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cronicas-->NAVIO DE PAPEL -- 07/08/2006 - 19:16 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 26ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem um sequência...)



26
NAVIO DE PAPEL



Um navio imenso da Cunard se despede com um apito que estremece e aperta o coração. Passa pela baía de San Juan [de Puerto Rico, onde me encontro] como um descomunal paquiderme, de cores vivazes, ao largo das muralhas e do farol de EI Morro. Afastando-se lentamente. Vai reduzindo-se até desaparecer no horizonte como um brinquedo perdido. Que pungente e comovente é o apito de um navio!

As luzes declinantes da tarde ofuscam e intimidam.

Nunca esquecerei a primeira viagem de navio. Era uma criança de sete anos e o ita em que viemos de São Luís para o Rio de Janeiro pareceu-me uma enormidade! Ao lado destes fabulosos hotéis flutuantes do Caribe seria apenas um monte de ferro velho deslocando-se preguiçosamente pela costa este do Brasil... Mas eu era pequeno e o deslumbramento foi tão extraordinário como deve ter sido a descoberta do gelo para Aureliano Buendia. Em alto mar cheguei ao êxtase e escrevi meus primeiros versos.

A memória é cruel ao apagar os detalhes. Não enjoei, como outras crianças a bordo. Acordava cedo e dormia tarde. A lua sobre o mar causou¬-me um fascínio à parte. E que dizer do sol afogando-se no mar, em brasa? E os golfinhos saltitantes?

Meu amigo Antonio Giacomelli passou toda sua vida a ver navios em sua imensa coleção de cartões-postais. São quase vinte mil e conhece a história de cada um desses gigantes marinhos, sob que bandeiras navegaram, que reformas sofreram, quais foram afundados em períodos de guerra ou em desastres memoráveis. O mar é um cemitério de navios! E é no Caribe o paraíso dos cruzeiros milionários, das rotas romànticas aos portos dos corsários ingleses e batavos, às praias legendárias, ao encontro de culturas mestiças e afrodisíacas (mais afro que dionisíacas).

As praias são um capítulo à parte! Praia Colorada, na Venezuela; Santa Marta, na Colómbia. São tantas! As que mais me impressionaram foram as de Aruba. Fascinou-me aquele caldo de culturas, uma arquitetura tão insólita e aquelas praias argênteas em que se destacam árvores dividivi crescendo na direção "dos ventos ... Que caprichosa e surpreendente é a natureza! É possível que eu volte por lá, em breve, mas não deve ser mais aquela quietude que conheci no fim da década de 60. Aquela simplicidade, " aquele desterro deve ter dado lugar a um resort sofisticado, com máquinas caça-níqueis e zona franca para a fantasia consumista. É assim.

Desenhava navios voadores e como tapetes aéreos singrava espaços dantes nunca jamais em tempo algum navegados. O escritor é um ser plural capaz de transferir às palavras o outro lado da vida, habitar terras estranhas e infinitas, às quais chega em seu navio solitário, porque é sempre solitário o ofício da escritura desde o começo do mundo. Escrever é tomar posse das coisas, penetrar até o fundo do abismo com o coração dilacerado e as mãos cúmplices de arrebatos e desencantos. Senão, seria banal.

Um navio é apenas um navio, mas ele fui e flutua no universo fátuo das palavras, e faz as circunvoluções impossíveis em torno das palavras. O navio deixa de ser um navio para ser o navio, naquele mar que não é apenas mar, que desaparece na linha do horizonte que é todos os horizontes na pluralidade das percepções. Ah, o navio! Sobre o mar do Caribe que é o azul de Pancetti, sob um sol que é redondo na acepção anárquica do Miró, que singra em linhas verticais, sobre cristais, num cinetismo que só existe nas esculturas de Cruz-Diez. Um navio-brinquedo, um navio cartaz, um navio-navio, de papel celofane e estrelas de purpurina sobre cartolina.

Giacomelli viaja em seus navios de cartão, ancorados em portos estáticos e em tempos todos presentes, em seus olhos juvenis. Porque, como disse Caetano Veloso, "na fronte do artista /o tempo não para / E no entanto ele nunca envelhece". Elysio Belchior é outra criança colecionando postais, tirando-os de caixas mágicas e montando paisagens infinitas que começam na baía de Guanabara, sobem o Himalaia e despencam nas profundezas do Salto Angel. Milton Nocetti guarda em casa um zoológico em que convivem animais extintos e imaginários, uma fauna universal petrificada desde o paleolítico até os dias atuais, que ele anima em sua imaginação criadora. E dos álbuns de Yolanda Roberto saem mulheres e marinheiros, famílias reais e edifícios já demolidos pela insània dos homens, mas ela os conserva em estado de graça, como pérolas caçadas no tempo primeiro e definitivo das coisas e das pessoas. Uma força estranha!

"Eu vi o menino correndo / Eu vi o tempo correndo ao redor / Do caminho daquele menino": Caetano de todos os mares e de todos os portos. Eu menino no convés de um navio pescando palavras no mar. Palavras paradas no tempo. "Reloj, no marques las horas, haz esta noche perpetua, para que nunca te olvides de mí" diante desse imenso navio em direção ao ontem e ao sempre, no milagre das palavras:

NAVIO
NAVI
NAV
NA
N
.




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Próxima crónica da série: (27) VIDA E LITERATURA


Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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