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cronicas-->EL HOMBRE NUEVO / CUBA -- 01/08/2006 - 20:18 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a décima crónica da série*)


10
EL HOMBRE NUEVO

A minúscula cadela de um vizinho espera sempre por mim, na escadaria do edifício, na certeza de que vai receber afago. Está condicionada ao meu tratamento carinhoso e tem um olho cego, branco, triste. É um animal solitário, desgarrado.

Na alameda arborizada que leva à Universidade, circulam automóveis e professores saúdam-se com certo formalismo e simpatia. A maioria, com suas famílias, cultivam plantas nas varandas.

Dona Consuelo, que não é "la soltera", como gostaria Garcia Lorca, já está em idade de aposentar-se e trabalha na Biblioteca Central. Seguimos o mesmo trajeto, todas as manhãs. Logo deu para perceber que era cubana. Trinta e sete anos afastada de sua terra, com a família dispersa por vários países. Bastava ouvir o nome satànico de Fidel Castro para começar a blasfemar. Como todo cubano, sonha terminar os seus dias em Cuba mas sabe que Cuba, mesmo que venha a ser reaberta aos seus filhos refugiados, não será jamais a mesma. Está animada com a perspectiva de liberação do regime, com algum tipo de solução com o passado, mas reconhece que já é tarde demais para ela. Numa estação de rádio local, os cubanos expatriados discutem seus problemas. Uma das pessoas entrevistas pelo telefone, uma professora universitária, não acredita no diálogo com Fidel. Para ela, ditador é ditador, e só sai morto! A menos que seja um Pinochet, mas este pregava o neo¬liberalismo que ele mesmo protege, sem afastar-se do poder. Fidel é Fidel. É um utopista, um homem vaidoso, endeusado, que virou mito até para si mesmo. Enquanto houver um cubano fascinado por seu carisma - e sempre haverá - ele não se deixará vencer pela realidade, a menos que perca totalmente o controle da situação. Doña Consuelo sabe que grande parte da população, seja por desinformação ou por convicção, acompanha a causa socialista de Cuba. Até quando, ela não sabe. Sem parceiros, a Cuba só resta o pragmatismo nas relações internacionais e o apoio dos intelectuais. A única abertura é a dos aeroportos para os turistas. E o turismo é a indústria da corrupção dos costumes, insumo à contra-revolução. Com bloqueio económico, pressões internacionais, restaria a esperança de um golpe de estado.

- Que vá, mijito. Cada vez que Fidel descubre un rival, lo manda a matar por haberse corrompido con el narcotrafico. Prefiere la fidelidad de su hermano, de su familia ... - vocifera Dona Consuelo, desanimada.
-
Queixou-se de que não tem mais nada esperando por ela em La Habana. Quase todos os seus parentes já se foram, ou morreram, e perdeu contato com os sobrinhos e primos. Não têm rostos. As suas propriedades - não eram muitas - já estão perdidas para sempre, os registros cartoriais queimados. Saíram todos com as mãos vazias, com os bolsos vazios, só com as lembranças de uma Cuba idilizada, que talvez nunca existiu, produto do desgarramento, fruto do exílio prolongado e de uma saudade irreconciliável.

Os cubanos são os judeus do Caribe, em diáspora interminável.

o * *
o
Fui dos que saudaram a Revolução Cubana pelos seus ideais igualitários, mas sempre arrepiou-me o envio de opositores para a Ilha de Pinos. A forja de um Hombre Nuevo dividiu meu entusiasmo juvenil por seu idealismo rousseauniano, mas enfraqueceu o meu ànimo pela semelhança com o ideário fascista.

Homem de laboratório, na presunção de que é melhor do que os demais, sempre pareceu-me coisa de Frankenstein, de pregação religiosa, de fanáticos. E chegaram a usar uma falsa psicanálise para reorientar os dissidentes, como se fossem doentes, ou a transformá-los em loucos.

"El Hombre Nuevo" é também o nome do conto de um escritor cubano da nova geração, com forte influência lezamaniana: Senel Paz. Um grupo teatral porto-riquenho - Arete - fez a adaptação dramática e fui assisti-la no festival que se celebra na Universidade. Um diálogo divertido e amargo entre um revolucionário e uma bicha assumida. Conheceram-se onde todos os habaneros se encontram: na mega-sorveteria Coppelia, no decadente bairro de Vedado. O revolucionário toma uma taça de sorvete de chocolate e a bicha amaneirada prefere a de morangos. Já conhece de vista ao belo jovem forjado pela Juventude Comunista e tenta seduzi-lo com a oferta de livros clandestinos de escritores em desgraça com o regime: os de Vargas-Llosa e o "Três Tristes Tigres" de Cabrera Infante. O marxista acredita estar na pista de um contra-¬revolucionário e aceita o convite para o diálogo, desde que platónico. A bicha adverte-o para o risco da visita: seu poder de sedução e a vigilància ostensiva dos vizinhos ... Ser bicha, pobre e, se fosse pouco, negro é uma fatalidade em Cuba ou em qualquer lugar, sobretudo porque o negro em Cuba está sempre associado ao mito da virilidade.

Transportei-me à Cuba do início dos anos 90, à mesma Coppelia, onde um jovem atlético como o da peça tentava trocar pesos por dólares comigo, para satisfazer sua vaidade e fantasia de poder vir a comprar jeans e tênis modernos ... Oferecia-me cinco vezes mais pesos no càmbio negro do que o oferecido pelo banco de Fidel. E levou-me a ver os jovens hippies, em frente ao Hotel Habana Libre, que "debaixo dos caracóis de seus cabelos" ansiavam pela fuga em massa, assumindo valores da contra-cultura.

Diego, o personagem de "El Hombre Nuevo" considerava os homossexuais uns enrustidos e as "locas" uns alienados. "Ela" se considera uma bicha assumida, dedicada ao cultivo dos valores perdidos pela Revolução, resgatando as pérolas da cultura de Cuba, guardando fragmentos de obras expurgadas, canções proibidas, idéias execradas. Considera-se um patriota à sua maneira, com direito à vida e à felicidade, mas reclama dos preconceitos e da falta de oportunidades para dar vazão à sua criatividade. Já esteve preso e sobrevive na clandestinidade. Ser uma bicha escrachada, cínica, acaba sendo uma couraça para resistir às perseguições, uma forma de protestar e de ridiculizar o machismo, até mesmo um refúgio, ao ser considerado "caso perdido" mas inofensivo. O regime começa a dar mostras de desistência na tentativa de reformar tais pervertidos.

Cenas hilariantes se seguem, com dublagens de Maria Callas, de uma rumbeira tradicional e outros virtuosismos de transformista. Mas o que se discute em cena é coisa muito séria. Uma espécie de "Greta Garbo quem diria acabou no Irajá", mas sem o escracho da peça brasileira dos anos 70. Entre avanços e recuos, chega-se ao final, quando Diego vai deixar a ilha, já sem qualquer possibilidade de sobrevivência e dignidade, numa daquelas ocasionais trocas que Fidel fazia com os Estados Unidos, deportando pederastas, velhos doentes, ladrões e um ou outro preso político importante. Era a limpeza periódica dos porões do regime, livrando-se de gusanos e outras excrescências.

A despedida é digna de um folhetim, de um episódio chapliniano, terrível em sua humanidade descarnada. Diego, antes do inventário que vai despojá-lo dos seus (mínimos) pertences, encomenda ao seu amigo David a guarda de seus livros, seus discos, seus manuscritos e de uma xícara (porcelana de Sévres que ele confessadamente roubara tempos atrás). Quase nada, mas eram símbolos de sua rebeldia, de sua resistência pequeno-burguesa.

O belo guerrilheiro despede-se do amigo com um abraço pungente, sofrido, sem maiores esperanças ou convicção. Havia sido seduzido, senão pelo corpo, pela mais vulnerável das faculdades humanas que é a consciência. O quadro termina com o revolucionário na Sorveteria Coppelia consumindo, com certa tristeza, uma taça de sorvete de morango. O público reconhece o talento do texto e a excelência da atuação com uma verdadeira ovação.

Saio do teatro com uma angústia existencial que nem Sartre seria capaz de equacionar.

* * *

Como muitos, deixei Cuba com a certeza de que, apesar de todos os seus erros, foi o mais extraordinário laboratório social implantado em nosso continente. O resgate da dignidade do povo e o culto à solidariedade foram marcas indeléveis da experiência. A extinção de terríveis desigualdades sociais, a supressão do analfabetismo, a socialização da saúde pública ...

Ou será que a revolução durou além do que podia? Como manter o ímpeto revolucionário sem transformar-se em tirania?

Até que ponto as esquerdas fecharam os olhos para o empobrecimento da ideologia, dando espaço ao poder unipessoal e ao burocratismo? Ou será que fomos insensíveis ou cegos e não apoiamos aqueles que, desde o início da Revolução, lutaram por desdobramentos mais profundos e por isso foram desterrados? Aí estão os exemplos de Maiakovsky e dos construtivistas russos - que trabalharam, à sua maneira, para a queda do regime anterior - e depois foram censurados pelos leninistas, acabando em desgraça, taxados de alienados e burgueses segundo a nova ordem do realismo socialista ... E, pior ainda, como foi que, por silêncio ou omissão, concordamos com os desterros e expurgos, cada vez mais conservadores e reacionários, sob o pretexto de não fazermos o jogo do inimigo imperialista? Como diria o próprio Marti: "en la política lo real es lo que no se ve".

Marchar agora para onde, na direção de um neo-liberalismo que cada vez mais despeja desempregados nas sarjetas em nome da produtividade?
Com o fim das ideologias, a que nova utopia entregar-se?


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*Esta crónica foi escrita no início da década de 90 do século passado e fazia referência a visitas a Cuba que eu fizera na década anterior e à peça de Senel Paez montada em Porto Rico. O texto original de Lezama Lima acabou voltando como pretexto para um roteiro de filme cubano - Fresas y Chocolate, do diretor Tomás Gutiérrez Alea,- do final do século, que surpreendentemente acabou sendo liberada para o público cubano num dos momentos de maior abertura do regime à crítica que, infelizmente, não tem sido a pauta das produções artísticas dos últimos anos.

Próxima crónica da série: (11) BLOWING IN THE WIND
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, NA SEÇÃO DE cronicas DE ANTONIO MIRANDA, aqui na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente.Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud:"A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".



Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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