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Erotico-->OS OLHOS DE CAROLINA: PRAZER E INFERNO -- 08/02/2005 - 21:12 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A claridade intensa do dia que entrava pela janela aberta do quarto despertou-me gradativamente, como tantas outras vezes já fizera. Abri e pisquei os olhos atingidos pela luz desconfortante, provavelmente com o mesmo ar aparvalhado que sempre fazia Luíza rir quando sacudia meu ombro esquerdo com violência crescente até fazer-me emergir daquele sono profundo, pequeno fragmento de morte.
Aos poucos, meus olhos acostumaram-se com a luz e passearam, vagos, pelos objetos familiares que estavam espalhados pela peça. Um fraque atirado no encosto da poltrona, o chapéu de feltro em cima da cômoda, a bilha de água e o copo de cristal sobre o criado-mudo. Lá estavam também a bengala encastoada a marfim sobre o canapé, além de sapatos, gravatas, livros, charutos e outras bugingangas que assistiram, indiferentes, minha reentrada no mundo.
Como não havia outro recurso que não me levantar, assim o fiz, não sem espreguiçar-me devagar, ao mesmo tempo em que emitia um desses bocejos guturais, que protestam contra o despertar e tentam nos fazer mergulhar de novo no oceano dos lençóis e travesseiros. Estremunhado, passei a mão pela face e pelos cabelos, calcei vagarosamente as chinelas e dirigi-me, moroso, ao lavatório. As chinelas raspando o chão de tábuas. As mãos coçando as partes necessitadas. Nunca consegui entender por que as primeiras horas da manhã são sempre tão céleres, exigentes.
O rosto que vi no espelho tinha um ar amarfanhado, cansado. A barba por fazer era escura, bem marcada, enquanto as olheiras que dormitavam por sob as pálpebras caídas emprestavam-me uma aparência de peregrino insone, à procura de sua parcela de Paraíso.
A água fria, já depositada na bacia pela velha Evangelina, escorraçou brutalmente a apatia imediata ao sono, mas não a sensação de vazio que invariavelmente matiza minhas manhãs.
Vesti uma das camisas de linho branco que costumo usar quando em casa, prendendo os punhos com as abotoaduras de prata e, em seguida, as calças de brim e as botas de camurça. Estava, pois, devidamente preparado para o café sem açúcar que a implicante Anastácia, cozinheira decana, me faria engolir sob o costumeiro olhar de censura. Também estava capacitado a bracejar com meu cotidiano.
Meus dias na fazenda, aliás, mostram-se, em tudo por tudo, sempre tão iguais que são raros os fatos ou eventos relevantes. Modorrentos, recheados de pequenos senões e mesquinharias, assim como projetos mirabolantes incapazes de preencher os vazios e desvãos da minha alma.
Como por aqui todos sabem, ou parecem saber, exatamente quais os seus afazeres, não preciso dar ordens e gritos ou mesmo de chicote como fazia meu pai àqueles que manifestavam excessivo apego ao lazer e à contemplação estática. Apenas comparo, vez por outra, os livros de apontamentos para verificar a produtividade da lavoura de milho e algodão ou ainda a quantidade de bezerros nascidos, vendidos ou mortos. Uma de minhas diversões preferidas em tais misteres é verificar o quanto é volátil a capacidade do homem de ser confiável.
Sou um bom homem, pois. Agrada-me deixar aos pombos suas migalhas, para que não se afastem da mão que os alimenta.

* * *

- Toc! Toc! Toc!
As batidas ecoam nas paredes da biblioteca onde tento ler uma dessas nossas folhas abomináveis.
- Sim?
Minha voz, ordinariamente monótona, mostra-se, nesse momento, repassada de certa hostilidade.
- Descurpa incomodá dotô, é qui tem um moço aqui cum recado pro sinhô.
A voz roufenha de Evangelina chegou aos meus ouvidos nitidamente, apesar da grossa porta de carvalho que separava sua boca desdentada de meus ouvidos.
Não tinha vontade alguma de sair do lugar, mas a necessidade, infelizmente, obriga. Podia ser um recado do chefe do partido, o Macário Oliveira, que me quer prefeito já a partir das próximas eleições, não sei com que fundamento. Também poderia ser uma mensagem do comprador de carne de São Paulo que prevê futuros banquetes colossais com os bovídeos da fazenda.
Não era nem de um nem de outro. Era uma cara amarelada e um jeito acanhado, pertencentes a um matuto em quem reconheci um jornaleiro da vila. Romão, Ramão ou coisa que o valha.
- Pois não.
Olhei diretamente para seu rosto tosco, que lembrava a cara assustada dos pecadores, no Inferno de Dante.
O rapaz, com um chapéu esfiapado na mão, ergueu brevemente seu olhar para mim, mas logo abaixou a cabeça e seu ângulo de visão, ao mesmo tempo em que me estendia um pequeno papel cor-de-rosa, bonito, tartamudeando.
- Eu truxe um recado da sá Carolina pru sinhô.
Acho que não pude deixar de demonstrar a surpresa grata que essas palavras provocaram-me. Carolina! Os olhos quentes, a boca aveludada e carnuda. O corpo...
- Disse de Dona Carolina Fernandes?
- Inhor, sim.
Algo um tanto inaudito aconteceu comigo nesse momento. O tédio saiu rapidamente a passeio. A preguiça, sempre tão ligada a mim, decidiu ir visitar uma prima filósofa, a meditação. Tornei-me repentinamente hospitaleiro:
- Ô, Evangelina, me vê aqui um café pro moço, faz favor!
Saber que aquele papel viera das mãos de Carolina era, ao que tudo indicava, um poderoso antídoto à minha habitual letargia.
Romão, Ramão ou seja lá que diabo for, curvou tanto a cabeça que poderia contar os pêlos do próprio peito, enquanto se escusava, ligeiro e vexado:
- Carece de si incomodá, não, dotô. Si incomode, não.
A boca de Carolina surgiu na minha cabeça. E também a deliciosa linha do queixo, o pescoço, o colo e... os seios. Aqueles seios redondos, imponentes, que pareciam apontar a direção de um céu venusiano. Minha generosidade tornou-se expansiva:
- Eu faço questão, meu amigo. Não se acanhe por nada. Vamos até a cozinha beber um café.
Na sala não seria recomendável – sou filho de Dona Almerinda.
O peão, afortunadamente, não tinha perspicácia o bastante para perceber o significado de ser levado a conhecer as delícias do café no local aonde é feito e menos ainda para entender o calor que eu sentia no rosto ao pensar em Carolina. Assim, mais que o convite, aceitou também a proximidade com o fogão de lenha. Enquanto isso, eu vagueava pelas latitudes de um corpo sublime, imaginado apenas, mas provavelmente tão eruptível quanto o Vesúvio. Carolina! Carolina! Nos víramos tão poucas vezes e por tão pouco tempo:
- Permita-me dizer-lhe, madame, que, somente após a sua chegada, pude entender o quanto as estrelas devem padecer quando vêem seu brilho.
Aqui estava eu, no melhor estilo dândi campestre, no baile em casa dos Bais. Acabara de ser apresentado à Carolina pela dona da casa, mulher de costumes largos e pouca atenção aos ditames sociais. Sequer mencionara-me as origens e a situação da bela jovem que, de imediato, chamou-me a atenção.
O vestido vaporoso, as mangas bufantes e o todo de sua indumentária atestavam, como depois pude comprovar, um gosto refinado e uma atenção cuidadosa com os ditames da moda.
Carolina possuía uma dessas feições que encantam tão logo passam a ser observadas. Pele muito clara, porcelânica, cabelos negros e lisos, àquela noite ajeitados em um coque galante no alto da cabeça, olhos azuis escuros e profundos e uma boca de lábios suaves, cujos movimentos eram tão belos quanto expressivos. Seu rosto levemente ovalado era, ainda, adornado por um nariz pequeno, voluntarioso, que certamente já desafiara alguns de seus muitos pretendentes. Oh, sim. Tinha, decididamente, muito espírito.
O galanteio que lhe fizera, contudo, não caiu em terreno fértil. Carolina parecia ser mulher para esgrimir com páreos muito melhores que eu. Recém-chegada do Rio de Janeiro, onde era, segundo soube depois, presença obrigatória nos mais concorridos saraus, limitou-se a sorrir, dizendo-me, entre os rápidos movimentos do seu leque de penas de pavão:
- Seus galanteios são perturbadores, senhor. Acho que serei obrigada a refugiar-me dos seus efeitos junto às senhoras ou correrei riscos extremos.
O sorriso desdenhoso e o porte altivo, porém, negavam suas próprias palavras enquanto se afastava, depois de cortejar com a cabeça. Integrando-se facilmente a um dos vários grupos da festa, passou a palrar animadamente com algumas senhoras e moças da sociedade local, sem ligar importância ao meu olhar sôfrego.
Procurei por todos os meios ficar sempre próximo a ela, ouvir-lhe a voz argentina e o riso agradável. Mas os olhos irônicos e mordazes não se voltaram para os meus uma única vez durante toda a festa.
Como não tenho por hábito fugir aos embates amorosos, encetei um estratagema um tanto ridículo para dela me aproximar, mas nem por isso ineficaz. Ao passar uma vez mais por perto de Carolina, um pouco antes do baile acabar, fingi esbarrar em uma mesa e entornei parte do cálice de champanhe sobre a parte superior do seu vestido. Sua surpresa foi, até onde pude notar, genuinamente feroz, assim como sua reação:
- Francamente, senhor. Talvez não devesse portar taças de bebida, já que o conteúdo das mesmas parece ter um efeito tão nocivo em si!
Os olhos, antes irônicos, estavam refulgentes de uma cólera tão feminina, quanto evidente.
- Por favor, senhora, não encontro palavras para justificar tamanha parvoice. Permita-me que lhe ofereça meu lenço e as minhas mais sinceras vênias.
Estendi-lhe meu lenço encarnado, com minhas iniciais bordadas a ouro. Carolina, porém, não o pegou de imediato. Ficou olhando para meu rosto e, depois, para o lenço, de uma forma entre irritada e perscrutadora. Então, surpreendentemente, o sorriso irônico de antes voltou a brincar em seus lábios.
- Tudo somado, acho que posso conceder-lhe o prêmio de originalidade em termos de galanteios, senhor. E de insistência.
Mero rábula que sou, penso, contudo, que posso ser considerado homem para tais apuros. Sorrindo com meu melhor ar contrito, olhei-a, todavia, de tal forma que, mais do escusas, procurava deixar clara a impressão que me causara.
- Lamento tê-la incomodado de forma tão constrangedora, senhora. Mas, creia-me, as flores mais belas encontram-se sempre nos locais de mais difícil acesso. Talvez por isso a constância e mesmo a impertinência sejam os maiores atributos daqueles que pretendam admirá-las.
Carolina não pode deixar de rir, com aquele seu trejeito facial tão cativante. Talvez eu fosse, aos seus olhos, um espécime digno de estudo, ainda que um tanto avariado. Pegou do lenço e comentou, com voz zombeteira:
- Quer dizer, então, que é um jardineiro, senhor...
- Carlos Albuquerque Loureiro, para servi-la. Já tive a honra de ser-lhe apresentado anteriormente, embora... não de ser lembrado, pelo que vejo. Diria que, mais do que jardineiro, sou um cultor da beleza das flores, sejam elas de natureza vegetal ou humana.
Carolina sorriu-se ao seu modo irônico, antes de comentar.
- Nem todas as flores estão abertas à visitação pública, meu caro senhor. Há aquelas que se reservam apenas aos seus legítimos possuidores.
Então, a bela Carolina era casada? Não me desagradou, contudo, essa sua revelação. Antes, açulou-me o interesse.
- Oh, longe de mim querer apossar-me das flores alheias. Não me entenda mal. Eu me referia apenas ao meu desejo de admirar, platonicamente, as lindas cores das pétalas da flor, senhora. Jamais tomá-la para mim.
A ironia nos olhos da jovem tornou-se ainda mais intensa. Evidentemente, o que eu lhe dizia não devia ser novidade de espécie alguma. Apenas mais um flerte de salão. Não obstante, o lenço, que até então buscava apagar ou, pelo menos, disfarçar o resultado que alcançaram minhas supostas pernas trôpegas, interrompeu-se e quedou inerte nas graciosas mãos de Carolina.
- Talvez esteja sendo indelicada, mas sua fama o precedeu, senhor. E não coincide exatamente com o que me disse sobre as flores alheias.
Isso disse-me ela de forma um tanto brusca, enquanto devolvia-me o lenço.
A afirmação de Carolina fez com que dois sentimentos opostos emergissem dentro de mim: raiva aos tarameleiros desta vila-pardieiro e alegria por saber que, de alguma forma, a moça quisera informar-se ao meu respeito.
- Creia-me senhora que é menos verdade o que quer que tenha sido dito sobre minha pessoa nesse pormenor. Prezo-me de ser um cavalheiro, notadamente quando em face de uma dama.
A moça sorriu, então, de uma maneira tão deliciosa que me fez rir também, sem querer, extasiado.
- Não se agaste tanto. Ainda não lhe disse que desgosto dos jardineiros que procuram nos jardins de outros o objeto de sua adoração. Apenas não os quero, digamos, à volta do perfume de minhas pétalas.
Inclinando a bela cabeça e cortejando-me galantemente, Carolina dirigiu-se ao tocador, onde vestiu-se com sua mantilha de renda e partiu. Não foi ao toillete recompor seu vestido. E também não me olhou ou sorriu-me à saída.
Carolina! Ah, Carolina! Que lábios bem feitos e provocantes. Que olhos irônicos tão desafiantes, adúlteros em germe. Pena que não sobeje às palavras o talento de traduzirem sensações, desejos e pequenas utopias. Sim, utopias. Era assim que eu via Carolina, seus olhos e seu busto, despidos ambos, à minha frente e dentro de minha imaginação. Uma utopia à Morus, mas com laivos bacantes.
Quando me preparava para sair, fui interpelado pela dona da casa que, graciosamente, embora de modo um tanto impertinente, sorriu-me à guisa de cumprimento.
- Já de saída?
- O que mais posso fazer que não dar aos outros o regozijo de verem-me pelas costas, respondi-lhe, irônico.
A jovem, que me conhecia melhor do que qualquer outra pessoa, sabia, também o melhor modo de espicaçar-me. Assim, comentou:
- Sabia que a bela Carolina indagou-me muito de si?
- Folgo em sabê-lo. Gosto de saber que bocas tão bonitas pronunciam palavras ligadas a minha pessoa.
Minha resposta ia no mesmo tom entre lisonjeiro e sarcástico que ela usara ao falar-me.
A mulher sorriu mais largamente, sempre ao seu modo zombeteiro, acrescentando:
- Não fique tão feliz, meu caro. A parte que mais interessou a ela não foram seus olhos ou seus escassos méritos. Mas, sim, sua fortuna.
Riu-se e, usando da familiaridade que tinha para comigo, deu-me as costas, indo cumprimentar alguns convidados que se retiravam.
Mesmo um pouco contrariado com os comentários da dona da casa, fui-me, enfim, da casa dos Bais, ansiando ardentemente encontrar Carolina de novo, o que não me foi difícil devido às pequenas dimensões de Campo Grande. Acho até que, se nos juntarmos todos, não formamos, ainda, uma quadrilha parisiense. Em compensação, formamos uma perfeita tribo.
Via-a dois dias depois, pela vitrine da loja de Bertolucci, numa de minhas pouco convidativas visitas à vila. Em meio às peças que acabavam de chegar, seu sorriso luminoso de mulher elegante e, por extensão, ávida compradora, refulgia como um diamante. Era só prazer entre sedas e tules, entre adquirir e, futuramente, mostrar. Sofreei o cavalo tão logo a vi (nada de burros!) e apeei, apressadamente, temendo perdê-la. Uma miragem, afinal, é sempre tão fugaz!
Tirando o chapéu, adentrei a loja, todo olhos para o lindo vestido que se recheava, inteiro, de Carolina:
- Se soubesse que a vila estava tão bonita hoje, teria acordado mais cedo.
Minha voz grave e lisonjeira ressoou pelo acanhado aposentado, fazendo com que a moça virasse sua cabeça e seus olhos. Que olhos! Mesmo em cem anos não veria outros que tais, com aquele matiz azul profundo e envolvente. E o sorriso!? Lá estava o sorriso irônico, que fazia meu sangue entrar quase em ebulição, se formando tão logo os olhos de Carolina me reconheceram.
- Ora viva! Não sabia que era tão madrugador, senhor Albuquerque.
- De fato, não o sou. Mas, nos dias em que tal prodígio ocorre, sinto-me devidamente recompensado desde que possa ter à minha vista visão tão bela.
Curiosamente, o sorriso que Carolina ostentava murchou rapidamente com minhas palavras, enquanto a moça abaixava seus olhos. Fixando o olhar nas tábuas do assoalho, Carolina disse, após algum tempo, em voz baixa:
- Gostaria que, ao invés de galanteios, o senhor pudesse manifestar, para meu bem e para o seu, opiniões mais convenientes à nossa posição.
Não sei se cheguei a corar com a reprimenda. Carolina parecia provocar em mim reações infantis. Mas balbuciei, com desembaraço um tanto forçado, de quem não esperava tal observação, após um sorriso tão belo:
- Estou sendo absolutamente sincero, senhora. Lamento, contudo, que tenha de minha pessoa imagem tão negativa que a leve a ter tais idéias sobre meu comportamento.
Carolina não respondeu de pronto. Mas continuou a olhar-me. Aliás, olhava-me com tal intensidade que me senti incomodado e mesmo constrangido após alguns instantes. Afinal, respondeu-me:
- Será que causo, de fato, em vossa senhoria, impressões que o obriguem a ser sempre tão galanteador, mesmo que de modo inconveniente?
Apesar do ar meio cáustico com que tinha sido feita, a pergunta parecia guardar em si algo de profundo, de reflexivo. Não respondi logo. O tom com que a indagação fôra formulada indicava a necessidade de dar uma resposta à altura.
- Creia-me, senhora, que sua lembrança tem sido o alento de minha vida nos últimos dias e, mais do que isso, sua presença é fonte de inspiração para meus anelos.
À minha voz baixa e veemente, Carolina apenas sorriu novamente, mas desta vez de forma tristonha.
- Ei-lo que torna ao seu natural. Temos aqui uma versão rural de Casanova, talvez?
Apesar da ironia evidente, Carolina parecia não estar tão segura de si como em nosso primeiro encontro.
Aproveitei e falei, então, de forma ardente, mas de modo a não deixar Bertolucci e seu português pouco castiço ouvir-me, em sociedade:
- Por favor, não se zangue, senhora. É culpa minha se, por determinação do destino, sua beleza tocou-me a ponto de não deixar-me pensar em outra coisa que não na perfeição dos seus traços? Tenho eu, porventura, mancha de pecado por desejá-la até o ponto da dor física?
Carolina, agora, não foi tão pronta na resposta. Pareceu-me francamente abalada com a veemência das minhas palavras. Virou-se abruptamente para uma prateleira de chapéus femininos. Depois deu-me as costas, enquanto suas mãos se juntavam e se torciam, sôfregas. Por fim, voltou-se novamente para mim. Disse, então (seria rubor o que vi nas suas faces?):
- Acho que não temos mais o que conversar senhor. Gostaria que se lembrasse sempre, contudo, que sou uma mulher casada.
Sem mais palavras, Carolina saiu da loja com tal precipitação que esqueceu sobre o balcão de Bertolucci sua sombrinha. Tomei-a, depois de alguns instantes de pasmo, e corri atrás de sua bela proprietária, mas não a vi mais na rua.
* * *

O cheiro forte de café fez com que eu emergisse dos meus devaneios e voltasse à realidade. Mas nessa realidade havia, novamente, Carolina, seu bilhete escrito em letras desenhadas:

“Gostaria muito de conversar consigo, mas preciso fazê-lo em particular, sobre um assunto que muito me interessa e, segundo creio, ao senhor também. Posso esperá-lo para um refresco às duas horas? Mande-me confirmação pelo Romão. Sua amiga, Carolina”.

Assim, descobri que o nome do jornaleiro era Romão e, mais importante, que Carolina precisava de mim para algo que, mesmo sem saber, intuía como um fato especial, uma situação diversa de aspectos rotineiros.
Meu espírito não se quedava quieto diante dessa incógnita. O que poderia desejar de mim Carolina, depois de se mostrar tão arredia em nossos encontros? Seriam favores o que desejava e, sendo assim, de que tipo? Dinheiro, talvez? Não conhecia sua situação financeira e, afora nossos encontros dias atrás, nada sabia sobre sua vida. Adotara, desde há muito, esse hábito salutar, qual seja de não indagar, nunca, sobre a vida das pessoas da vila. Uma pergunta, aqui, eqüivale muitas vezes a uma condenação peremptória e à revelia de quem se mostra curioso. Da mesma forma, não travo relações que dêem margem, já pela intimidade, já pela constância, a pedidos de natureza venal.
Vendo e ouvindo Romão sorver barulhentamente o café quente, ocorreu-me perguntar-lhe, disfarçadamente, se Carolina lhe fizera saber algo sobre a natureza do encontro que desejava ter comigo. O parvo de nada sabia. Ganhara apenas alguns cobres para me trazer o bilhete.
O segredo açulou-me a curiosidade. O que será, meu Deus!?
Como não encontrei nenhuma resposta plausível, fiz o que era mais sensato: esperei. Não sem uma ansiedade que há muito não visitava meu espírito.
Voltando ao meu quarto de vestir, fiz uso das melhores e mais odoríferas pomadas do meu toucador. Coloquei e tirei dezenas de vezes meus fatos mais galantes. Troquei e ajustei outro tanto as gravatas que possuía e que, por razões que não entendi, pareceram-me piores nesse dia do que em outras ocasiões.
Ia ver Carolina, afinal de contas. Não podia ir de qualquer jeito e com vestes que não estivessem à altura da situação.
Decidi-me, afinal, por um paletó cinza, que ia bem com minha tez clara. Ajustei o relógio de bolso (herança da família há pelos menos quatro gerações – Eis o fantasma de Almerinda que ressurge!), os sapatos envernizados e a bengala de castão de prata.
Ao cabo de duas horas e após vaporizar três vezes a água de Lubin importada de França, senti-me suficientemente apresentável aos olhos de Carolina. Isso não impediu que me olhasse ainda várias vezes ao espelho, ajeitando os fios de cabelo que insistiam em fugir ao abraço da gomalina.
Ao almoço, não consegui engolir mais do que duas ou três garfadas. Em compensação, por pouco não transformo a garrafa de Porto, até então intacta, em botelha de náufrago.
O relógio da sala, enfim, tocou 13 horas e 30 minutos. Cuidei que essa hora não chegaria jamais!
Já montado no alazão inteiramente branco, ajaezado com uma sela mexicana, fui alvo de olhares de natureza diversa dos empregados da fazenda. Evangelina olhava-me com o que me pareceu uma não disfarçada admiração, ao passo que Anastácia lá resmoneava consigo qualquer coisa que não ia bem com meu caráter de bon vivant. Ao diabo com elas e suas bênçãos e maldições!
Envernizado, perfumado, pus-me a caminho, sofreando o ímpeto do garanhão que queria atirar-se, loucamente, pela estrada convidativa. Mantive-o a trote, de modo a chegar no horário. Não podia deixar Carolina pensar, ora bolas, que seu convite fosse tão importante a ponto de deixar-me em uma roda-viva desde que dele tomara conhecimento.
Cheguei à vila pouco antes das duas horas e dirigi-me, a passo, até a casa ocupada por Carolina, situada na Rua Velha, a poucas jardas da Prefeitura.
A vivenda mostrava, apesar do pouco tempo em que a jovem estava em Campo Grande, seu toque pessoal, algo entre o sutil e o gracioso. Pequenas samambaias, de um tipo em que não reconheci a espécie, pendiam da varanda, ornada ainda com flores de diversas naturezas, além de cadeiras reclinadas de espaldar alto, próprias para o repouso.
Apeei com certo tremor nas pernas, imperceptível para qualquer outra pessoa e subi os três degraus da varanda, batendo com a argola de metal na ampla porta de carvalho.
Uma criatura magra, envelhecida e de cor indefinível abriu-me a porta, indagando com voz de tísica:
- Sim?
- Poderia avisar, por obséquio, a dona Carolina Fernandes, que Carlos Albuquerque deseja vê-la?
A criada, ao que tudo indicava, tinha recebido instruções quanto à minha vinda, pois antes mesmo de avisar a patroa, convidou-me, discretamente, a entrar e sentar-me no rico sofá da sala de estar, o qual ia muito bem com a requintada disposição e forma dos outros móveis, revelando inegável luxo e bom gosto da dona da casa. Em seguida, a serviçal abalou rapidamente para o interior da vivenda.
Logo após a mulher sumir-se por uma porta lateral, surgiu em seu lugar a imagem sublime, extremamente galante e desejável, de Carolina.
Vestia uma toilette simples e, até aonde pude notar com meus rigores de elegante campesino, mesmo imprópria para receber visitas, tal a sua exiguidade. O colo estava todo à mostra. Os braços, lácteos e delicados, revelavam-se inteiros, esplêndidos. A cintura fina, curvilínea, estava bem marcada pelo tecido leve, vaporoso, que fez meu coração bater em um ritmo febril. Pude perceber claramente o contorno das coxas roliças e de todo o seu corpo tresandante a patchoulli.
O sorriso da moça, mais do que qualquer outra coisa, era tão amável que cheguei a temer qual seria o tamanho do empréstimo.
- Que bom que veio. Temia que não o fizesse.
- Ora, e por que eu me recusaria? Não é todo dia que posso ter o prazer de conversar com tão bela criatura. Respondi, enquanto me levantava para recebê-la.
Carolina estendeu-me a mão, que beijei delicadamente. Em seguida, sentou-se no sofá, que busquei compartilhar com ela o mais depressa possível.
- Espero não ter causado qualquer incômodo a si por este convite tão fora de hora.
- Em absoluto. Disponho do meu tempo de forma cabal. Tanto assim que folgo quando posso fazer faço algo de proveitoso.
A jovem sorriu com um trejeito cativante dos lábios ante a essa expressão da verdade. Perguntou-me em seguida, educadamente, sobre as coisas da fazenda, trocando comigo alguns comentários amáveis e pondo-me ao fato de que seu marido estava em visita aos arrabaldes da cidade, quando a indaguei a esse respeito.
Após as gentilezas do estilo, houve um silêncio que se prolongou por alguns segundos, enquanto Carolina mirava as flores arranjadas graciosamente em uma jarra sobre a cômoda e mordia levemente os lábios inferiores.
- Na verdade, não sei como encetar o assunto pelo qual o chamei, mas, antes, gostaria de saber se já me desculpou pelo meu comportamento de outro dia.
- De bom grado a desculparia, senhora, desde que houvesse motivo para tanto. Mas, ao contrário, acho que eu acabei me excedendo em meus galanteios.
Calei-me ex-abrupto quando a criada entrou no recinto, trazendo uma bandeja com refrescos variados. Após depositá-la sobre a mesa de centro e servir-nos a nós ambos, saiu com seu passo silente.
Passei a bebericar o líquido gelado e doce, sem deixar de olhá-la. Carolina, por sua vez, parecia imersa em seus pensamentos, fitando de maneira ausente um ponto qualquer no carpete da sala. Parecia hesitante.
Voltando-se diretamente para mim, então, olhou-me atentamente nos olhos. Não ao seu modo irônico e mesmo sarcástico, mas de uma forma cautelosa e pensativa. Demorou-se a indagar e, ainda assim, o fez a medo:
- Bem, não sei como dizer isso, porém... (Aqui ela esboçou um tênue esgar de lábios, numa espécie de sorriso tímido). Seus elogios, quando nos vimos pela última vez, expressavam o que realmente pensa ou são apenas parte do seu arsenal de lisonjas quando encontra as mulheres em sociedade?
Confesso que não esperava uma pergunta assim tão direta e incisiva. Olhei para seu rosto e não encontrei nenhum indício da habitual ironia ou de intenções ocultas. Os olhos, sobretudo, pareciam encadeados aos meus, expectantes:
- Eram sinceros, senhora. Evidentemente.
Carolina olhou-me então de uma forma que ainda não fizera. Insistente, sôfrega e, seria desejo o que vi em suas pupilas?
- Mesmo? (A voz estava rouca).
- Sim. Posso até fazer elogios por mera cortesia a uma senhora, mas não posso fazer meu coração palpitar tanto em presença de uma mulher quanto o sinto bater diante de Vossa Senhoria.
A voz e mesmo o trejeito que Carolina adotou nesse momento surpreenderam-me completamente. Sussurrante, me disse:
- Acha-me realmente atraente?
- Mas é claro que sim. Na verdade, não consigo imaginar uma mulher que me seja tão desejável quanto a senhora.
Mais do que a minha resposta, Carolina pareceu prestar atenção aos meus olhos e à verdade neles contida. Eu a achava simplesmente adorável, voluptuosa. Tão jovem e tão desamparada em sua beleza entre cândida e bacante!
Mantendo no rosto uma expressão de extrema meiguice, Carolina tomou-me a mão, fitando-a demoradamente, ao mesmo tempo em que me acariciava com seus dedos longos e macios o dorso e a palma.
Ainda com os olhos baixos, falou-me, primeiro de modo hesitante, depois mais confiante, por alto, embora de modo a não deixar qualquer dúvida em meu espírito, sobre seu casamento, arranjado entre famílias amigas, dos desgostos que esta união burocrática lhe trouxera, assim como de sua esperança de, algum dia, poder fazer prevalecer as escolhas do seu coração.
Eu limitava-me a assentir, ternamente, apossando-me avidamente de suas mãos alvas e delicadas.
Finda a breve narrativa, Carolina sorriu-me mais uma vez, indagando:
- Espero que não penses mal de mim após essa insólita confissão.
Como resposta, apertei de forma ainda mais veemente suas mãos ágeis e frescas, enquanto a olhava de um modo que faria um frade certamente enrubescer e fazer seu pelo-sinal.
Então, Carolina fez algo que surpreendeu-me tanto quanto jamais nenhuma outra mulher o conseguira. Fechou os olhos, suspirando, derreou graciosamente o pescoço e deixou cair sua cabeça sobre meu ombro esquerdo, abandonando-se de tal modo que cheguei a suspeitar que tivera algum mal súbito.
O movimento, contudo, foi feito com tanta graça que o considerei, não obstante meu espanto, natural e de uma ternura que até então não havia experimentado.
Meu coração batia tão forte e minha respiração ficou tão descompassada com essas ações pequenas e, ao mesmo tempo, tão significativas, que me vi na obrigação de sorver grandes golfadas de ar. Ali estava, no meu ombro, uma cabeça encimada pelas madeixas sedosas da mulher mais atraente que já conhecera em minha vida. Tão delicada, tão meiga, que não atinava com o que dizer ou fazer. Optei, não obstante, pela última possibilidade. Erguendo seu queixo delicadamente (seus olhos ainda estavam fechados) desci meus lábios até encontrar sua boca vermelha. Beijei-a ternamente por alguns segundos, mas apenas até os lábios de Carolina se abrirem, receptivos, quentes, lascivos. Passei a saboreá-los, então, de forma veemente. Mais e mais. Até tornar-me ardoroso e exigente, fazendo seu corpo reagir aos meus desejos.
Carolina era, realmente, muito do seu sexo, muito fêmea. As mãos delicadas e macias deslizaram rapidamente do meu pescoço para os botões do meu paletó e dali para minha camisa, suprimindo a fronteira entre seus dedos carinhosos e os pêlos do meu peito.
Sua boca fazia incursões pelo lóbulo de minha orelha, passando pelo pescoço e chegando, pouco depois, ao meu peito, enquanto suas mãos trabalhavam, avidamente, na desobstrução daquilo que desejava ter em si, concretizando um momento de puro instinto, capaz de conduzir à única sensação que faz do homem um semideus.
Sou um homem que se crê sensualmente experiente, mas, naquele momento, senti-me um mero aprendiz, passando de uma sensação a outra de forma rápida, quase tão rápida e imprevista como o desencadear da situação que nos colocara ali.
Já então Carolina despira-se, com elegância e refinamento, expondo à luz da tarde, que filtrava-se pela janela, um busto tão belo quanto sensual, um adorno que correspondia plenamente ao corpo de uma beleza que inspirava ardor, não contemplação.
Seus gestos ao tirar as roupas eram tão naturais e revestidos de tanta ternura que mereciam ser eternizados nas tintas de um Monet ou de um Renoir. Existia tanta sublimidade em seu desnudamento, tanta ânsia em seus olhos, que me senti comovido como nunca me sentira em uma situação de tal natureza.
Carolina estava ali, nua, inteira e curvilínea, ao meu alcance. Tão acessível e sedenta! Nos olhos um desejo forte, lisonjeiro em sua sofreguidão. Nos braços abertos um convite e uma entrega. Um convite que eu aceitei e uma entrega com a qual eu não sonhara: delirara.
Logo, eu estava em Carolina, exercitando uma posse tão violenta quanto urgente, embrenhando-me em regiões recônditas, delicadas e frágeis. Tão femininas! Tão íntimas!
Foi como se eu mergulhasse em um vórtice escuro, silente e profundo. Uma cavidade que me levava ao encontro do cosmos, da verdade primeira da humanidade. Senti meu corpo fugir de mim, restando-me apenas o calor suave no qual eu mergulhava cada vez mais. Cada vez mais.
Então, do fundo do meu delírio, um grito angustiado de mulher ecoou e atingiu, após alguns instantes, a área consciente do meu cérebro. Não era um grito de luxuria ou devaneio, mas sim de medo, de terror.
Abrindo a custo os olhos, dei com a face assustada de Carolina e, seguindo a direção de suas pupilas dilatadas, com outros olhos, negros e ferozes, pertencentes ao seu marido (vira seu retrato ali mesmo, na sala). O bigode que tremia junto com o lábio superior, o rosto congestionado e os olhos incendiados tornavam seu aspecto terrível, enquanto nos olhava de um modo francamente insano. Um fio de saliva escorria pelo canto de sua boca retorcida, trêmula.
Não consegui esboçar qualquer reação, limitando-me a olhá-lo, estupidamente, sem atinar com uma forma de sair dessa situação extrema.
Então, vi-o levar a mão ao interior do paletó. Vi a mesma mão regressar trazendo empunhada uma garruncha.
Meu instinto de sobrevivência levou-me a erguer o corpo subitamente. Levantei-me, desajeitado, de sobre Carolina. Estendi a mão direita espalmada, em um gesto patético que pedia paz e que trazia à tona o mesmo medo covarde que sempre tivera como companheiro.
Erguendo-me completamente do sofá, ridículo em minha nudez adúltera, balbuciei:
- Por favor, senhor, deixe-me explicar o que...
Foi quando ouvi um estampido ensurdecedor, seguido imediatamente de outro som tão atordoante quanto o primeiro. Pequenas brasas atingiram meu peito e algo como um ferro incandescente atravessou-me o tórax tão rápida quanto dolorosamente. A fumaça e o cheiro acre de pólvora encheram o recinto.
“Ele atirou em mim! Ele atirou em mim!”
Dei, oscilante, um ou dois passos para trás, enquanto ouvia um grito de raiva de Carolina e sua voz furibunda:
- Mas que inferno! Até quando terei que aturar teus destemperos, Fernandes? Com esse já é o terceiro a quem dás cabo...
Carolina continuou movendo os lábios, mas eu já não ouvia os sons produzidos.
Meus joelhos vergaram e tornaram-se incapazes de sustentar meu corpo. Vi o tapete que revestia o chão da sala subir vertiginosamente e bater no meu rosto. Mas não senti nada.
Estranho. A noite já estava chegando! Como estava escurecendo depressa! Logo, fez-se noite completa.
Foi como se eu mergulhasse em um vórtice escuro, silente e profundo. Uma cavidade que me levava ao encontro do cosmos, da verdade primeira da humanidade. Senti meu corpo fugir de mim, restando-me apenas o calor suave no qual eu mergulhava cada vez mais. Cada vez mais.
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