O dia acende o deserto e a canícula ferve a poeira cujos vapores corroem picos e precipícios. Porém, é o calor queimando dentro de mim que esturra minha carne. Daqui te observo; tão rápido meus olhos possam alcançar tua disparada quanto minhas orelhas apontam para tua buzina. Já o estômago arrasta seu lamento dia após dia por não levar-te até ele, mas te observo com a paciência de um eremita esperando a revelação. Em silêncio, meus olhos acompanham tua balística; em silêncio, aguardo na tocaia enquanto o cérebro se desdobra em artefatos que possam diminuir a distância entre meus caninos e tua carne. Não se engane com esta minha quietude; deixo-te planar baixo turbilhonando a estrada ao longo do deserto, mas o estômago grita. Apenas abafo seu urro de caldeira derretendo a si mesma para que eu atenda seu ávido clamor. Tenho a paciência da espera pelo momento oportuno, quando me lançarei da tocaia e recolherei tu da armadilha; enquanto isso, sou consumido por mim.
É tudo uma questão de entranhas: meu silêncio, minha ciência, não passam de olhos predadores em busca de tua sombra, de projetos que rabiscam algum maquinário capaz de acomodar-te no estômago. Posso ainda dedicar meu tempo a criar algo belo; mas será tão somente o atraente engodo para ter-te no meu repasto. Absorvo-me na minha fome; rasgo o deserto com os últimos aparatos paridos de outras mentes famintas. Não fujas; esfaimado, prometo pouca ou nenhuma dor. A voracidade do estômago se compara à tua velocidade incoerente, logo estarás descansando dentro de mim. São tuas penas esgarçadas entre minhas garras que me obrigam a calar; são teus ossos estalando entre os dentes que me apelam aos engenhos. Submeto-me ao nosso encontro.
É no deserto onde aguardo minha fugaz libertação. Que a breve refeição de tuas vísceras seja a eucaristia que me valha a existência! A embriaguez de teu sangue a escorrer-me do focinho tornou-se meu cativeiro, a clausura num reino cujas ordens insaciáveis meu estômago tirano dita. O céu aberto do deserto ou as fendas abismais cortando o solo são máscaras, sem os limites marcantes de um rosto, que escondem minha prisão. Fui acorrentado por dentro. Por todo deserto posso atravessar; mas de ti, minha fuga é impossível. Meu estômago também é tiranizado por este choro ácido que aguarda ave ligeira. Revolve lentamente o lago gástrico à tua espera e assim continuo a despencar dos desfiladeiros ao teu encalço, fabrico e encomendo equipamentos para aproximar-me até tua corrida pelas estradas do deserto.
Já pude sentir teu cheiro; já pude lamber-te as pegadas. Mas te quero mais íntimo de mim. Já não basta este projétil perfurando as estradas rente aos meus pêlos eriçados. É por isso que não te peço nada, pois não há solicitação do que de me pertence de fato. Apenas te quero de volta e meu estômago impele estas fracas pernas e cérebro cansado para te encontrar novamente. Até breve, meu querido amigo.