Usina de Letras
Usina de Letras
141 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62181 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10351)

Erótico (13567)

Frases (50584)

Humor (20028)

Infantil (5425)

Infanto Juvenil (4757)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140792)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6184)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->NO JARDIM BOTÂNICO -- 29/07/2006 - 11:13 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Quinta crónica da série*)



5

NO JARDIM BOTÂNICO


Veio num carro novo mas descuidado, bastante sujo, de uma cor opaca e escura. Depois de um dia e meio recolhido ao silêncio do apartamento, sua chegada foi bem-vinda. Veio na hora exata, às nove da manhã. Deteve¬-se para olhar, com muita parcimónia, uma buganvília no terraço contíguo da vizinha, plantada em uma lata. Roxa, fulgurante, marcando a presença de uma manhã luminosa. Trouxe uns limões que havíamos comprado em parceria no mercado.

- Eu já recebi os meus ... - atestei, mostrando oito deles dentro da geladeira.

- Entonces yo cogí más limones que 10 que nos correspondía.>/I> Melhor assim, concluímos. Em vez de quinze, teria pegado uns vinte, indevidamente. Certamente por distração, jamais por esperteza.

Manejava o carro tão atabalhoadamente como anda pelas calçadas, adivinhando o caminho através de seus grossos óculos pesados. Senti¬-me transportado por caminhos ignotos, por uma avenida de trànsito rápido que ela emperrava com suas indecisões. Felizmente o trajeto era curto e logo estávamos caminhando. Tirou da mochila um gorro amarrotado, encardido e protegeu a cabeça e saiu na dianteira, abrindo caminho. Falava bastante, metade em espanhol e metade em inglês. Não misturava as línguas, senão que repetia as frases como para assegurar-se de que estava expressando claramente as suas idéias. O tom era de quem estava sempre se desculpando.

Numa das alamedas deparamos com uma gigantesca árvore. Não havia como ficar indiferente à sua presença. Terminalia oblonga, ou Guayaba Tree, originaria do Brasil, desconhecida para mim. Imponente. Ficamos especulando sobre sua procedência. Amazónica? Da mata atlàntica? É possível que aqui tenha crescido além de seu normal, tomando um porte excepcional. Ou - o que é mais provável - já deparara com ela em muitos parques sem ter percebido sua existência. Qual seria o seu nome vulgar em português?

Mais adiante estávamos frente a outra árvore enorme. Garanti que aquela sim era conhecida minha. Presumia ser nativa do nordeste do Brasil:
Artocarpus Altilis. Suas folhas coriáceas, casca lactescente, nada comuns e o fruto, caído no chão, partido, exalava seus humores álacres. Uma pasta meio viscosa, um tanto espessa. Nunca havia tido antes um fruto como aquele em minhas mãos, apesar de estar cultivando a planta em minha própria chácara. Mas lá, na aridez do cerrado do Planalto Central, fustigada por meses de seca e umidades muito baixas, sujeita a perder muitas de suas folhas todos os anos, vem crescendo timidamente. Cheguei a planta¬-la mais de uma vez, transportando mudas trazidas de hortos da Paraíba, onde eram vendidas como fruta-pão. Uma placa informava tratar-se de árvore originária das Ilhas do Pacífico.


Judith andava sempre com seus passinhos miúdos mas céleres, à minha frente. Exigia esforço acompanha-la. Uma calça fofa e muito enrugada, como que a propósito para expressar a sua modéstia. Diante dela sentia¬-me incómodo. Parecia ser um tanto mesquinha, mas seria talvez por discrição. Os anos de voluntariado nos Corpos da Paz devem ter forjado nela uma personalidade escorregadia, despistadora, dessas que querem fazer o bem sem serem notadas, reservando o mínimo para si. Incapaz de qualquer ostentação. Mesmo podendo, não gozaria determinados prazeres na vida dependentes de seu dinheiro. Excesso de pudores.

Acampamos debaixo de um galpão. Tirou da mochila cem gramas de uvas e um pacotinho de biscoitos canadenses à base de gengibre. Detestáveis. Quantidades estritamente individuais. Compartilhei do piquenique com certo constrangimento. Eu só comparecera ao lanche com as mandíbulas e ainda estava (mentalmente) criticando o cardápio. Um guarda florestal espreitava-nos à distància, ouvindo merengue em um rádio de pilha. Só faltava que ela fosse até ele com o pacote de biscoitos.

Falou de sua estada em Medellin, na década de 70. Da beleza daquela cidade que sobe pelas encostas como um presépio, iluminado até às alturas. Um vale úbere, com muito verde e muitas flores, onde a gente até esquece que existe violência e narcotráfico.

Gostava de sua casinha com um pátio espanhol. A arquitetura moderna estaria dando as costas a soluções tão práticas, tão naturais - por que não dizê-lo? -, tão ecológicas. Tetos muito altos, espaços cómodos e bem iluminados. E havia uma rede. Perguntou se usamos hamacas no Brasil. Ela diz sentir saudade de sua rede, e daquelas pessoas a quem ajudava dando aulas sobre serviços bibliotecários na esperança de que a educação favorecesse o desenvolvimento social.

E quanto á discriminação contra os ianques? Ela simplesmente ignorava. Estaria preparada psicologicamente para enfrentar as vicissi¬tudes do ofício de voluntária. Era questão de dedicar-se integralmente ao seu trabalho, todo o tempo, com o mínimo para si. Havia demasiado por fazer, achava-se incapaz de concluir toda a sua tarefa no espaço de tempo reduzido de sua missão.

- As pessoas pensavam que eu era alemã ou sueca. Nunca dizia de onde eu era. Nunca.

Nas horas livres, depois das aulas, ainda estava disponível para trabalhos comunitários.

Quando eu era jovem, no Rio de Janeiro, ou já maduro, na Venezuela, via duplas de jovens dos Corpos da Paz com suas inconfundíveis camisas brancas de manga curta e calças azuis. Eram muitos, espalhados rias regiões mais pobres da América Latina.

Avermelhados, suados, com caras de caipiras do faroeste. A imprensa esquerdista acusava-os de serem espiões da CIA, de trabalharem contra o comunismo, de serem reacionários e atentarem contra os valores locais. Pedia-se a sua expulsão. Não se sabe a que causas reais estariam servindo como inocentes úteis, ou se respondiam a programas humanitários de seitas protestantes. A julgar pelo testemunho ingênuo de Judith, pelo menos no caso dela, o que predominava era mesmo a força de trabalho. Ainda hoje, com um contrato como o de qualquer outro profissional, ela parece continuar atrelada aos mesmos propósitos, quase que envergonhada de receber um salário pelo seu ofício.

O serviço de meteorologia adverte sobre os perigos de chuvas e inundações. Previne sobre os cuidados a tomar-se caso alguma catástrofe se avizinhe. Um furacão afastou-se da costa dos Estados Unidos mas pode dirigir-se para o sul com ventos superiores a duzentos quilómetros por hora.





-------------------------------------------------
Próxima crónica da série: (6) ARIGÓ
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance, paulatinamente.Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".



Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui