O sertanista no trem
Levava os teréns
Que podia levar:
Uma rede, um facão
E a pá que
Ajudava a sapar
Alguma trincheira
Que fosse cavar.
No meio da noite,
Na terra Mafrense,
Muitas léguas distantes
Da civilização,
A lenha acabou,
E o trem parou,
Porque a caldeira
Não tinha pressão.
Ribeiro desceu
Sem sol, nem luar.
Deixou logo o trilho
Pegou uma senda
Sem luz e sem brilho
Sem nada enxergar,
Nos olhos a venda
Da noite escura
E sobre abrolhos
Começa a pisar.
Sem temer o perigo
De bicho selvagem,
O bom sertanista
Com muita coragem,
Fez ali seu abrigo
Para descansar.
E, assim, na trincheira
Por ele cavada,
A noite inteira
Ficou a pensar...
O dia amanhece
No topo da serra,
E o trem parece
Querer galopar
Como corcel arisco
Nas rédeas do trilho
Mas, filho mineiro
Não pode escutar
Senão o clangor,
Naquela manhã
Do triste acauã,
Solitário a cantar.
Veloz sobre os trilhos,
Na curva dos montes
Mais claros que via,
A semana inteira
O trem desafia
O tempo e o espaço,
Quão rápido se sente
E, a cada dormente
Que vê passar,
Apita e fumega
É ponto final,
A última estação.
No longo percurso,
Ninguém percebeu
Que o companheiro
Do norte mineiro
Abandonara o trem
E seus passageiros
Além, muito além
Por outro caminho
Andando sozinho,
Ribeiro está.
Na sombra da mata,
Sem sol poder ver,
Rompia a trilha
Por ele aberta
Como fenda no outeiro
Nem ele sabia:
Era o fim da senda
Que de longe via
Guerreiros tenazes,
Nativos da terra,
Bem no pé da serra,
A tribo Aroazes.
Mas o sertanista
Sequer teve medo
Daquele arvoredo,
Que tanto queria
Guardar o segredo
Da tribo que, um dia,
Em suas entranhas,
A mata escondia.
Seu corpo cansado
De tanto andar
Por horas a fio,
De sede aflito
E por sorte sua
Generoso Sambito
Da morte o sertanista,
Veio ele salvar.
Quando recobrou
O vigor e a força,
No espelho das águas
Viu sombra de moça.
Doze anos, não mais,
Curtida de sol, a pele tenaz,
Os cabelos negros,
Seios despidos
Da cor do romã
O corpo esculpido
Pecado de Tizo
Gosto de maçã
Nudez de corpo, mente e alma
Mamilos rosados, negros cabelos
Poucos pelos pubianos cunhatã tinha
Ribeiro queria estar grudado
Num abraço, em seus braços...
Mas trepar na árvore não podia.
Na copa mais alta do jequitibá,
Jovem índia aroazes se escondia.
Então resolveu, na mente, inventar,
Uma língua possível que pudesse levar
Alguma mensagem qualquer àquela
Menina selvagem, formosa e tão bela,
Veloz e mais forte do que Alencar.
— Jequiriti, jequitá! —
Gritou Ribeiro
Em seu linguajar
E, como por encanto,
Tomado de espanto,
Viu cunhatã descer
Do jequitibá!
Porque, ao nascer,
Pajé lhe dissera:
Tu és a deusa Jequiriti-Jequitá,
Palmeira frondosa, trepada no galho.
Quisera o espírito bom te mandar
Em cento e quarenta e quatro luas
Um deus de longe, que pra perto vem
Teu nome chamar.
- Jequiriti-Jequitá.
Sem nada falar,
Acenou para o deus
Que há tempos esperava.
Precisava fazer
O que pajé lhe mandava
E, pelo aceno, Ribeiro sabia,
Naquele momento:
Jequitá queria
Instrumento de branco
Para o chão cavar.
E a índia trigueira,
Num salto felino,
Numa mão tinha a pá;
Na outra, o facão,
Passou a cortar
A rala caatinga
E, depois, a escavar;
Desenterrou a cuiapitinga.
Há tanto tempo enterrada
No tronco do jequitibá.
O líquido escuro e cheiroso
Sobre seu corpo nu derramado
Passou a escorrer
E fez nascer a deusa-mulher.
Que logo atrelou-se
Ao sertanista em libidinoso abraço
E entregou-se todinha
Ao deus que ela tinha
Por tanto tempo esperado.
Em gozo medonho,
Caíram no sono
E abraçados dormiram.
Longas horas se passaram
E quando acordaram,
Valentes guerreiros dançavam.
E aos deuses cantavam,
Sem nenhuma maldade,
A poderosa dança
Da fertilidade
Enquanto mulheres água jogavam,
Nos corpos despidos,
Após os gemidos.
Para consagrá-los
Aos deuses Aroazes.
O sol já pendia quando
O valente cacique Cuiarana,
Na rede, deitado,
Mandou chamar o pajé
Para invocar os espíritos
Sobre marido e mulher:
Os deuses Jequitibá
E Jequiriti-Jequitá.
Feita a pajelança,
Em silêncio ficaram,
Esperando a voz da selva falar
Cuiú-cuiú a cantar.
Anuncia, por fim,
A vinda da criança.
O tempo será de nove luas
Para curumim chegar.
Mas, enquanto dormia,
Ribeiro a sonhar
Intrigado ficou,
Porque parecia ouvir
Carimbamba cantar:
“Amanhã eu vou”
“Amanhã eu vou”
“Amanhã eu vou”
Sem demorar veio
A noite de um novo dia...
Cuiarana e toda tribo bebia
Aluá de milho e fumava diamba.
Ribeiro aproveitou
da alucinação da tribo
para empreender sua fuga
antes que nascesse o herdeiro
do cacique, seu filho, o deus
Cuiarana Jequitibá.
Precisava fugir,
Porque curumim,
Uma vez nascido,
O pai seria oferecido
Com a deusa Jequiriti
Em sacrifício a Tupã,
Amanhã, na primeira aurora.
E só havia um jeito de salvar
Da morte a deusa Jequiriti:
Se o espírito de Jequitá
Levasse em suas asas
O deus Jequitibá.
No centro da ocara,
Frondosa palmeira
O vento torcia,
Enquanto por ela
Ribeiro subia
Foi quando por sorte
Soprou vento forte
Feito tufão,
Levando ao chão
Quase toda taba.
Na copa altaneira
Da grande palmeira,
Ribeiro cortou
Uma enorme palha.
E, como uma gralha,
Ribeiro voou...
Deixando na crista
O grande facão.
Cravado na palmeira,
O presente do deus
Que trouxe a sorte
Livrando da morte
Jequiriti-Jequitá.
Agora sozinha
Podia esperar
Nascer curumim,
Sem ter que morrer
Com Jequitibá.
Meninos!
Não minto;
Eu canto o que sinto.
Meninos, eu vi
O corpo inteiro
Bonito e faceiro
De Jequiriti-Jequitá!
Eu vi Ribeiro abraçar
Eu vi Jequiriti
Trepada no Jequitibá.
Meninos, eu vi
Ribeiro por lá!...
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