Tarde de uma Segunda-feira que ameaçava ser chuvosa e a cidade de concreto parecia mais abafada do que de costume. A volta para casa poderia ter sido mais agradável se não fosse pelo coletivo. Daqueles que tomam duas horas diárias do tempo - e paciência - do usuário. Vamos lá.
Da Rodoviária e seus ruídos
Rodoviária é algo de deprimente. Pelo menos as que conheço. Construída de ruídos. De automóveis, de vendedores ambulantes, transeuntes, meninos de rua, meninos do crime, mendigos, lanchonetes, cobradores...
A Plataforma D e os ónibus que se destinam ao Paranoá estão sempre repletos. Sorte de quem pega "Cabeça de Fila" e não precisa ir em pé. "Menos uma hora da minha vida em pé" - penso eu, enquanto me sento próximo à porta de saída.
Nos bancos ao redor, vários cobradores e motoristas que seguem, de carona, a seus destinos. Provavelmente vão bem mais alegres do que eu, pois não precisam pagar a passagem - fato de profunda alegria em uma cidade onde se gastam R$ 4,40 por dia para andar de ónibus. Nessas horas, até penso em mudar de profissão. Afinal, dizem que tudo passa na vida, menos cobrador e motorista que, aqui, economizam R$ 4,40 por dia.
Do Humor da Classe
Motorista e cobrador são sempre previsíveis. Ou estão de ótimo ou de péssimo humor. Ganham pouco, têm estressantes jornadas de trabalho e, Ã exceção dos aeroportos, hospitais e jornais, fazem parte do clube dos eleitos para que as cidades funcionem diariamente. Faça chuva ou Sol, feriado, dia santo ou - o que é pior - carnaval.
Ainda têm que aturar o humor do passageiro. Certo dia, uma senhora pagou a passagem com vale estudantil. O cobrador, ao interpelar a passageira, duvidando que fosse de fato estudante, limitou-se a ouvir:
"Meu senhor, na minha casa estudamos eu, meu marido e as minhas duas filhas. Só não estuda o cachorro...que resolveu ser cobrador como o senhor!"
Por isso são previsíveis. Para quem passa o dia num trànsito infernal -e quase todo trànsito é infernal - só há duas saídas: ou absorve o stress do caos da Urbe ou adere à galera do "deixa disso" e leva o dia - e a vida inteira - na valsa. Naquela filosofia de "toda Paixão me diverte".
Para meu deleite, os cobradores e motoristas que me cercavam estavam no dia do bom humor. Piadinhas infames, conversas, gargalhadas e fuxicos masculinos do gênero "fulana é gostosa" podiam ser ouvidos em meio a todo aquele trololó.
Uma Pasta e Um Tesouro
Após uns cinco minutos de viagem, outro cobrador subiu no ónibus. Com uma pesada pasta na mão, tinha dificuldades em mover-se no coletivo repleto. De pronto, perguntei a ele se não gostaria que eu a segurasse (a pasta, óbvio!). Ele agradeceu e disse que não, entregando a pasta a um cobrador da trupe que se encontrava sentada atrás de mim.
A conversa que se seguiu foi relevantemente impressionante. O diálogo, iniciado pelo cobrador sentado com a pasta era rechado de achincalhes:
- Tá pesada, heim?! Que é que tu carrega aqui?
- Meu material. É que mais tarde eu vou à escola.
- Que nada. Deve ter um tesouro muito valioso aqui dentro para esconder assim da gente.
- É, de fato. Estou carregando um tesouro. Carrego os meus livros. Um tesouro muito importante. Mas depende de quem carrega...e do destino que dá a eles.
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