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Contos-->Espectro dissonante -- 22/03/2000 - 15:27 (Ronaldo Cagiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Conto premiado em 1º Lugar no IX Concurso de Contos Ignácio de Loyola brandão (1998), de Araraquara-SP.


ESPECTRO DISSONANTE
Ronaldo Cagiano

Depois de tudo, a pior loucura é a razão
com suas arestas de cupins dourados.
Delermando Vieira




Deus é muito longe.

E eu (in)tento alcançá-lo, mesmo que não me tenha como um dos escolhidos. É para que a noite não me cubra de migalhas e haja tempo de reverter a pedra que se coloca à porta e me impede de passar.

Pois é uma estranha convergência de desacertos, uma conspiração de ervas daninhas, um congresso de escuras assimetrias. Natimortas primaveras cedem lugar a desertos permanentes. O cálice está derramando um vinho acre para o delírio insano dos que alimentam o escabroso desejo de compreender o caos. Estou aqui, neste lugar, com algum prazer, vendo uma barata esmagada na quina da porta do meu quarto, contemplando o inseto intruso, que me agride com seu zum-zum, ser torrado no queima-mosca; e, num abanar de mãos, vou vencendo o pernilongo que me pentelha o sono, rindo ao vê-lo intoxicado pelo círculo de fumaça do durma bem que se evola lentamente.
Enquanto entre tudo isso e outras angústias eu contemplo lá fora, depois da sacada de um quarto alugado, o neon do Café Paris num enervante acende-apaga..

Deus é longe, vivo ouvindo isso de um professor ateu, que sempre passa por aqui para discorrer sobre Nietzsche, Sartre, anarquismo e toda sorte de filosofia. Mas desconfio que Deus me ouve mesmo assim, mesmo tendo que voltar os olhos para as mães da Plaza de Mayo, para os gemidos das crianças de Sarajevo, para as vítimas de Kosovo, para os refugiados da África, desterrada e faminta. Eu, aqui, contemplando esses seres minúsculos sendo devorados pela minha revanche psicológica, numa fatalidade que lhes impus por mero capricho da impaciência. Eu que muitas vezes viajei pelas utopias. Alexis sou, há 27 anos estou no mundo e quase nada de útil para a humanidade, mas precocemente afugentando meus ais, metamorfoseando delírios e vinganças. Ando agora na (es)calada dessa noite, mais que noite de lua, noite interior, de infortúnios, que se abate soberana sobre meus sentidos. Vejo-me diante da vida tal qual aquela mosca que acabei de entregar à morte tórrida num aparelho de captura que não conhece metafísica, nem chocolates, nem distúrbios pessoais. E Kafka ou Clarice ririam de mim, absorto e intransigente, nessa sanha de capturas, de desempate com a desilusão.

A dialética está aqui, neste quarto de pensionato, onde converso com fantasmas recém-criados e debito a Deus e ao Diabo culpas ancestrais, dores antigas, revoltas recentes e um novelo de complicações que não cabem nessa matéria que pulula e se condena em inúteis apuros.

Um morcego habita em mim e não consigo destroná-lo. Não alcanço sequer a rua em frente com meus olhos fatigados e meu corpo não menos cheio de fadigas, sentado, inerme, nesta cama que me traz o desconforto de um paiol e a irritação de uma Pulex irritans - tanto quanto nossos infernos, nos quais mergulhamos movidos pela inadvertência e de que não conseguimos sair jamais.
Mas antes do inseto injustamente morto e do mamífero que faz ninho em minhas entranhas, eu tento tapar as galerias da alma, pois ainda vivo o infortúnio de ser-e-estar num mundo caviloso, onde as gentes se deterioram, onde o vazio cobre nossas vidas, onde os pântanos secretam nossas lágrimas e devoram nossa carne despojada, formando os miasmas, que profanam nossas narinas.


Quando dei por mim já havia esse cárcere, essa dissolução. Lá fora, os muros caíram, Berlim é uma festa, enquanto outras amuradas são erguidas em tantas latitudes selvagens.

O meu amigo é um homem morto, está logo ali, numa capela dentro do campo-santo, velado em câmara-ardente, esperando sua vez de ser matéria que os vermes anseiam justamente. Ao seu redor campeiam loas e algumas falsidades que os homens carregam para essas despedidas. Não, eu não vou ao enterro do Mário Francisco, porque ele não está morto para mim. O seu corpo, friamente estirado num féretro de segunda, não me assusta. O que me assusta são as fraquezas humanas, os gestos encomendados, a dissimulação, a leviandade - tudo isso está muito bem ensaiado nessa sociedade de valores periféricos, de condicionamentos e perversões.


Sargento, o cão que divide comigo este espaço alugado (e, muitas vezes as sobras de comida que deixei no prato por pura anorexia ou má vontade), me espia fugazmente, sem entender o que se passa além de quatro paredes mortas. Se não me entende, há uma compreensão sensorial, pois detém-se, fita-me com os olhos paralisados e ouve as vozes de um pensamento alienígena, como se minhas vísceras resmungassem códigos cavernosos.


Quando pequei pela primeira vez, enfrentei o confessionário como um subversivo espera as hostilidades das câmaras de tortura. Sevícia psicológica, mais que o medo convencional estampado no rosto das carolas. Menino ainda, não entendia a sisudez algébrica daquele padre italiano com seus severos paramentos pretos vociferando leis esquisitas numa missa rezada em língua morta. Mais tarde fui entender o porquê de tanta empáfia secular nas bocas de quem se arvora porta-voz de um deus que é bem mais simples e direto do que imaginamos e jamais contemplaria atravessadores que mercantilizam a fé em nome de uma salvação estipulada.

Espantalhos no jardim. É assim que às vezes me parecem as coisas, todas feitas sob medida, e o poeta ainda vivo dentro de nós, de sua franca explanação, me lembra o dia em que movíamos sonhos e utopias: Esmerino Magalhães Júnior. Nesta lápide em que tu estás jazem também muitos séculos de pestanas queimadas em nome da austera e não menos ferrenha legitimidade de questionar o mundo. Mas o que me sobra de tudo isso é a lealdade dos que não perdem o sentido, quando o sentido de tudo é ser coerente, distante dos palácios, cioso de seu libelo como força motriz das nossas esperanças.


Ali estão muitos dos meus dias, Sargento. Tu que me acompanhaste, tão taciturno quanto eu, nas minhas andanças pela cidade, às vezes só nós dois naquelas ruas imensas, ríamos por dentro diante do despautério de certos acontecimentos. A plataforma da estação me remete ao sorrateiro tempo de meus invernos infantis. Cada trem que partia levava um pouco de mim. Os que chegavam, resplandeciam sombras e a ditadura caprichava nos porões da vida, dizimando os que sonharam passar o Jordão. A terra prometida exigia calos, feridas, chagas, sangue pisado e repisado e, no final de tudo, ainda nos sentiríamos como Sísifo, na eterna busca, tentando atingir o topo da montanha, mas vencidos pela brutalidade de uma pedra que nos remetia abaixo, num declive de horrores sucessivos.

Não, não quero descrer. Bem-aventurados os que crêem, porque crêem: a lição de Borges me impressiona como o topázio lapidado emitindo sons e cores até chegar à alma diáfana de minha amada. Mas eu estou trôpego, impaciente, como um repórter farejando criminosos em campo aberto. Em cada esquina plantam uma tragédia e não há lugar para novas expectativas. Essas portas com suas dobradiças enferrujadas, essas paredes enfumaçadas cobertas de teias de aranha e o velho Abílio fumando seu charuto importado impingem ao tempo e às coisas um sentimento de abandono. Aqui é o quarto e não vejo além dessa janela semi-aberta, quando lá fora o burburinho de gente e carros e a intermitência dos semáforos denunciam que a vida me escapa e no fundo de cada utopia há um buraco sem fim.

Há uma hora em que tudo se esboroa, em que o desespero é uma ferroada em nossos brios, em que Deus parece estar distante, mas não morto. Mas a sensação de impotência caminha lado a lado com um desejo irrefreável de dialogar com os anjos. Aí eu viajo até a vellha ponte de Cataguases e contemplo Virgílio me dizendo através de Eneida, naqueles metais octogenários que desafiam o infinito e as águas e me disparam sem qualquer solenidade:
Pacificusne est ingressus tuus?
Revertere ad me suscipiam te.

Paro no meio da ponte que une as duas partes da cidade. Lá embaixo, um ancestral Rio Pomba, velho de guerra, que, depois de serpentear pelas encostas da Mata até ganhar o Paraíba do Sul e chegar ao mar, vai carregando os destroços de todos nós e levando longe os frugais barcos de uma infância perdida entre as gramáticas e os fantasmas. Cobras e lagartos que regurgito nesse exercício de catarses, quando lembranças de antanho surgem como tocaias psicológicas nessas quase indesviáveis emboscadas do espírito e sua imponderável seqüência de espantos. Não está mais ali o menino grávido de sonhos, feito de encantos e partidas, de entalhes e madrugadas. E Glaura sorrindo no sanatório, enquanto a tísica acenava com uma morte à Augusto dos Anjos.

Jardins inescrupulosos habitam deslealmente o corpo de há muito desditoso, de sofrença curtida. Um esquema sutil, enganador, mas pérfido, transita por essas veias onde um veneno se dissolve sem ser contido. Não há obstáculos ao devaneio que impregnou esse tempo de apocalipses sutis, homeopáticos, mas decisivos. Polifonia de vampiros percorrendo a madrugada com seus signos embrutecidos e suas auréolas de ferro. O homenzinho raquítico que toma conta do quarteirão e pensa na falsa paz da vizinhança sonolenta esboça a dureza e o plágio de estar vivo. A manhã ainda vai chegar, porque o sol nunca se recorda das dores nem o tempo sabe de delícias. A cada um segundo a sua condição. Os ossos guardam segredos. As almas lavam-se no próprio abandono de uma sociedade enferma e infestada de equívocos. O Senhor está mais perto. Mas os homens, pesados e sem sorte, ainda são maioria, aguardando o desfecho de suas vidas pouco interessantes. Eu seria um deles? Creio que sim, porque de vão em vão deparo-me com todas essas coisas.

Seria uma noite como outra qualquer, não fossem esses reflexos de luzes difusas piscando do outro lado da rua a beijar o teto do meu quarto, enquanto, absorto nesta cama, meus olhos paralisados parecem narcotizados pelo vermelho, pelo verde, pelo amarelo, pela silhueta que um irritante apagar e acender salpicam no ambiente. Esse movimento ritmado, quase hipnotizante, me faz escapar do mundo numa duradoura fuga de memória que vai me levar ao sótão de minha casa vazia, lá onde eu vou desenterrar antigas reminiscências. E, perdido nesse exercício metafísico, perambulando por mundos inauditos, de súbito me cai às mãos uma página em que posso ler: "Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão." E me vejo personagem de Emanuel Medeiros Vieira, reproduzindo os complexos tiranos dessa teia de investigações que insistem em se projetar nas paredes de meus aposentos, entre um e outro piscar de olhos.

"Como se envelhece rápido! É o que penso. Um gato nos espia. A noite foi muito orvalhada. Pego um caderno antigo, folheado a ouro, muito belo. É o meu diário." Ah, e como dói, como atinge, como ressoa esse chafurdar nas contingências quotidianas. Reproduzo o personagem que, muitas vezes, me disse mais que todas as filosofias: "Como dói tentar unir as pontas do passado".

Não, não quero repetir a intolerância do mundo. Não quero saber de mais nada, o ritmo das coisas me encabula.

- Alexis, o mundo está perdido, estão matando trabalhadores sem-terra. Os obituários se fartam da tragédia social. Um índio foi brutalmente queimado e morto por pequenos-burgueses num ponto de ônibus de Brasília. A morte está atenta, o braço estrangeiro da indesejada das gentes invade os cárceres e de uma só vez cento e onze quedam em Carandiru, outros vinte em Eldorado. A Candelária tinge-se de sangue. O mundo que mostraram, Alexis, é uma fornalha escaldante. As necrópoles estão mais habitadas que as cidades de gente viva. E o parlamento um balcão, um templo "franciscano". É tudo dispersão, etiqueta, coisificação, desmantelamento.

Como num campo de espasmos, Pepita, minha irmã, vai envelhecendo com seus fantasmas, traída pelo marido, numa luta renhida que ela jamais programou. Não vence uma, não quer ir embora. Seu rosto é um mapa de rugas e ela mal saída dos quarenta anos. Quando falei pra ela: sacode a poeira, dá um chute no azar, reage, mulher, ela simplesmente resignou-se, porque disse ser plano de Deus. E continuou seu itinerário de desencantos, de desencontros, sempre aturdida, alquebrada e sem-sorte. Um dia, quando cheguei à rodoferroviária para embarcar para São Paulo, com os classificados de um jornal marcados de ofertas de emprego, eu ia em mais uma dessas terríveis mudanças em busca de nova vida, fiquei sabendo que Pepa havia sido atropelada por um motoqueiro no Eixão Sul, quando atravessava em frente ao Hospital de Base; certamente, iria tomar o ônibus para Sobradinho e enfurnar-se na chácara onde morava com o marido e os seis filhos. A manchete no Correio Braziliense pegou-me de surpresa. Há meses não via minha irmã. Mas é quase verdade que aquela morte não veio de graça. Ela partiu desta para a melhor. Nada apagaria seu padecimento diário ao lado de Farnésio, a não ser a morte, a morte mesmo, com suas garras afiadas e seu jeito insolente de terminar as coisas.

Neste exato momento muitos estão começando a noite. Por aí. E meu pesadelo me desasloja, me remete a uma entressafra de des(a)tinos. O muro é mais adiante, e sinto sua sombra no meu quarto. Um crepúsculo selvagem, outonal, dentro de mim. A lua é minha vizinha inalcançável, fazendo seu brilho invadir o silêncio mineral do meu quarto e trazendo lembranças que caruncham o meu peito. A solidão da carne não desaparecerá com o sono. Seria Morfeu o velho senhor a aliviar minhas dores? Não durmo, passeio pelo jardim nefasto que me leva a esses lugares recônditos do pensamento, da alma em pedaços. Já quase não ouço o movimento de carros, de gente. A confeitaria do Guedes cerrou as portas. O bêbado que insiste em sua ladainha etílica perambula sem sucesso até cair, tomado pelo peso de seus próprios goles. De mãos dadas com a insalubridade dessa madrugada com seus espectros dissonantes e suas areias nos meus olhos, acordo para um sono desigual. E me vem à tona uma silenciosa conversa de anjos, um recado de Rosário Fusco que repassa, involuntário, boiando nos meus pensamentos, como uma página que cai diante de mim, sim, como um recado que emerge daquele triste dezessete de agosto de setenta e sete: "a única novidade é o sol".


Amanhã verei se sou irremediável na minha solidão de nervos incandescentes.

Escrevo aqui, sem louvor nem ódio, mas no lento ofício de esperas e procuras, digo a mim que sou o pobre Alexis (digladiam-se em mim o id, o ego, o superego, com suas hiperbólicas convicções) e esse exercício de paciência dissimulada trouxe-me nesses anos todos um gosto amargo na boca, dias de fel e uma pátria cheia de escuridão, cheia de batalhas inexatas, de óbitos injustos. Mas antes que eu vá habitar o frio e o ermo da cidade de silêncios, antes que meu nome seja uma inscrição perdida no mármore distante, eu quero fitar a lua que ainda reverbera sua luz no asfalto esburacado e penetra meu leito como uma rosa no cimento armado.

E quando a antemanhã me colher no cansaço, terei sido um homem comemorando sua lealdade ao depositar estas confissões, fruto de uma luta a(r)mada contra todas as catedrais ferinas que se erguem todos os dias. Essa silhueta de pavor dentro do meu quarto terá sido um encontro de contas com uma existência e seus tormentos.

Alguém antes de mim esqueceu uns papéis no criado-mudo. Recolho o que ficou perdido na solidão de uma gaveta, enquanto uma aranha espreita-me imóvel no canto superior direito do quarto, logo mais entrará naquela fenda e sumirá no forro. O papel, seguro-o em minha mão, sem saber o que fazer e algo está escrito que eu não consigo assimilar ("...E saberão que a incerteza de que fui vítima traz um poema em permanente expansão.") alguém quis escrever um poema ou terminá-lo, não sei bem, sei que outra solidão igual à minha habitou este lugar.

Quero acender a luz, mas temo que isso incomode o casal entre beijos que habita a noite no ponto de ônibus em frente ao meu quarto. Só eu os vejo e imagino que estão felizes. Cada qual cuide de sua felicidade. Eles estão ali, e não perceberam que o corujão das duas da manhã já passou. Perderam o bonde, mas estão esperançosos.
1997
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