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Contos-->UMA INFÂNCIA -- 17/11/2009 - 17:19 (Divina de Jesus Scarpim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não sei como eu era, mas sei como parecia a mim mesma. Minha mais antiga lembrança. Eu era só pernas e cabeça. Muito alta, muito altas as pernas porque chegavam até o pescoço, então havia a cabeça com os cabelos enormes e que não ficavam como eu queria que ficassem. Eu nem mesmo sabia como queria que ficassem. O rosto com olhos enormes que sabiam ver mas não sabiam entender nada do que viam e a boca que sempre se arrependia do que dizia e que nunca conseguia ficar fechada. Tinha também a testa, quase tão grande como as pernas e que se enchia de espinhas o tempo todo e de suor todo o dia. E havia os joelhos. Eram dois e estavam sempre machucados, um sangrava, outro tinha ferida com casca que era bom de tirar, aí o que estava com casca ralava de novo e sangrava e o que estava sangrando criava casca que era bom de tirar. Mas tirar casca de ferida fazia sangrar e se a mãe visse fazia levar bronca. Às vezes os dois joelhos estavam iguais, ou sangrando ou com casca. Você vai ter pernas feias, os joelhos cheios de cicatriz, não vai arrumar namorado desse jeito. Era a mãe falando. Então eu pensava no namorado que não teria por causa dos joelhos feios e cheios de cicatrizes. Ele era moreno e bonito e gostava de outra menina que além de pernas tinha também um corpo, uma cara bonita e enormes cabelos que ficavam do jeito que ela queria que ficassem. Ela sabia como queria que eles ficassem. Tinha a professora que era preta, era gorda e era linda de tão simpática mas que passava o tempo todo escrevendo na lousa e escrevia tão depressa que não dava tempo de copiar, principalmente de copiar enquanto olhava para o menino que era o namorado que não ia me querer nunca porque eu era só pernas e cabeça. Mas um dia eu tive um vestido de papel e fui uma boneca frágil e linda porque era vermelha e amarela e nenhum vestido foi mais bonito do que o meu, e era meu aniversário e a professora que era preta, gorda e linda deixou que eu servisse os docinhos porque era meu aniversário e eu fiquei feliz mas acabou porque teve o dia que eu entrei na sala da menina que sabia como queria que o cabelo dela ficasse para ser bonito e o meu namorado que não me queria tinha deixado um recado de amor para ela e eu chorei. E na hora de brincar de roda eu e minhas pernas sempre escolhíamos o meu namorado que não me queria para brincar e ele escolhia a menina de cabelos bonitos e eu ficava triste mas eu tinha uma amiga que me dava bisqui e copiava a lição pra mim porque ela sabia escrever muito rápido e era muito, muito boa mesmo e ela morava perto da escola e a casa dela só tinha uma mesa e pacotes de bisqui porque eu fui lá algumas vezes e não me lembro de nada além de uma mesa e pacotes de bisqui. Um dia eu fui comprar paçoquinha e uma crianças acharam que eu não era só pernas e cabeça e viram que eu usava calcinhas e fizeram que eu brincasse de mamãe e disseram que a mamãe tira a calcinha na hora que vai dormir, eu que tinha olhos enormes que viam e não entendiam nada, não entendi o que era a brincadeira e nem sabia porque uma mãe iria tirar a calcinha para dormir mas não entendia e eles sabiam brincar de um brinquedo novo que era fingir que dormia só que antes tinha que tirar a calcinha e então eu que não entendia nada tirei a calcinha e eles esconderam a calcinha e não queriam me devolver e eu comecei a chorar mas eu não tinha vergonha porque era muito burra de sexo e nem sabia que eles não eram burros de sexo que nem eu e eles me deixaram chorando um monte de tampo entes de devolver minha calcinha porque tinham escondido debaixo de uma frigideira mas eu fui pra casa e fiquei parada perto da minha mãe e queria contar uma coisa para ela mas era uma coisa que eu não sabia o que era e nem tinha certeza se era uma coisa das que se conta para a mãe da gente e eu esperei com cara de quem fez alguma arte e a minha mãe parou de lavar a roupa um pouquinho e me perguntou porque eu estava olhando pra ela com aquela cara lambida e o que eu tinha feito de arte para estar com aquela cara de culpada, então eu pensei que não podia perguntar para ela porque as mães tiram a calcinha para dormir e se as mães tiram a calcinha para dormir e se era muito errado brincar de fingir que dorme como a mãe que tira a calcinha para dormir e deixar que as outras crianças escondam a calcinha da gente debaixo de uma frigideira e pensei que se eu perguntasse ela talvez fizesse como no dia que eu chamei ela de filha da puta e ela me bateu muito muito até eu ficar chorando e pensando muito para tentar descobrir o que era uma filha da puta que ela falava para mim mas eu não podia falar para ela. Agora eu sei que ela falava porque não queria me xingar mas eu falando estava xingando ela. Eu não entendia nada com os meus olhos enormes que só viam sem saber e as minhas pernas enormes que só tinham joelhos machucados que seriam muito feios e que o meu namorado nunca ia me querer. Mas acabou o tempo gostoso das férias e na volta da escola tudo ficou ruim porque os meninos gritavam cadê a minha calcinha e riam muito e o outro respondia está debaixo da frigideira e riam muito e só me viam andando na rua que riam muito e gritavam cadê a minha calcinha e outro respondia está debaixo da frigideira e eles riam muito e as meninas riam muito também e eu não sabia o que fazer porque não sabia que era tão bom humilhar as pessoas assim e eu fiquei com medo do meu pai me bater muito muito porque tudo que falava de menino e de mim junto meu pai ficava bravo porque ele achava que menino e menina não podiam nem brincar de nada muito menos de esconder a calcinha debaixo da frigideira e eu fiz de conta que não sabia nada, nada nem o pouquinho que eu sabia e perguntei para as meninas que não riam e que olhavam para mim com cara de muita pena e de muita tristeza por causa da pobre coitada que eu era e elas me contaram que os meninos falaram que fizeram besteira comigo e eu não sabia o que era fazer besteira mas achei que era a mesma coisa que brincar de fingir que dormia que nem a mãe que antes de dormir tirava a calcinha e eu disse que não fiz nada e elas não acreditaram muito mas eu disse que não fiz nada e fiquei a vida inteira dizendo que não fiz nada e disse que não fiz nada para todo mundo e quando minha mãe me perguntou eu disse que não fiz nada e quando meu pai me perguntou eu disse que não fiz nada e quando todo mundo me perguntou eu disse que não fiz nada e eu fiquei sendo a maior mentirosa do mundo porque eu aprendi a dizer tão bem uma mentira que ninguém podia deixar de acreditar em mim e meu pai e minha mãe acreditaram mas os meninos ficaram perguntando onde é que está minha calcinha o tempo todo porque não adiantava nada eu dizer que não fiz nada e eles diziam que eu ia ficar grávida e que eu ia tirar o neném e eu não sabia de onde é que eu ia tirar um neném mas eles riam muito de mim e eu nem queria ir para a escola mas meu pai não deixava eu não ir e um dia a professora brigou com todo mundo porque ficavam rindo de mim e eu gostei tanto tanto da professora que sempre sempre ia lembrar muito dela mas agora eu esqueci. E teve o dia que um monte de meninos estava perguntando cadê a minha calcinha e dando muita risada de mim no caminho da escola e eu já devia estar acostumada com isso mas eu não estava e o meu namorado que não gostava de mim estava junto e ele também ria de mim e eu senti tanta dor mas tanta dor que peguei uma pedra e joguei para acertar em qualquer menino que estava perguntando cadê a minha calcinha e dando risada de mim e fazendo meu namorado que não gostava de mim rir também e eu joguei a pedra e ela acertou nas costas de um menino que era loiro e inteligente e que disse depois que não estava rindo de mim mas que eu não sei não mas acho que ele estava rindo sim e ele foi para o hospital e levou ponto no machucado dele e a mãe dele foi na minha casa falar para a minha mãe que eu precisava apanhar porque eu tinha jogado uma pedra no filho dela e ele teve até que ir para o hospital e levar ponto porque o machucado foi muito grande e ela estava muito brava comigo e parece que ela queria ela mesma bater em mim e eu disse para ela que joguei a pedra porque eles estavam rindo de mim e perguntando cadê a minha calcinha e eles riam muito e eu fiquei com raiva e joguei a pedra e que podia acertar em qualquer um que estava rindo de mim e que acertou no filho dela ela então ficou com raiva mas foi com raiva do filho dela e deu uns tapas nele e xingou ele que bem feito de ele ter levado a pedrada e pediu desculpas para a minha mãe e foi embora e eu fiquei gostando muito dela porque o filho dela nunca mais riu de mim quando os outros perguntavam cadê a minha calcinha e riam.

Um dia eu apanhei de duas meninas na rua e doeu tanto que até hoje não sei se doeu mais o machucado de apanhar de duas meninas na rua ou a humilhação de apanhar de duas meninas na rua. Eu apanhei na rua porque quando entrei na escola só conseguia copiar meu nome e as palavras que estavam escritas nas latas de óleo e de leite em pó, mas eu não sabia ler de verdade só sabia fazer de conta que lia e desenhar coisas e pintar com lápis de cor de tudo que é cor, menos amarelo, porque amarelo de noite não aparecia nada e só ficava bonito no outro dia quando amanhecia e a gente via que tinha pintado muito bonito, então o amarelo era uma cor mágica mas eu tinha medo de usar e ele não aparecer no outro dia ou aparecer mas eu ter pintado errado e fora da linha. Eu sabia falar e fingir que estava lendo a poesia da sementinha que eu era uma sementinha que o vento levou de terra me cobriram o tempo passou caminhando com o vento a chuva chegou e veio o calor do sol cresceu e aumentou e eu esqueci o resto, mas a flor crescia e tinha muitas folhas e era linda e eu sabia tudinho de cor, mas não sabia ler de verdade. A menina que já estava na escola ficava na fileira dos mais adiantados e a lição dela era diferente da minha, eu fui fazendo a minha lição e gostava tanto que acabei rápido e copiei a dela também, mas copiei escondido para o professor não ver. Era um professor tão legal que se não tivesse um pai que eu amava muito demais eu ia querer que ele fosse o meu pai mas eu tinha um pai que eu amava muito, então eu gostava do professor como professor mesmo mas achei que ele não ia gostar de eu ficar copiando a lição da outra turma que não era a minha. Resolvia os problemas e respondia as perguntas, mas tudo bem escondido atrás dos meninos gêmeos que ficavam fazendo muita bagunça, o professor dava bronca neles e nem via que eu estava fazendo a lição da outra turma. Um dia o professor foi olhar o meu caderno e achou, tudo escondido, a lição. Fiquei com tanto medo que quase chorei, a lágrima corria e eu achei que ele ia me mandar para a diretoria e a diretora ia me bater mais ainda do que o meu pai batia, mas ele riu e me perguntou se eu sabia fazer também aquela lição que estava na lousa, eu disse que sabia e ele falou que então eu tinha que mudar de turma e ir para a turma mais adiantada. Não tinha lugar na turma, mas tinha essa menina que não conseguia fazer a lição da turma adiantada, então o professor falou para ela sentar no meu lugar na turma menos adiantada e eu sentar no lugar dela na turma mais adiantada, ela me olhou com tanta raiva que eu fiquei com medo e nem consegui ficar muito feliz porque ela era maior do que eu e falou que ia me bater, fiquei com medo e queria não trocar de lugar com ela mas o professor mandou. Na saída ela foi embora sem me bater e eu fiquei feliz, contei para o meu pai que tinha ido para a turma mais adiantada e o meu pai me deu um dinheiro para comprar doce, fui no outro dia comprar doce e a menina chegou junto com a prima dela que era bem grandona e as duas bateram em mim. Não adiantou nada porque o professor não mudou a gente de lugar e no fim do ano eu passei de ano e ela repetiu, mas doeu. E um dia o professor descobriu que eu já sabia ler, ele viu e perguntou como eu fazia, então me dei conta de que lia um pedaço do que estava escrito na lousa, escrevia aquele pedaço no caderno, levantava os olhos para ler mais um pedaço e baixava para o caderno e escrevia lá o que havia lido. Esse processo passou desapercebido por mim, não pelo professor, e ele me disse agora você já sabe ler, cheguei em casa e contei a meu pai que eu já sabia ler. Meu pai me parabenizou e saiu de casa, voltou com um gibi do Tio Patinhas para mim. Não sei de já ter recebido um presente que me desse tanta alegria, sem contar, é claro, meu filho, que nasceu muitos anos depois. Li o gibi tanto e tanto e o amei como a um amigo. Ganhei outros, mas aquele foi o primeiro. Depois descobri o Mandraque e meu pai me dava muitos gibis do Mandraque, e meu pai lia bolsilivros de histórias de bang-bang e eu lia depois dele, e também lia as fotonovelas que algumas amigas compravam. Apaixonei-me por um rosto das fotonovelas e por um desenho no gibi do Mandraque. O rosto das fotonovelas era um galã italiano e eu recortava suas fotos e fazia álbuns que colecionava, sonhando que ele seria meu namorado quando eu fosse maior. O desenho do gibi, este era proibido, eu nem contava para ninguém que estava apaixonada por ele porque ele era um rei, casado com uma linda rainha, tinha uma filhinha e vivia salvando as duas de incríveis perigos. Eu sabia que era proibido ser apaixonada por um homem casado, mesmo sendo ele um desenho em um gibi, um rei de outro planeta que vivia aventuras com seres intergalácticos em historinhas paralelas nos gibis do Mandraque. Então chegou a grande descoberta. Na escola havia uma sala fechada e eu fui curiosa, queria saber o que tinha lá dentro, perguntei à Dona Conceição, a inspetora, e ela me disse que aquela sala era a biblioteca. Pedi dias seguidos, prometi e jurei por pai, mãe e todos os santos e anjos do céu que não pegaria um único livrinho, que não estragaria nada e que deixaria tudo arrumadinho no lugar certo, prometi tudo, prometi não contar a ninguém, prometi sei lá mais o que e consegui, nem sei quantos dias depois, vencer pelo cansaço e ter a permissão de entrar naquele santuário sagrado. Minha aula começava a uma da tarde. Eu acordava junto com meu pai às cinco e meia da manhã, ia até a escola e chegava antes da maioria dos alunos que estudavam de manhã. Dona Conceição me dava a chave e eu me trancava na biblioteca, lia até meio dia e meia, saía, devolvia a chave e ia para a fila da merenda. Comia, entrava na fila da minha turma e ia para a sala de aula. Li primeiro Reinações de Narizinho, depois outros de Monteiro Lobato, não todos porque não tinha todos, li muitos livros, todos os livros que pude até chegar o dia em que cresci e pude pegar ônibus sozinha e ir até a cidade. Então levei todos os documentos e fiz uma carteirinha que me dava direito a pegar dois livros, levar para casa e ficar com eles duas semanas, geralmente ia toda semana porque não precisava de mais que isso para ler dois livros. Li Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos, José de Alencar, e todo livro cujo título me atraía. Se pegava um pelo título e gostava, da outra vez pegava outro do mesmo autor, e assim fui lendo e gostando cada vez mais porque, hoje sei disso mais do que sei de qualquer coisa na vida, esse gosto, esse vício, uma vez adquirido é coisa que não se larga mais.
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