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Artigos-->RECENÇÃO à obra "Respiração das Vértebras" de João Rasteiro -- 03/01/2003 - 18:50 (joão manuel vilela rasteiro) |
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Gostaria de começar a apresentação da primeira obra
deste jovem autor, chamando a atenção para o seu título:
Respiração das Vértebras.Porque é um título que tem que
ver com uma grande tradição da escrita desde o início de um
século que entretanto acabou, o século XX.Fala-se hoje muito
da escrita do corpo e do corpo da escrita, mas foi a grande
revolução modernista, de há precisamente um século atrás a
grande responsável pela recuperação do corpo para a litera-
tura.E a ruptura que isso significou não se deu apenas, e nem
se quer de forma mais importante, ao nível dos paradigmas
éticos ou morais.A ruptura mais importante deu-se-e con-
tinua a dar-se, porque ainda não acabou e o seu desafio conti-
nua - ao nível dos paradigmas dominantes no próprio pensa-
mento do século XX e deste agora nosso século XXI.
Qual é o corpo da escrita? Corpo humano e corpo da
linguagem? Qual a natureza da sua materialidade? Qual a
natureza da matéria humana que lhe dá forma? E ao pensa-
mento forma? E ao pensamento transfigura? E nessa transfi-
guração, a nós próprios e & 341; imagem do mundo nos faz
irreconhecíveis?
Diz o poeta João Rasteiro, em "Mutação"(pp.26-29):
1
(...)
a boca cheia do corpo
onde o coração se consome agachado e devagar
uma sincera cegueira
desde a respiração palpitante entre as bocas
e as guelras onde levita a carne
(...)
3
Entrando pelas fendas, batendo, rebentando
nos brônquios a válvula do corpo
de um corpo de pedra em perda
prisioneiro de formas em que não cabe
polpa asfixiando o caroço
nas raízes doces do útero permissivo.
4
Onde o fogo lambe as cicatrizes
há um homem debaixo da pele.
Lia, há apenas alguns dias, com os meus alunos de
poesia contemporânea, os poetas ingleses da Primeira Grande
Guerra.Alguns daqueles que morreram nas trincheiras, ques-
tionavam - então de forma extrema(foi no século XX, e este
não parece ir melhor...) - a questão da escrita e do corpo.
Perguntavam-se pela escrita no corpo, aqueles soldados/poe-
tas, perante a mutação humana das formas mutiladas.Per-
guntavam-se pelo melhor dos mundos que a modernidade
lhes prometera e deixavam-nos quase sempre na entropia do
sil& 281;ncio ou na exig& 281;ncia do dever de ficar loucos."Só tenho
as mãos & 341; frente, entre o rosto e a fogueira", diz-nos Herberto
Helder, numa das epígrafes que João Rasteiro escolheu para
iniciar este livro.Estas são as mãos que escrevem, as mãos da
escrita - que se queimam quando a fogueira se aproxima: a
fogueira de um mundo (quase sempre em chamas, neste século
ora terminado) que verdadeiramente nos leva & 341; criação: ape-
nas o nosso mundo da matéria e do corpo - sem nada de
metafísico. O fogo divino, tal como Nietzsche anunciava na
sua morte de Deus, tem por força que se transformar num
fogo meramente humano, na sua grandiosa insignificância -
essa grandiosa insignificância que João Rasteiro escolheu cele-
brar.
Esta é a fogueira que mutila o corpo e que dolorosa-
mente se inscreve na página, criando novas formas humanas
(formas que se procuram mais verdadeiras) através dessa ins-
crição numa página que arde-pois essa é a página da nossa
História. E é a linguagem no centro desta história que este
livro interroga e questiona de forma agonista. Como diria
um dos meus poetas favoritos, Robert Duncan: um livro que
se constrói como uma larva dentro do seu casulo, lutando
contra a própria matéria que lhe dá vida, para se libertar e
nascer forma outra - uma borboleta."Rebentando os diques
dos seus membros" (p.17),afirma Rasteiro - lutando contra
o corpo da linguagem por uma linguagem que há-de por força
ser outro corpo. Podemos ler em "Sobreviv& 281;ncia" (pp. 15-18):
1
O ar crucificado em cada fruto
uma quantidade de sopro e dor
apenas com a luz das suas feridas
(...)
3
O canto que se perde nas searas da língua
a subtileza de desenhar promessas
rebentando os diques dos seus membros
desafiando a teia que inunda a nudez da carne
na hora inquieta da respiração suspensa.
(...)
Um poema sobre a sobreviv& 281;ncia dura, agónica, que
encontra o seu limite na forma que não dá mais de si: o fruto
maduro. O mesmo limite que encontramos na secção 4 do
mesmo poema, em estrofe de verso único:" A sobreviv& 281;ncia
dura num gosto de ameixas maduras".
Estamos perante uma poesia que se escreve nos limi-
tes, nos limites da criação (o fruto maduro) e nos limites da
linguagem que a serve. Esta é a poesia inaugurada pelo mo-
dernismo no que o modernismo significou de questionação
da própria modernidade: de questionação do sentido do
moderno e do progresso. Este, o corpo da linguagem que se
constitui como ruptura epistemológica, ainda impossíveis de con-
ceber.Aí reside o limite e o agonismo, porque é uma luta a par-
tir de dentro, uma luta pela imensa possibilidade em cuja margem
nos damos conta existir:
"A Margem"
(...)
2
O vento bate nos ramos da margem
enquanto a pedra queimada no centro
anuncia as bagas
que rolam na ressaca cozida
em p& 281;ndulos frágeis
a nudez e a cegueira
o mosto aberto do búzio encantado.
3
Até ao centro onde pulsa a margem
enredo a respiração sob os dedos ponteados
no búzio onde as constelaç& 337;es se incendeiam
ao sopro das pétalas repisadas
na cor moribunda dos frutos.
(...)
Nascemos pois para a infinita possibilidade e não para
a necessidade; nascemos apenas para uma mortalidade feliz
em que o todo da criação permanece por terminar: o todo da
criação onde tudo permanece incompleto - & 341; espera da
acção, & 341; espera da participação individual na transformação
da matéria, & 341; espera desse acto gratuito que estabelece a rela-
ção entre os elementos, a relação entre as palavras, a relação
entre os corpos. & 340; espera, tão simplesmente, do princípio
repetido e, por isso, co-primordial, de um acto de amor.
Esta é uma poesia agonista e de limite, mas também,
e simultaneamente, uma poesia em que o processo alquímico
do estabelecimento de relaç& 337;es produz a transfiguração per-
manente do mesmo e nisso se regozija, celebratória: respi-
rando as vértebras. Como um recém nascido, que inspira pela
primeira vez o ar e aí se reconhece corpo, fora do limite do
ventre da mãe, entrando agora e apenas no limite de si pró-
prio, no limite das suas próprias vértebras ao ar nos pulm& 337;es.
Afirma o poeta, em "Respiração das Vértebras" (pp. 9-14):
1
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
& 341;s vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal.
4
No cerne do fogo na argila da criação
os corpos interrogam as coisas e emudecem
o deslumbramento do primeiro dia
o fascínio da descoberta sobre
um corpo intensamente só.
(...)
6
Os corpos necessários no remoinho da garganta
desaparecem como floresta abatida
como a folhagem iluminada das antigas idades
a respiração duradoura e frágil
o salto imortal de uma miragem.
O salto imortal é o repetido salto para a eternidade
do processo que é a vida, "respiração duradoura e frágil".
As antigas idades recordam-nos, sugestivas, essa passagem do
humano pela História, idades que são marcas do que já não
está e que contudo permanece. E a garganta faz-se então o
remoinho, metonímia do humano e da linguagem, lugar
momentâneo e sôfrego querer engolir o mar que é todo da
criação.O mesmo lugar momentâneo e sôfrego que é o cor-
po da paixão do Amante pelo corpo Amado. E o corpo do
amante é o corpo do poeta, tal como o corpo da amada é o
corpo da limguagem, a própria poesia. Aí o poeta/amante se
dá vida, respira as vértebras e se transfigura: corpo de ar-
gila que vai cozendo em novo molde, até que adormece "como
espiga madura e exausta", diz Rasteiro ("Presságio",p. 23).
Esta é a poesia do nosso século, a poesia que responde
& 341; nossa História onde as promessas de mundos perfeitos se
goraram, onde o futuro parece ter falhado, sendo preciso
reinventá-lo. Este, o mundo onde o poeta tem a responsabi-
lidade de não perder a capacidade de resposta.
Para tanto é preciso que os poetas sejam capazes de
ousar ir & 341; descoberta do ainda inconcebível, tal como João
Rasteiro foi capaz de ousar. Por isso, necessariamente, vejo a
poesia do nosso século como investigação epistemológica ou,
se quisermos, como uma poesia que necessariamente deve
voltar ao sentido etimológico de poiesis:fazer, construir. Urge
fazer, reinventando, outras vis& 337;es do mundo e para isso pre-
cisamos cada vez mais dos poetas: precisamos - desesperada-
mente, estou em crer - desta arte considerada tão inútil no
mundo contemporâneo.
A poesia será, nesse sentido, uma forma extrema
de exercer o políticoe autores como João Rasteiro incluem-
se claramente nessa tradição de demanda poética que
nietzschianamente nos exige a felicidade sobre a terra. Assu-
mir essa responsabilidade é uma tarefa difícil, que exige, tal
como o poeta afirma, "feroz plenitude" e "rendição humil-
de", celebrando a forma grandiosa com que construimos
catedrais - e cientes, como diria o grande poeta modernista
norte-americano William Carlos Williams, no seu poema
"Spring and All", de que entramos neste mundo nus,tendo
como única certeza, assustadora, o nosso acto de entrada: a
enorme dignidade de cada parto para dentro de um mundo
de morte.Lembrando Williams, vejamos o poema "Obses-
são" (p.42) de João Rasteiro, um poema que se constrói num
jogo quase oximorónico com a rima interna:
o lugar do sono
a maçã precipitada decapitada arqueja
ela o estendal do visível
barco em agonia dicotomia impune
um corpo de outro corpo natural
no orvalho paciente inocente sopro
que enrola vértebras fendidas
ressoando a morte sorte inspirada
em símbolos de feroz plenitude
obsessiva respiração a rendição humilde
alinhada no potencial do corpo
as vozes celebrando assustadoramente
como catedrais o seu próprio parto.
E gostava de terminar, olhando para o poema que
encerra esta primeira obra do poeta. João Rasteiro ter-
mina com um texto sobre o linho: o linho antigo das toalhas
dos partos e dos lençóis dos noivos, mas também, e por que
não, o linho das mortalhas.Trata-se de um poema sobre esse te-
cido puro e fresco que nos aconchegava e nos acompanhava o cor-
po - que nos aconchegava e nos acompanhava a respiração das vér-
tebras - nos seus momentos mais importantes: o nascimento, o
amor e a morte. O tecido puro e fresco que, tal como o corpo,
nasce cíclico do ventre materno e eternamente (pro)criador da terra:
"Agonia do linho"
1
No dorso inacessível da agonia
o gelo incendiado do remorso
coze as dores com o desejo
nas asas suaves do bafo mal abençoado
aguardando pacientemente em vigília
o pássaro que procura a infância.
2
A dança mágica dos gafanhotos
anuncia o polén sedutor
em que o corpo nascido na véspera
se acende em lâminas por dentro
sem medo de enfrentar a serpente
que domina o sil& 281;ncio da falésia.
3
A boca aberta respirando o canto das cinzas
talvez esconda o contorno do relâmpago
as pálpebras húmidas das inundas máscaras
onde a respiração das vértebras chega a prender
o desespero sobre as colinas do linho.
4
Na sedução do rosto onde ardem os lírios
no espelho em cuja solidão se v& 281; o homem
um Deus reduziu a nada a memória que
por dentro do forro do linho se escoa.
5
Nos pomares cresce a mortalha do linho quebrado.
in, Capinha, Dra.Graça(1); "OFICINA de POESIA"(Revista da
palavra e da imagem),n& 351;o-II SÉRIE-Coimbra-2002
(1)Professora de literatura na Universidade de Coimbra
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