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cronicas-->CUBA COR-DE-ROSA -- 06/08/2006 - 16:11 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 24ª. crónica da série*. São crónicas independentes não obstante formem um sequência...)



24

CUBA COR-DE-ROSA



"Cuando salí de Cuba
dejé enterrado mi corazón ... "


Uma revista de Miami garante que os cubanos no exílio já estão com uma garrafa de champanha na geladeira, na certeza de que em breve vão poder brindar à queda de Fidel Castro. Estão comemorando a pior safra da historia na Ilha, o terrível racionamento de gasolina, de luz elétrica, de comida e o fechamento de indústrias depois do fim da União Soviética e o endurecimento do bloqueio estado-unidense (causa de muitos males da economia cubana) que já dura mais de trinta anos. Só falta que um ciclone arrase tudo de uma vez; ou uma guerra civil, que tanto desejam!

Pablo Milanés, antevendo a crise, já canta "Aqui me quedaré". Uma canção emblemática, cheia de disfarces. Como diante de um sonho que se avizinha de um pesadelo:

"Yo me quedo con todas esas cosas
que hoy lucen más hermosas,
sin traicionar mi fe."


La Habana é uma estação retrocedida no tempo. Um certo ar demodé, suave, tranquilo, devagar. Pelo malecón circula a eterna sensualidade de sua gente morena. Lá no fundo estão os edifícios-relíquias do domínio colonial, aqui em Vedado, onde começa a calçada da avenida costeira, os prédios arruinados são vestígios de sua burguesia extraditada. Como de castigo, de joelhos frente ao mar, os edifícios mostram-se sujos e envelhecidos. Envergonhados.

Passeava o meu estranhamento, lançando olhares ao infinito azul do mar. A tarde resplandecia sobre a curva do horizonte. Raros automóveis circulavam naquele domingo de descobrimentos e perguntas sem respostas. Cuba é uma fantasia protegida da contaminação enlouquecida do consumismo e do desenvolvimentismo. Valores bizarros amalgamam sua solidariedade, sua teimosa resistência.

Mas foi um jovem universitário que desafiou as minhas simpatias. Seguiu-me pelo malecón como a desafiar as minhas convicções. Era alto e belo, com fartas e claras vestes juvenis, branco, apolíneo, passeando sua juventude como um trunfo e uma forma de agressão. Roupas finas em contraste com a modéstia franciscana dos paisanos. Queria polemizar. Para ele Pablo Milanés e Chico Buarque eram figuras oficiais do regime. Abominava. Podiam ser ótimos, mas não prestavam. Representavam sua desesperança, seu confinamento. Seu irmão havia morrido afogado no adernamento de um barco tosco e suicida, prófugo, buscando um porto em ultramar. Ele queria ir-se também e preferia a companhia dos turistas ao fanatismo de alguns companheiros de faculdade, resistentes e renitentes marxistas. Para ele, apenas uns machistas, intolerantes, enceguecidos pela idolatria.

Aos poucos fui-me deixando seduzir por sua verbosidade eloquente, por seu destempero. Sabia que aquelas roupas deixavam-no vulnerável, classificavam-no como um alienado, que ele assumia com alguma estoicidade. Praticava o mercado negro do dólar para patrocinar o seu ingresso na sociedade de consumo.

Mostrou-me o vazio das lojas. Sua mãe vivia num apartamento compartilhado com outra família e não tinham bom relacionamento com os camaradas para conseguir uma lata de tinta e pintar as paredes engorduradas. Estava proibido levar visitas ali. Uma convenção envergonhada estaria querendo encobrir as suas vicissitudes.

Não deixava espaço para outros argumentos. Parecia adivinhar minhas defesas e esgrimia suas convicções. Concordava que ser um estudante de medicina era um privilégio, reconhecia os progressos do setor de saúde em seu país, mas nada disso parecia causar-lhe orgulho. Queria viver a sua vida, à sua maneira. Sentia-se castrado, cerceado, confinado às convicções alheias.

Gostaria que eu fosse comer em sua casa, mas não haveria o que oferecer. Não havia tampouco lugar nos poucos restaurantes públicos, e ele não tinha acesso aos restaurantes mais sofisticados porque não usava guayabera de manga larga. Espantosa discriminação! E não entrava nos táxis, que estavam reservados aos turistas. Não podia ir aos restaurantes dos hotéis de luxo porque os cubanos atendentes iriam olhá-lo com censura e recriminação.

Acabamos com umas latas de cerveja deitados na grama do jardim, onde muitos casais, indiferentes, devoravam-se ruidosamente. Ele sonhava, olhando o firmamento. Buscava estrelas errantes onde só havia estrelas fixas. Queria saber as liberdades que os jovens de minha terra distante podiam desfrutar. Eu era um pombo correio prestes a voar de volta.

Ao despedir-se, pediu desculpas por fazer-me uma última pergunta. Estava um tanto constrangido. Levou-me a um lugar mais afastado. Buscava as palavras com cuidado, como confessando um pecado, contornando. Era apenas uma curiosidade. Queria saber se um jovem como ele, belo como ele, cheio de vida e de ànsias de viver poderia, no Brasil ou em Nova lorque, beijar na boca de um outro homem, sem sentir vergonha de si mesmo, sem ser recriminado e perseguido.

Ficou com um sabor amargo na boca ao saber que não era menor o preconceito lá do que aqui, com a única diferença de ser a perseguição menos ostensiva. Senti igual amargura em minha boca por não ter mentido, por não alimentar sua esperança.


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Próxima crónica da série: ( 25 ) MAIS QUE NADA

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de crónicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as crónicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.


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