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cronicas-->A Feira do Rolo é abastecida -- 06/12/2000 - 11:58 (Viviane Rios) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A segunda vez aconteceu na madrugada do último dia de novembro do ano seguinte - o que cai no recém-criado "Dia do Evangélico" no Distrito Federal. Desta vez, ela havia estacionado o carro em fila dupla, freio de mão solto, em frente ao estacionamento regular do prédio residencial em que continua morando. Esse é o procedimento atual de quase todos os moradores, haja visto que o número de vagas na garagem subterrànea dos dois blocos vizinhos não dá nem para o começo. Assim, a rua que divide os dois virou praticamente mão-única, sendo a intenção da prática fazer com que os carros fiquem mais próximos às portarias.
Até o presente momento, o sistema vem funcionando, graças à boa-vontade de porteiros e moradores, que, às vezes mesmo apressados, ainda têm de empurrar os carros bloqueando a saída os seus. A única falha nessa cooperativa de vizinhança é que a relativa proximidade das portarias não impede o que os donos dos carros temem quando deixam seus veículos à noite. Ela, pelo menos, não dá sorte.
Comparando com as circunstàncias do episódio anterior, tudo parece suavizado desta vez. O aviso só foi dado às 8:00, já pelo porteiro do turno diurno. E o pai ainda lhe poupou o sono até as 11:30 - ela havia chegado tarde a casa. Quando foi avisada de que o carro havia sido roubado, a interpretação imediata foi que o carro havia sido levado. Talvez estivesse com medo de que o caso fosse novamente o furto do som. Mas foi justamente o último, o que o seguro não cobre, o caso.
Trocou de roupa, desceu para a garagem subterrànea, aonde o pai havia movido seu carro e deparou-se com os fios puxados e o porta-luvas limpo. Lá estava o equivalente a R$ 60,00 em Cds recém-comprados e muito queridos. Sobre o banco do passageiro, foi deixada uma edição de bolso da Bíblia, uma fita do Senhor do Bonfim e uma caneta sem carga. "O bandido ainda teve tempo de verificar se tinha carga!" - enfureceu-se. Mas a visão do vidro lateral intacto sobre o banco traseiro reconfortou-a. Pelo menos o dinheiro do vidro estava salvo... Ao contrário de todo o trabalho da vez anterior, tratava-se agora de trocar a borracha que fixa o vidro.
Continuando a inspeção, constatou que o ladrão havia levado seu jaleco, pobre jaleco de algodão branco, mangas curtas. "O que esse homem pretende fazer com um jaleco?!". É bem verdade que um par de luvas de borracha foi deixado e - surpresa! Desta vez o ladrão perdeu a oportunidade de levar também a frente removível! Ela estava em baixo do banco do motorista, escondida ainda por um saco plástico providencial. Tudo foi rigorosamente obra do acaso: o fato da frente ter caído da bolsa sem ter sido notada, o saco plástico vazio cobrindo-a e, principalmente, o ladrão não ter se dado ao trabalho de vasculhar o carro inteiro. "Azar o dele! Ainda bem que não conseguiu tudo o que podia!". Sentiu-se quase vingada. Nunca uma frente removível perdida teve significado tão especial...
Ainda assim, restava uma preocupação: os documentos e o manual do proprietário do veículo haviam sido levados. O pai recebeu uma ligação um pouco antes, informando-o de que os documentos haviam sido jogados na lata de lixo de um posto de gasolina quase em frente ao bloco. Mas ainda havia a dúvida se o manual seria devolvido. Quando ela e o pai chegaram ao posto indicado, encontraram a pasta plástica contendo tudo: o manual, os documentos do carro e até notas fiscais. Mais uma a menos.
Prosseguindo sua saga, ela e o pai foram à mesma delegacia visitada um ano e meio antes para registrar ocorrência policial. Foi o discurso do delegado que a fez perceber sua parcela de displicência no acontecimento. Escaldada por um furto, ela teria de se precaver contra uma segunda vez. Um alarme poderia ter espantado o criminoso. Poderia. Melhor que não fazer nada. Parecia não considerar realmente essa possibilidade. Ficou vulnerável e permitiu, de alguma forma, o ataque.
O delegado requisitou uma perícia no carro e, por esse motivo, dirigiram-se ela, o pai e o irmão ao Instituto de Criminalística no Parque da Cidade. O céu fechou e a chuva ameaçou cair a tarde toda, o que, muito provavelmente, inundaria seu veículo. Enquanto não eram atendidos, eles conseguiram conversar sobre amenidades e até fazer piada de situações corriqueiras, esquecendo-se por instantes do que estavam fazendo ali. Felizmente, foi possível encontrar digitais e terminar o processo antes que a chuva caísse, como de fato ocorreu pouco tempo depois.
Concluída a fase policial do acontecimento, a próxima providência a tomar era recolocar o vidro em seu lugar. Enquanto isso, o carro estava impossibilitado de transitar, mas o pai foi solidário e a deixou pegar seu carro, muito mais potente e vistoso, para sair na noite do feriado. No fim das contas, foi quase como se o furto de mais um aparelho de som proporcionasse alguns momentos felizes... Claro que apenas e tão somente por momentos em que ela dirigia o carro do pai, bem entendido.
Na sexta-feira seguinte, acordou bem cedo e levou o vidro para ser recolocado. Em minutos, o estrago estava reparado. Mas não a injustiça e a violência que fora novamente praticada. Desta segunda vez, ela não experimentou questionamentos do tipo: "Por que eu?". Sabe que foi ela, do mesmo modo que é com uma centena de pessoas em sua cidade diariamente. Na realidade, talvez bem menos idealista e otimista que um ano e meio antes, pensou simplesmente que não voltaria a comprar um som para seu carro (quem sabe um radinho?) e que providenciaria um alarme ou uma tranca, como lhe disse o delegado.
Desta vez, estranhamente não pensou em quem seria o ladrão, nem o que seria feito do dinheiro. Sentiu que nada disso valia a pena ser pensado: todos, inclusive o delegado de polícia, sabe onde vai parar seu som e nada há para ser feito. Como nada foi feito da vez anterior. Seria, talvez, correto dizer que ela chegou a se surpreender com a própria indiferença. Mais tarde, porém, compreendeu que a reação fazia parte da fase que ela vem passando. Que diferença real faz perder o som de seu carro em meio a tantas perdas muito mais preciosas? E mais que isso, que adianta incomodar-se com o cotidiano do país e do mundo em que se vive? Incomodar-se, denunciar não parece mudar muita coisa. Caso contrário, não teria sido roubada uma segunda vez, certo?


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