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cronicas-->MAIS QUE NADA [NO BAR] -- 06/08/2006 - 22:29 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 25ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem um sequência...)



25
MAIS QUE NADA



"detiene el tiempo en tus manos, hace esta noche perpetua
para que nunca te olvides de mi",


Marcamos um encontro numa fuente de soda em Caracas, no bairro de Los Chaguaramos. Apenas um bar como qualquer outro, fechado com grades de ferro para evitar o trànsito de moleques de rua ou de pedintes inoportunos. Bebia-se rum ou uísque com coca-cola nas mesas vizinhas e um rádio escondido tocava "Mais que nada", de Jorge Ben, numa versão americanizada do Sérgio Mendes. Vinha mais luz dos postes próximos do que havia no interior; as vozes misturavam-se ao barulho dos automóveis.

Antes estive caminhando pelas ruas adjacentes, por detrás da Igreja de São Pedro. Diante do Edifício Eden olhei para o alto, ao terceiro andar e senti um estremecimento, um calafrio que quase me levou ao desmaio. Como diante da morte, o coração precipitou-se em um abismo insondável, parando o relógio do tempo. Lá estava eu. Olhando-me.

Era um estudante universitário, que havia deixado o Brasil e alugara um quarto de pensão. No "Edificio Eden, 3er. piso, apto. 15". Um tanto triste. Do horror passei à sensação do desconforto, da intranquilidade. Apressei o passo, trópego, como sem equilíbrio e fólego. De longe, antes de dobrar a esquina, olhei de soslaio. Gelou-me uma mirada derradeira, penetrante e irónica, rindo de mim, caricatura de mim mesmo.

Que inútil é a vida! Tão insignificante, tão frágil, tão cheia de covardias! Eu, que passei a vida inteira endeusando aquele jovem talentoso e cheio de planos e iniciativas que fui, percebi a sua espantosa limitação e ele riu-se de mim, da minha incapacidade de realizar os seus sonhos e os seus projetos de vida.

Renunciei àqueles projetos e, em seu lugar, deixei apenas desconfianças e esmorecimentos, na certeza de que uma única vida não seria suficiente para realizar o que aquele jovem sonhara, que acabara sendo um arremedo, tornando-me um conformado, disfarçado de rebelde. Mas ele desmascarou a minha mentira e sorriu com escárnio.

Cheguei à conclusão derrotista de que a vida é feita de oportunidades -perdidas ou não- e que somos forjados ao seu capricho e azar. Estou, logo sou.

Então percebi, no bar, que o retrocesso no tempo fora um armadilha da música rediviva do Sérgio Mendes e seu Brazil 66, com seu recorrente som bossanovista. Diante de mim postou-se meu amigo Ronald. Tinha os olhos amendoados como os de minha mãe e ainda conservava a figura de um jogador de futebol, o corpo aprumado sobre os ombros e quadris resistentes, mas a cabeça já revelava uma calvície emergente, corroendo¬-lhe a juventude, aquela imagem de um tempo em que fomos como irmãos xifópagos, gêmeos de vontades e aventuras, inseparáveis na hora do estudo e das idas às praias caribenhas, que ele imaginava serem as do Brasil e eu as descobria como terras novas, e tomava posse delas com toda a ànsia e o fervor dos meus vinte e tantos anos, e mergulhávamos e vínhamos à tona como se fosse em uma taça de champanha, e, diante um do outro, bebemos até ficarmos inteiramente ébrios para recordar toda aquela felicidade, e nos perdemos para sempre no emaranhado selvagem e impreciso das palavras, buscando nas memórias as verdades de nossa existência como pesca/dores desesperados e sem anzol, apenas movidos pela emoção de nosso reencontro. Lamentamos a distància intransponível daqueles momentos, na certeza de uma perda definitiva de nós mesmos. Chorei.

O certo é que não vejo Ronald desde que nos despedimos há mais de vinte anos marcando um encontro no futuro que nunca aconteceu e agora, tiritando como se estivesse bêbedo, recordo-o no bar em que estivemos hoje, minhas amigas Milagros, Gloria e eu. Não exatamente à hora em que estávamos bebendo e comendo, sem pressa, adernados depois dos exercícios de ginástica do Vicente, trocando idéias, tentando conhecer-nos melhor, falando um pouco de nós mesmos e de nossas experiências como é frequente entre as amizades novas, senão agora, na quietude e na solidão em que rumino estas lembranças, divagando por épocas distantes e passadas de minha vida, para constatar que convivo com os meus fantasmas e que dialogo seguidamente com eles.


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Próxima crónica da série: ( 26 ) NAVIO DE PAPEL

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.


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