Usina de Letras
Usina de Letras
16 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50671)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->As águas que rolaram -- 20/09/2009 - 20:26 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A roupa suja ocupava toda a área de serviço. Havia camisetas sobre a mesa de passar, calças dormindo pesadas sobre o piso frio, calcinhas e cuecas misturadas sem o mínimo erotismo sobre o cesto. Juntas, as peças formavam meio Monte Everest de panos a lavar. Crarice não sofria mais com isso. Tantos anos lavando roupa para família e para fora que o costume já tinha amortecido a revolta e a raiva. Se tem roupa, o jeito é lavar. É como dizia o médico que descobriu a hérnia do filho de Crarice: “Hérnia diagnosticada é hérnia operada!”. As roupas para lavar eram a hérnia na vida dela. Até doíam um tantinho no corpo do fim do dia, mas era como se tivessem sido operadas anos atrás. Roupa suja é roupa lavada!
A máquina de lavar também era uma espécie de meia-alforria. Quando começou nessa vida aguada de lavar roupa para comprar comida não podia pensar em ter uma máquina elétrica. Custavam o olho direito da cara e levavam o outro olho com a despesa da luz. Como gastavam energia aqueles trambolhos difíceis de arrastar! Depois que o mundo mudou, que os panos de vestir ficaram mais finos e temperamentais, as màquinas de lavar mudaram também e já faz uns bons anos que Crarice esnoba os uniformes de Dry Fit do time da Vila, a quem ela atende desde que eles vestiam um amarelo desmaiado bom de desbotar, enfiando a dúzia e meia de camisetas ao mesmo tempo em sua super lavadora repleta de botões e controles. Vida mais fácil com botões e controles! Tudo na hora, na pressa, no tanto precisos. Que venham as roupas sujas do mundo!
Uma giradinha do botão grande, uns números verdes que conversam com ela e dizem que tudo parece certo, um apertão com a palma da mão no disco maior do conjunto giratório e a máquina começa o seu concerto techno. Onnnnnnnnnnnn! Tek! Shhhhhh! Pow! Pow? Agora deveria ser ouvido um Ziiiiiiiiiiiimmmmm!, e não um Pow! Que powrra é essa? Crarice repete a operação inicial: giradinha, números verdes, apertão, mas a máquina permanece muda, inerte e inútil. Não se pode elogiar nada! Basta reconhecer a importância de alguma coisa na vida para que ela comece a dar defeito. Acontece com seres humanos e com máquinas de lavar também. Com todo tipo de coisa. O jeito era voltar no tempo e enfrentar o tanque que, nos últimos anos, tinha virado apenas um coadjuvante no “processo Crarice de limpeza de vestuários”. Lavar roupa em tanque é como andar de bicicleta: a gente nunca esquece. E sempre dá alguma dor nas costas.
Não havia tempo de deixar tudo de molho para enfraquecer a poeira acumulada entre as fibras. Ia ser no muque mesmo! Lava, lava, lava. Esfrega, esfrega, esfrega. Hummm! Cheirinho de limão! Lembrou-se da piada que tinha visto o Costinha contar no Programa do Faustão e riu sozinha. Gostava de ouvir piadas, mas nunca foi boa para contar. O Costinha era engraçado. A cara dele já era, ela só, muito engraçada. A água da torneira jorrando, Crarice sentia falta da máquina de lavar, mas achou agradável ser invadida de novo por aquele torpor que os movimentos repetidos do vai-vem na beira do tanque produziam. Quando pilotava o tanque todo dia, costumava ter grandes ideias entre um macacão e uma calça de brim. Também tinha muito gosto em relembrar coisas do passado dela, coisas boas que já tinha perdido, mas que voltavam sempre na água suja do fundo da cuba. Essa saudade molhada era melhor ainda se uma musiquinha antiga tocasse no rádio. O rádio!
Com toda a pressa esquecera de ligar o rádio! Enxugou as mãos e os braços no avental de pano que ficava por baixo do avental de plástico e foi até a velha estante de aço que sustentava, além dos produtos de limpeza (o que rende mais, o que limpa mais, o que engana mais), um rádio-gravador com muita história. Click. Locutor com voz de quem comeu mel e vive rindo de tudo. Bem que podia tocar um Air Supply... A sorte de Crarice, naquela manhã, não andava tanta. No lugar do “Here I Am”, o locutor anunciou um “Do you remenber?” do Phil Collins. Dava pro gasto e pro gosto.
Crarice lembrava de muita coisa. A vida de cinquenta e quatro anos dela não seria um tema de uma música, nem serviria para roteiro de um filme, mas ela tinha história para contar para si mesma. Nunca tinha se casado, sempre seguira mais o coração que a cabeça. E o coração dela tinha a mania de amar gente cheia de enrosco. Homens casados, homens doentes, homens bandidos, homens violentos. Todos com a mesma ideia fixa: sair dramaticamente da vida de Crarice sem deixar pista, bilhete ou dinheiro trocado. Um deles deixou uma barriga que explodiu num filho muito querido, Cláudio, com “l” depois do “C”. O menino cresceu rápido e logo seguiu a trilha dos homens de Crarice: foi-se, um dia, sem notícia. Crarice se perguntava, às vezes, se essa sina não era culpa daquele nome diferente, culpa da falta de letramento do pai: Crarice. Tinha aquela coisa da numerologia...
Que distração! A torneira ficara aberta enquanto Crarice cuidava do fundo musical para seus devaneios. O tanque estava a ponto de transbordar. A mão treinada da lavadeira fechou a torneira e buscou rápido o tampão. Tateou o fundo do tanque e descobriu, surpresa, que o tampão não estava lá. Olhou para prateleira à sua frente e viu que o tampão nunca tinha saído do lugar em que descansa e espera. Ainda sim, a água não seguiu seu curso normal, rumo ao ralo. Tanque entupido. Não faltava mais nada! Onde, raios, foi parar o desentupidor?!
Se o tanque era quase um objeto de decoração na área de serviço na qual, salvo defeito, imperava soberana a máquina de lavar, o que seria o desentupidor? Um quase-nada, candidato a objeto de instalação em bienal de arte, brinquedo improvisado em casa há muito sem criança. Desentupidor... desentupidor... Num canto, embaixo da pia, atrás das panelas! Lá havia sido a última morada do desentupidor, local pouco higiênico. Crarice abriu a portinha do gabinete amarelo de fórmica já meio deformada pelos pingos fujões da torneira da pia. Derrubou umas panelas e lá estava o bendito e salvador desentupidor de ralos. Crarice teve que fazer um esforço grande para alcançar o cabo de madeira. Movimento mal calculado que não planejou direito a parábola necessária para sair do subsolo do mármore da pia. Tummm.
A casa toda pareceu tremer. Crarice carimbou a pedra da pia com a própria cabeça. Um baque. Aquele tipo de dor que chega meio atrasada, mas que chega chegando, com tonteira e vontade de vomitar. Não fosse o desentupidor improvisado em bengala, Crarice teria ido ao chão. Chão, que nada! Quem vive de suor na cara, não tem tempo para desmaios. Que venha a roupa do mundo! Ninguém segura uma lavadeira experiente, armada com um desentupidor de ralos e com a cabeça para explodir!
O rádio seguia com sua seleção de flash backs e o tanque seguia entupido. No auto-falante, Wet, Wet, Wet, Love is all arround. No ralo, choc, choc, choc, a água começando a descer. Crarice punha toda a sua força no movimento, e a ventosa negra, apesar de desbeiçada, fazia bem o trabalho, dando chupões obscenos no fundo do tanque. O fluxo já era quase normal, mas o redemoinho ainda estava abaixo do que a lavadeira considerava satisfatório. Mais força Crarice! Se ela fosse uma mulher fraca, agora estaria pensando que falta fazia um braço de homem nessas horas, braço que quando não serve para enlaçar, serve para fazer força. Crarice, no entanto, não era fraca e nunca precisou de homem para desentupir a vida ou o tanque, embora sentisse falta de certos cheiros e certos jeitos em algumas noites. No tanque, não! Aquele era o ambiente dela, e homem só entrava ali para atrapalhar, cobrar roupa lavada, pedir dinheiro para o bar.
Usou a indignação que sentia desses exemplares mal acabados de seres humanos e tuchou a borracha no ralo. A pressão criada foi tanta que Crarice não conseguia desgrudar o bicho, que parecia querer engolir o tanque todo. Precisou fazer vários movimentos menores, de cima para baixo, para começar a soltar a gulosa. Ouviu um barulho, como se bolas de gude tivessem saído do ralo e entrado na ventosa. Seria possível que algum moleque danado da rua tivesse pulado o muro para fazer essa judiação? Entupir tanque de lavadeira com bolinha? Um crime. Crarice conseguiu soltar o desentupidor e recolher as bolinhas de gude que não eram bolinhas: eram objetos dourados, tão brilhantes que não pareciam estar no esgoto há muito tempo. Seriam brincos? Crarice segurou-os na mão esquerda e demorou a reconhecer o desenho antigo das joias: abotoaduras!
Abotoaduras?! Ninguém usava mais aquele tipo de coisa para fechar punho de camisa. Quem tinha tempo para isso? Coisa mais 1976! Latão com uma estrela de cinco pontas em baixo-relevo num dos lados. Pareciam conhecidas aquelas abotoaduras. De fato, eram idênticas ao par perdido pelo... Não poderia ser. Tantos anos isso. Tantas águas já rolaram naquele tanque, naquela vida. Ele tinha sumido no dia da morte do Frank Sinatra. Crarice chorou por uns três meses, pela falta dos dois. Não podia ouvir “My Way” que as lágrimas rolavam e se misturavam ao caldo sujo do molho da roupa. Perdera um ídolo, perdera mais um amor. Talvez não o maior ídolo, mas o maior amor. Bateu a mão na cabeça latejante tentando mandar pelo ralo aquelas lembranças sofridas e a dor que começava a incomodar. Olhou mais uma vez as abotoaduras, desistindo de entender. Deitou-as na prateleira, ao lado do tampão. Já estava pensando se as bichinhas valeriam algumas coisa no penhor quando a campainha tocou.
Esperou para ouvir o grito do homem do gás. Não ouviu. Talvez fosse algum freguês com algumas trouxas. Sacudiu as mãos molhadas e foi para a porta da frente. Olhou pela janela e viu um homem alto, antiquado, mas bem vestido. Testemunha de Jeová? Quem merece? Pensou em não abrir e fingir que não havia ninguém em casa. Depois pensou que todo mundo tem o direito de trabalhar e, mesmo sem decidir se pregação era trabalho, resolveu abrir a porta para aquele santo dos últimos dias. O homem estava de costas. Virou-se ao ouvir o barulho das dobradiças.
- Cra...
Apertou os olhos, forçou as vistas contra o sol. Custou um pouco, mas reconheceu. Estava mais velho, sem abotoaduras nos punhos, mas era ele.
- Inácio?
Era ele. Crarice não conseguia parar de enxugar as mãos no avental e não sabia se devia abrir o portão ou fechar a porta na cara dele. Lá no fundo, o rádio começava a cantar “And now the and is near...”. Se tivesse desmaiado ao lado da pia, ia achar que aquilo era um sonho, um pesadelo. Inácio sorria amarelo, olho pedindo, mão forçando a barra do portão. Coincidência não podia ser. Se as abotoaduras tinham renascido do ralo, quem poderia garantir que não era dali que Inácio tinha voltado. E o que vem do ralo, depois de tanto tempo, vem contaminado. O que faria ela se, ao usar o desentupidor, em vez das peças de latão, viesse pelo ralo a cara-de-pau do Inácio? Sorriu, mais para si mesma que para ele, e fechou a porta. Ainda ouviu a voz de Inácio “só quero conversar...”, mas virou as costas. Já ao lado do tanque, pegou as abotoaduras e enfiou de volta no ralo. Abriu a torneira. A água correu, com pressa, para o esgoto. Usar abotoaduras e lavar roupa em tanque são coisas tão 1976! Riu pelo nariz, pôs o tampão no fundo da cuba, pegou a caixa de Omo e cantou com o Sinatra: “And did it my way...”.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui