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O ADVOGADO NEÓFITO

Em uma certa cidadezinha do interior de Minas Gerais, há algum tempo, quando das famosas Missões Católicas, com presença de Bispos e tudo mais, aconteceu um fato jurídico, digno de entrar para os anais da história.
Pois bem, haveria nessa determinada cidade uma festa missionária e, como acontece sempre em festas interioranas, a cidade fatalmente encheria de peregrinos de toda a região, e espécie, fato que lhe proporcionaria um surto desenvolvimentista, atrativo para mascates, aventureiros e afins.
Por ser já festa com data fixa e certa, muitos dos ambulantes chegavam à cidade com alguns dias de antecedência, a fim de estabelecerem seus pontos comerciais e travarem conhecimento com a população local. O fato em tela refere-se a um desses ambulantes, o qual doravante chamaremos de Ildeu.
Ildeu, vendedor andado e tarimbado , como ele mesmo a si se referia, comerciava tecidos e bugigangas por todo o interior mineiro e baiano, sempre andando de festa em festa, lucrando em umas e se lascano em outras. Contudo, via, pensativo, os anos correrem, levando consigo sua mocidade e disposição.
Nos últimos dias, a solidão das estradas de terra, lama e capim dos grotões de Minas exercia um efeito massacrante sobre o ânimo de Ildeu. Sentia falta de uma esposa, uma casa... um lar. Mesmo assim continuava, arrastando-se, de festa em festa, prometendo, sempre, ser, a próxima, a última festa de trabalho em sua vida. Já passava dos quarenta e isso o importunava. Cansara-se de ser um homem sem eira nem beira . Trabalhava pra cachorro e não tinha nem um couro onde cair morto !
Absorto em seus pensamentos Ildeu caminhava, puxando uma carriola entupetada de mercadorias para vender naquela que seria a última festa de trabalho de sua vida.
A noite já ia alta . Lua esplêndida, vento fresco... Ildeu caminhava. Não se lembrava mais de quando havia comido seu último bocado. Sentia, contudo, o estômago contorcer-se de fome e sua barriga fazia um barulho estranho!
Resolvera caminhar à noite por vários motivos, e, dentre todos o mais importante: estava atrasado para a festa, que começaria na tarde do dia seguinte e lhe faltavam, ainda, umas três léguas de caminhada.
Andou até sentir as pernas extenuadas e não poder mais com o peso do reboque. Mas faltavam horas, ainda, para o dia amanhecer. A região lhe era desconhecida. Era a primeira vez que atendia aquela cidade e não tinha nenhum conhecido por aquelas bandas .
Deixou-se cair na areia da estrada, alva e fria, e, suspirando, olhou para o céu, enquanto se descobria . Pensou em dizer uma prece, mas a quantidade de palavras que acorreu à sua mente foi tamanha que ele achou melhor não pronunciar nada, sob pena de ofender a Deus.
Um cachorro latiu, não muito longe.
Concentrando todos os resquícios de forças de seu corpo nas pernas, ergueu-se. Haveria de chegar àquele cachorro, a qualquer custo.
Afinal, onde tem cachorro tem gente, uai!
Menos de um quarto de légua depois ele chegou a uma choupana, às escuras, guardada por um cachorro esquálido.
Proferiu a saudação costumeira e obrigatória: “Oh, de casa! Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo”!
Esperou.
Repetiu.
Esperou.
“Pra sempre seja lovado! Quem taí?” Era voz de mulher.
“Sou um viajante cansado e com fome, pedindo comida e pouso por um resto de noite.”
Uma lamparina clareou o interior da velha casa, luz vislumbrada pelas frestas, muitas, das paredes.
O cachorro o acuava , estacado no meio do terreiro .
Sussega, Trigue ! Era a voz ralhando com o cachorro, que atendeu, desconfiado, indo deitar-se, ainda rusgando , no batente da porta .
Passaram-se alguns minutos até a porta se abrir e aparecer, primeiro, uma mão segurando a lamparina e em seguida uma cabeça de mulher, com alhos aguçados perscrutando a escuridão.
Ildeu deixou a carriola na estrada e aproximou-se, chapéu na mão, saudando a mulher:
“Boa noite, dona! A senhora me desculpe pelo incômodo, mas eu estou para morrer de cansaço e fome. Se a senhora puder me dar, pelo menos, algo para comer eu lhe pagarei bem.”
“Óia, moço, respondeu a mulher, eu sou viúva e moro sozinha por isso não posso te dar pôso . Mas se o sinhô quiser uns ovo cozido pra comer eu posso arranjar”.
“Quero, sim, senhora, e agradeço”. Apressou-se Ildeu em responder.
“Pois intão, continuou ela, o sinhô se acomode por aí mermo, até eu preparar a comida.”
Ildeu não soube precisar o tempo decorrido até a mulher concluir a tarefa proposta, mas, mesmo que pudesse, a visão da cuia de farinha e dos ovos cozidos, uma dúzia, limpou completamente sua mente.
Célere e sofregamente ele devorou aqueles ovos com farinha e sal. Ao fim, um gole de café requentado, mas fumegante, selou a boca do seu estômago , até então faminto e voraz.
A mulher apareceu à porta, mais uma vez, avisando-o que se quisesse se recostar por ali mesmo, na beira da parede, poderia ficar a vontade.
Ildeu aproveitou para perguntar-lhe o preço da janta, ao que ela respondeu que de manhã combinariam.
Era ainda madrugada quando a mulher o acordou, da porta, oferecendo uma xícara de café, fresquinho.
Bebeu o café, degustando cada gole, sob o olhar inquisidor da mulher e do cachorro.
Devolvendo a xícara indagou, novamente, sobre o preço da bondade da mulher. Ela pediu-lhe, então, mais do que ele tinha no bolso, naquele momento. Não era uma quantia injusta, dadas as circunstâncias, mas era mais do que ele imaginara.
Então ele explicou à mulher que estava indo para a cidade, que era mascate e iria trabalhar nas festas do santo, que iniciariam naquele dia. Que infelizmente não tinha todo aquele dinheiro no bolso, no momento, mas se ela confiasse, ele iria pra festa e, na volta, traria o dinheiro para ela. Afinal, aquele era o único caminho para a cidade.
A mulher concordou, e até mencionou que iria, também, à festa.
Sem mais delongas, Ildeu pôs o pé na estrada , arrastando, atrás de si, a carriola entupetada de mercadorias.
Chegando na cidade, Ildeu tratou de recuperar o tempo perdido. Conseguiu um cantinho, onde expor seus produtos e pôs mãos à obra.
A cidade estava fervilhando de gente e, ao final da festa, Ildeu havia vendido toda a sua mercadoria. Não restara nada, nem um broxe para lembrança. Também não vira a mulher dos ovos.
Entusiasmado com a cidade, da qual gostara como nunca gostara de outra qualquer, resolveu ficar mais uns dias por ali. Dinheiro? Os bolsos estavam entupetados !
Ficou sabendo de uma casinha que estava à venda, na praça da Igreja e, como o seu dinheiro dava para comprá-la, comprou-a.
Por ser um ponto comercial bem estabelecido, resolveu montar uma lojinha, de bugigangas . Através de uns conhecidos, que conhecera na festa, encomendou a mercadoria direto de Montes Claros, que não tardou em chegar.
Ildeu prosperou. Finalmente estabelecera e poderia sossegar, em paz.
Com a passagem dos meses sua lojinha foi crescendo e, logo, lldeu era uns dos mais prósperos comerciantes daquela cidadezinha.
O tempo passou, e como Ildeu não voltara a trabalhar como mascate, não saíra mais da cidade, também não passara mais pela estrada e, conseqüentemente, não vira mais a mulher dos ovos.
Um dia, porém, ei-la, em sua loja.
Com um misto de surpresa, alegria e vergonha, Ildeu atendeu-a afavelmente, mostrando-lhe cada detalhe das mercadorias à venda, ao que ela a tudo recusou, secamente.
Ildeu compreendeu. Afinal, aqueles ovos cozidos que dera-lhe as forças necessárias para chegar àquela cidade ainda não haviam sido pagos.
“O sinhô se deu bem, hem!” Comentou, com inveja velada, a senhora dos ovos, ao que respondeu-lhe Ildeu: “Não tenho do que me queixar, dona. De verdade, essa cidade era tudo o que eu procurava para me estabelecer”.
“É, concordou a mulher, o sinhô não passou, de volta, lá em casa...”
“Para um bom entendedor meia palavra basta”, pensou Ildeu e falou: Quero me desculpar com a senhora, por não ter ido pagar-lhe aqueles ovos, que me fizeram tanto bem. Mas, agora, basta a senhora dizer quanto quer, e eu lhe pagarei, com o maior prazer”.
A mulher riu, entredentes, e dando-lhe as costas, já saindo, respondeu: “O sinhô vai ficar sabeno , logo, logo”.
Um leve tremor percorreu a espinha de Ildeu, ao ouvir aquelas palavras, e ele entendeu que estava sob ameaça.
No dia seguinte Ildeu recebeu uma visita ilustre: o advogado da cidade, único, que também atendia a toda a região circunvizinha em suas querelas judiciais. Espertalhão, tido como verdadeira “Raposa Felpuda ” pela população letrada local. Este comunicou-lhe que ele, Ildeu, tinha um débito para com uma sua cliente, e este débito era reclamado agora, devidamente corrigido, monetariamente, e acrescido de juros e honorários advocatícios.
Ao tomar conhecimento do montante da dívida, Ildeu quase desmaiou. Se vendesse a sua loja, de porteira fechada , mesmo assim não conseguiria o montante cobrado.
Quis saber do ilustre causídico em que parâmetros ele se baseara para chegar a tão avultada quantia, recebendo como resposta o seguinte raciocínio: “O senhor comeu 01 dúzia de ovos da minha cliente há 01 ano atrás e não pagou por isso. Bem, se tais ovos fossem postos a chocar minha cliente teria conseguido, no mínimo, 09 crias, considerando 03 possíveis perdas. Destas 09 crias, dada a experiência de minha cliente com galináceos, no mínimo 05 seriam frangas, que se tornariam galinhas botando, cada uma, cerca de 120 ovos, dando o total de 600 ovos. Divididos em 04 chocadas no ano de 01 dúzia para cada galinha, minha cliente teria 20 dúzias de ovos chocando e 30 dúzias de ovos para vender, ao preço de R$ 2,00 a dúzia que perfaz o valor de R$ 60,00. Continuando, dos 240 ovos a chocar, e seguindo o mesmo princípio de possíveis perdas, minha cliente teria 180 crias, e destas, dada a experiência de minha cliente, já reconhecida e considerada, 110 seriam frangas que botariam, juntas, 13.200 ovos, ou seja, 1100 dúzias”.
O advogado fez uma pausa, diante do olhar de completa incredulidade de Ildeu e, com um suspiro de falsa condescendência continuou.
“Bem, para ficarmos apenas na primeira geração de lucros perdidos por minha cliente, das 1100 dúzias de ovos 440 seriam chocadas e 660 vendidas ao mesmo preço já estabelecido, dando um total de R$ 1.320,00 que, somado aos R$ 60,00 anteriores daria R$ 1.380,00. Resta ainda estabelecer o valor dos frangos, que seria: 04 frangos da descendência direta dos ovos comidos pelo senhor, mais 70 frangos da descendência das frangas do primeiro ciclo de chôco , mais 330 frangos e frangas do segundo ciclo de chôco , seguindo o mesmo princípio de possíveis perdas e considerando que, por compaixão da minha cliente para com o senhor, que acredita que o não pagamento da referida dívida no prazo estipulado foi por puro esquecimento e não por má fé, tal cobrança não será estendida às possíveis gerações de lucros perdidos, teremos, então 404 galináceos que, vendidos a preço de mercado, ou seja, R$ 10,00 cada um, daria o valor de R$ 4.400,00. Este valor, somado ao valor dos ovos, chega a um total de R$ 5.780,00. Somando-se a ele um pequeno juro de 18% ao ano, que dá o valor de R$ 1.040,40 chegamos ao valor de R$ 6.820,40. Acrescentando o valor dos honorários advocatícios de sucumbência, à proporção de 10% do valor do débito, teremos, então, o valor total de seu débito para com a minha cliente, que é R$ 7.502,44”.
Nova pausa.
Ildeu estava branco como cera.
O advogado continuou.
“O senhor pode pagar em dinheiro ou em cheque. Como já é um comerciante bem estabelecido, se preferir, pode, também, assinar uma Nota Promissória do valor total, sem mais juros, para 30 dias. O senhor escolhe”.
Um som assombrosamente gutural brotou da garganta de Ildeu, enquanto seus olhos pareciam injetados de sangue. Sua ira incontida explodiu em uma única frase, que saiu de sua boca em volume extraordinário e acompanhada de saliva: “Saia daqui, agora”!
O advogado não esperou segunda ordem. Recolhendo sua surrada pasta de mão de sobre o balcão da loja saiu a passos largos e trôpegos, como se perseguido por demônios.
Ildeu fechou as portas da loja atrás dele, com bastante barulho, e sentou-se em um tamborete, trêmulo e ofegante. “O que fazer? Pensou. A quem recorrer em uma hora desta”?
O padre.
Ildeu foi conversar com o padre da cidade, por se tratar da única pessoa com quem dialogava com mais freqüência, dentre todos os que conhecera até então.
O padre também ficou revoltado ante a esperteza do advogado e da mulher, mas confessou não poder fazer nada para ajudar Ildeu.
A situação piorou quando dias depois chegou uma Intimação Judicial para Ildeu, o qual teria que comparecer ante o Juiz em audiência de Conciliação e Julgamento. Por não entender nada de Justiça, Ildeu quase enlouqueceu. Correu para o padre, mais uma vez.
O padre, compadecido daquele novo fiel, prometeu ajudá-lo no que fosse possível. E, naquela noite mesmo, o padre encontrou a solução. Lembrou-se do fazendeiro mais rico da região, e de seu filho, que estava estudando direito em Montes Claros. Por sinal, esse filho do fazendeiro concluíra o curso naquele final de ano e estava montando escritório por lá.
“A solução, pensou o padre”.
Assim que amanheceu o padre correu para dar a boa notícia a Ildeu. Embora animado, não conseguiu disfarçar a sua insegurança com relação ao confronto do tal jovem advogado com a “Raposa Felpuda ” da região.
Ildeu ponderou, mas não havia outra saída. Tinha que confiar no mesmo.
O próprio padre se encarregou de descrever a situação, em carta, para o advogado a ser contratado. Carta esta que seguiu para Montes Claros no mesmo dia, de carro próprio.
O fazendeiro, empolgado com a estréia do filho nos Tribunais e por ser adversário político da “Raposa Felpuda ”, cedeu o seu carro e o motorista, arcando com os custos da viagem.
A audiência estava marcada para dentro de 10 dias, no fórum improvisado da cidade, onde atuavam os Juizes itinerantes que serviam à Comarca.
A cidade pegou fogo !
O futuro embate jurídico era o assunto em qualquer roda de dois ou mais. Apostas já surgiam, ora pendendo para um ora para outro lado. O dia do julgamento prometia ser dia de festa na cidade.
A “Raposa Felpuda ” aproveitou para fazer do assunto um palanque político contra o fazendeiro, por este estar ajudando um forasteiro a roubar de uma pobre viúva, nascida, criada e residente na região.
Algumas pessoas refaziam as contas dos ovos e das galinhas e atingiam somas jamais vistas por ali. Outras achavam que a viúva estava sendo injusta, e que ela não devia cobrar tanto do mascate.
Quanto mais perto chegava o dia do julgamento mais apreensivo ficava Ildeu. Partilhava sua apreensão o padre e o pai do advogado, que já encomendara missa em intenção da vitória jurídica do filho.
A mulher dos ovos também virou tema de discussão. Alguns aventavam a possibilidade de ela estar se vingando do mascate por outra coisa, já que ele dormira na casa dela. Outros diziam ser ela verdadeiramente esperta e má, por isso continuava viúva mesmo depois de tanto tempo da morte de seu marido.
Chegaram a dizer que ela era a Mula-sem-Cabeça que assombrava a região, e que seu cachorro Trigue era na verdade um lobo assassino, companheiro de lobisomens. E que os ovos que ela vendeu a Ildeu era enfeitiçados, por isso que ele deixou de mascatear e ficou rico. Agora ela estava vingando dele porque ele não partira a riqueza com ela.
Blá, blá, blá...
Uma hora da tarde. O sol à pino e neca de sombra na praça da cidade. Aqui e ali alguns guarda-chuvas e sombrinhas protegiam pessoas prevenidas e curiosas. A praça estava lotada. Tinha gente até de outras cidades da região.
Todos queriam ver a batalha dos advogados. As apostas corriam altas e soltas. Dez por um contra o filho do fazendeiro, que até então não chegara à cidade para defender seu cliente, empertigado e suarento, dentro de um terno apertadíssimo, plantado na porta do fórum.
Eis o dia ansiado.
O Juiz chegou com seu séqüito, tomando lugar no tribunal.
A “Raposa Felpuda ” chegou pouco depois, ladeando sua cliente, toda empoada e trajando um novíssimo vestido de chita estampada. Também tomaram seus lugares no Tribunal.
O Juiz autorizou a entrada da assistência, que não coube no recinto tão grande era a multidão interessada.
Uma hora e cinqüenta minutos, início da sessão.
Ildeu é chamado, com seu advogado, mas comparece sozinho e lívido diante do Juiz, que o interpela, severamente:
“Onde está o advogado do senhor”?
Um burburinho correu a assistência, enquanto Ildeu buscava, desesperadamente, um apoio nos olhares curiosos que o fitavam. Esbarrou com o olhar da “Raposa Felpuda ”, cínico e sádico, com um ricto bestial nos lábios e um sacolejar de entranhas como em um sorriso mal contido. Novamente aquela sensação de frio na espinha.
O ribombar da voz do Juiz chamou-o à realidade:
“Onde está o seu advogado, senhor Ildeu”?
A terra fugiu de sob os pés de Ildeu. Olhou para a porta, o sol lá fora castigando a multidão, e nada de seu advogado. Respondeu, choramingando:
“Chegou ainda não, senhor Juiz”.
“O senhor tem 10 minutos. Após esse tempo eu suspendo a sessão”, esbravejou o Juiz.
O silêncio dominou a sala. Dava-se a impressão de ouvir o tic-tac dos relógios. Gotas de suor, escorrendo da testa de Ildeu, ao cair ao chão marcavam, também, o compasso dos minutos.
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
09 minutos: a maquilagem da mulher dos ovos começava já a escorrer por suas bochechas chupadas, dando-lhe a aparência de uma megera fantasiada;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
08 minutos: o fazendeiro entra na sala, cabisbaixo, denunciando, no olhar, sua frustração com a ausência do filho;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
07 minutos: alguém teve um acesso de tosse na assistência, assustando o restante da platéia;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
06 minutos: a datilógrafa do Tribunal tamborilava com os dedos, nervosamente, na mesa, desacostumada que estava com platéia tão grande e calor tão intenso;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
05 minutos: Como um pavão em dança de acasalamento, soberano em seu conceito, o Juiz contemplava a platéia nervosa à sua frente, reinando soberbamente no recinto;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
04 minutos: o barulho do velho e oscilante ventilador de teto assemelhava-se ao rugir dos hélices de um avião, em início de decolagem, sem, contudo, amenizar o calor co-reinante;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
03 minutos: o padre persignou-se , como a encerrar uma oração longa e custosa;
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
02 minutos: Ildeu, de mãos postas, apoiadas na testa e cotovelos sobre a mesa, começa a orar, em busca de um milagre.
Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac…
01 minuto: O Juiz consulta seu relógio e olha, com desdém, para Ildeu, que continua de mãos postas, orando.
Tempo. Todos prendem a respiração.
O Juiz ergue-se da cadeira, com um olhar grave para a platéia, quando, de repente, um tropel tresloucado é ouvido, seguido de uma freada brusca e barulho de cascos de animal na porta do Tribunal.
De um cavalo suarento e resfolegante apeia um jovem, com barba por fazer, empoeirado, trazendo nos ombros um alforge de montaria, surrado.
O jovem entra no Tribunal, dirigindo-se ao Juiz, com respeito:
“Perdoe-me pelo incômodo do atraso, meritíssimo. Sou o advogado do senhor Ildeu, aqui presente”.
“Senhor advogado – bufou o Juiz – na Faculdade em que o senhor estudou não lhe incutiram respeito para com uma Corte Judicial? Não lhe ensinaram que pontualidade é sinal de reverência e sinônimo de sucesso? E que modos são estes de apresentar-se perante este Juízo? Isso são trajos adequados ao exercício de tão meritória profissão”?
“Mil perdões, excelência – contemporizou o advogado recém-chegado – foram as contingências do caso que forçaram-me a agir assim. Não acontecerá novamente”.
“Como assim, contingências do caso?! Quis saber a “Raposa Felpuda ”, advogado da acusação”.
“Sabe, nobre colega – iniciou o advogado da defesa, voltando-se para o interpelador – assim que fui informado desse caso, e que eu seria o representante da defesa, parti, imediatamente, para cá. Contudo, em uma Parada do Caminho fui compelido, por meu estômago pouco afeito ao jejum, a saborear uma feijoada de panela de barro, o que, Data Vênia, o fiz com sofreguidão”.
“Não sei onde o jovem colega quer chegar, já que seus pecados não interessam a esta corte, no momento – interrompeu o outro advogado, olhando para o Juiz”.
“Por favor, deixe-me concluir – pediu o advogado da defesa – é importante que a Corte tome conhecimento desse meu caso, antes de iniciar os procedimentos para resolução do caso em tela. Continuou. Pois bem, saboreava eu aquela feijoada e imaginava, quão bom seria que todos, no mundo, pudessem degustar tal iguaria como eu o fazia naquele instante. Então, Eureka ! Tive uma idéia brilhante, modéstia à parte, e resolvi aproveitar a vasta extensão de terras cultiváveis de meu pai, aqui presente, para dar vazão a tal plano”.
Fez uma pausa, enquanto bebia um gole de água, da jarra que estava na mesa da defesa, e continuou. A estas alturas estavam todos intrigados, inclusive seu pai. Ildeu imaginava-se já falido.
“Chamei o cozinheiro, responsável pelo preparo da feijoada, e lhe pedi mais um prato da referida acepipe. Recomendei-lhe que preparasse um prato com a melhor porção, mas só com feijões, e para viagem. Então, de posse daquele tesouro, parti para um grotão nas terras de meu pai, de terra muito fértil e ainda virgem, para realizar a primeira experiência”.
Mais água. Continuou.
“Cavouquei a terra com carinho e, metodicamente deitei nela as sementes daquele feijão delicioso, cujo sabor eu trazia ainda nos lábios. Reguei a terra, comedidamente, na justa medida para um brotar sadio dos bulbos de tais grãos preciosos, mas, qual o quê, quase duas semanas e nada nasceu, excelência”!
Uma gargalhada grotesca ribombou no salão, proveniente da bocarra da acusação, enquanto o Juiz erguia-se furibundo, com o dedo em riste:
“Se é sua intenção, senhor advogado, fazer esta corte de boba, advirto-o que não terei clemência quando representar contra o senhor junto à sua Ordem. Que o senhor não entendesse de leis seria até compreensível dada sua neoficitude na carreira advocatícia, mas não entender de lavoura e dos princípios biológicos que governam a mesma, sendo nascido e criado em uma fazenda, isso é inadmissível. Onde, em nome dos céus, já se viu feijão cozido nascer”?!
“Na mesma terra, senhor Juiz, onde de Ovos Cozidos nascem pintinhos”.
AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
Sessão encerrada.
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