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Cronicas-->DIA DOS AVÓS -- 27/07/2006 - 14:58 (JOÃO BOSCO LOMONACO MENDES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Também nós, os avós, temos nosso dia.

Parece Papai Noel... Lembra o Bom Velhinho. Que, certamente, não era avó. Afinal, era Bispo: S. Nicolau. Mas meu avó também se chamava Nicola. Na sua Calábria. Em Aieto. E Nicolau. Aqui no Brasil. Para meu pai, o Clau Clau. Apelido carinhoso que lhe deu.

Eu o venero hoje. Com carinho. Lembro. Sentado à bancada de sapateiro. Martelo de cabeça larga na mão. Sempre a bater. Toc...toc...toc... Sobre o delicado tecido da camurça. Ou no solado macio do sapato. Ainda virgem. Sem o brilho sedoso do acabamento. Através de instrumentos curiosos que ele chagava à chama da lamparina de querosene. E passava sobre aquele couro fosco. Para torná-lo lustroso e brilhante. Lindo acabamento. Pé de sapato por pé de sapato. Artesanalmente. Delicadamente. Sem pressa. Mas com carinho. Cigarro meio acabado pendurado na boca. Apagado. Há muito tempo. Mas lá. Como a determinar o traço de cada gesto. De sapateiro ciente do que faz.

A bênção, vó!

Bençóe! Dizia ele, desviando o olhar cinzento, sobre aqueles óculos de meia leitura, pendente à ponta do nariz.

E a gente se sentia feliz, no meio misterioso daquela bancada diferente. Tachinhas. De todos os tamanhos. Pedaços de vidro. Para raspar a sola. Cola feita de gasolina com borracha. Que nenhum adolescente se interessava por cheirar. Que ele deixava em infusão naquelas latonas de 20 litros. Fechadas. No corredor entre a cozinha e o galpão de sua oficina. Durante muitos dias. Mexendo de vez em quando. Com um ripa de madeira comprida. Meio colher de pau. Até aquilo virar cola. Depois, distribuída em latas individuais. Na bancada de cada operário. Uns dez a quinze. Que sempre cumprimentavam a gente - os netos - com brincadeiras e risos.

Ilhoses. Carretéis de linha. De todas as cores e números. Às vezes, a gente até ganhava um carretel ou outro. Para empinar papagaio no quintal. A gente chamava de raia, no Ceará. Linha 20. Papagaio normal. Zero para os grandões.

Agulhas grossas. E chatas. Em arco. De todos os tipos. Para pregar o solado dos sapatos masculinos. Era muito curioso. E aquelas làminas super afiadas. Como navalhas. Feitas de tiras de ferro cortadas na diagonal. Cortavam até pensamento. Cabo feito de pano amarrado com cordão. Sovelas brilhantes.

Enfim, uma porção de instrumentos curiosos que sempre tinham sua utilidade. E transformavam aqueles rolos enormes de couro de boi, carneiro, e outros bichos, placas de sola de mais de metro, no mais bem acabado protetor para nossos pés. Os sapatos.

Sem contar aquelas máquinas esquisitas de costurar. Com um braço comprido. Sem mesa de apoio. Onde o rosto dos sapatos passeavam. Para receber a costura dos enfeites e trançados. Era muita coisa curiosa para meus olhinhos de criança curiosa e irrequieta.

E eu gostava de ficar ali. Vendo. Observando.

Morreu com mais noventa anos. Sempre fumando seu cigarro apagado.

E tomando seu vinho tinto rascante. Com pão e berinjela. Al suco. Ou com massa ao molho à bolonhesa. Delicioso.

Tinha bom gosto o velho italiano. Que se "arretava" quando a gente o chamava, carinhosamente, de "gringo"...

Na Segunda Guerra Mundial o ser italiano lhe trouxe muito dissabor. No Brasil. Que teve seus navios bombardeados na costa, por submarinos alemães.

No quarteirão, em diagonal ao de nossa residência, moravam outros italianos. Comerciantes de tecido. Um dia, houve uma revolta contra os italianos e alemães. E a turba invadiu as casas dos "gringos". Quebraram tudo. Foi o "quebra-quebra".Traziam de tudo das casas arrombadas para a rua. E quebravam louças. Cadeiras. Armários. Faziam serpentinas de peças inteiras de tecidos. Seda oriental. Cambraia. Algodão. Casimira inglesa. O que achavam.

A casa do meu avó foi respeitada. Meu tio era do Exército Brasileiro. Seu filho mais velho. E ele se pós de sentinela na porta da casa. Uma porta e dois janelões. 24 horas por dia. Com amigos fardados. E ninguém atacou a residência de meu avó.

Afinal, meu avó era italiano de origem. Mas, sempre foi brasileiro de coração e de atitudes.

Meu tio incorporou no 3º Escalão da FEB. Aquele que ficou em navio fundeado na Praça Mauá, no Rio, pronto pra zarpar para a Itália. Felizmente a missão foi abortada pelo término da guerra. Ele foi herói da guerra acabada...

Minha avó era piauiense. Exímia cozinheira. Fazia bolos e confeitos gostosíssimos. Muito amorosa e carinhosa com os netos.

Morreu cedo. Gangrena. No abdóme. Eu tinha apenas 11 anos.

A filha mais velha de Nicolau, e minha mãe, tem 94 anos, fará 95 no próximo outubro. Pequenina - um metro e meio. Mas lúcida e decidida. De leitura diária de jornais e revistas. Não lhe escapam os "best sellers" das editoras que lhe enviam catálogos atualizados. Sempre.

Ela manda buscar os livros. Lê-os todos. "De cabo a rabo", como dizia meu pai. E comenta-os com a gente. História. Estilo. Costumes. Tudo, enfim. E compara obras anteriores dos mesmos autores. E a evolução, ou não, do estilo. Busca todos os noticiários de TV. Nos horários não coincidentes de todas as emissoras. E comenta política. Decepciona-se com os maus acontecimentos. Com as más gestões públicas. Ri, a bom rir, de acontecimentos jocosos de que toma conhecimento. Passeia. Sozinha, pelas entrequadras de Brasília. Visita lojas. Faz compras. E nos dá uma canseira danada nos supermercados e livrarias. Onde bisbilhota cada góndola e prateleira de estante. Para conhecer os novos produtos e os novos lançamentos de livros. Um por um.

Sem cansar. Curiosa. Manuseando cada produto e obra. Com atenção de especialista.

É bisavó de minha netinha de nove lindos meses de vitalidade e sorriso abertamente desdentado. Filha de sua neta e minha filha mais velha.

Bisavó, ainda, de outra - esta gringa: americana - que nascerá em setembro. Primogênita de minha filha do meio. E sua neta também. É claro.

Hoje é dia de todo este pessoal que fez. Que gerou. Que formou. Que, agora, colhe frutos memoráveis de seu amor generoso.

Ou que é lembrado por tudo o que fez antes de partir, gloriosamente, para o Pai. Avós que só o foram depois de se ir deste mundo. Que não tiveram a dita de conhecer netos e netas. Mas que deixaram seu gene, sua feição nesses descendentes. Vide minha netinha que herdou o modelo de mãozinha da avó. Que não a conheceu. Com aquela perfeição de dedos longos e delicados. Terminados com unhas graúdas e bem acabadas. Que saudades!

Dia dos Avós! Que talvez não sejam considerados como heróis. Mas, apenas, tidos como velhos. Ultrapassados. Esquisitos. Eternos defensores do seu tempo. Ranzinzas. Vivendo sempre do ontem. Longínquo e inatingível. Que acham belo. Terno. Cúmplice. E descomplicado. Quando havia ternura. Amor descompromissado. Palavra. Palavra de honra. Fio de bigode. Sinceridade. Sem roubos. Só de galinhas. Nem assaltos. Drogas. Sequestros. Armas automáticas. Computadores. NET. Falta de ética.

Havia quadrilhas. Sim. Mas os assaltos eram sensacionais: assalto ao trem pagador. Que viravam tema de cinema. E romance. No mundo mais civilizado. E sofisticado. Longe da simplicidade caipira do nosso viver.

Sim. Dia dos Avós. Meu dia!

Recebi um vaso de flores de minha netinha. Beije-a com carinho, à noite, quando me visitou. Com aquele olhar grande e curioso. Aquela risada descontraída e generosa! Transbordando amor gostoso e interesseiro. Do vó que serve o pratinho de comida. E leva ao banho. Morninho. Antes da dormida tranquila e angelical.

É bom demais ser avó!

Abracemo-nos, avós do mundo inteiro! E num congraçamento idoso, mas sincero, desejemos a nossos filhos e netos futuro mais digno e promissor! Melhor que o presente, tão pequeno e desconfortante, em que vivemos!

E com, Lya Luft, rejeitemos ser tratados como decrépitos ou criancinhas da terceira idade. Com bolinhos de vela e balões de borracha colorida. Temos direito a dignidade de quem plantou e tem idéias. De quem tem passado. De quem ainda está presente. E que vive este presente com grandeza de alma. Com realizações. E sem medos.

Brasília (DF) 26/07/06

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