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cronicas-->VIDA E LITERATURA -- 09/08/2006 - 20:30 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 27ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem um sequência...)



27
VIDA E LITERATURA


"ya escuché decir que hacer o leer poesia es
perder el tiempo. Como hacer el amor.
Como beber con amigos.
En fin, vivir es una pérdida
de tiempo." Guillermo Piernes


O ócio parece ser um incentivo à literatura ... Não sei exatamente se leva à produção de relatos intimistas ou ao esforço descritivo, à tentativa de desvendar os mistérios do cotidiano e do universo imediato das pessoas. Literatura frente ao espelho ou derivativa da contemplação mesmada. Ou levaria a uma viagem regressiva no tempo, a la recherche du temp perdu? Não se trata de provar uma hipótese mas de ressaltar as evidências.

Em casa de Margareth Melcher, a suave e discreta editora, estavam alguns desses escritores descritivos de sua paisagem imediata, estrangeiros curiosos das circunstàncias e das imagens circundantes. Uma ilha deixa de ser uma ilha para ser a ilha de nossa experiência singular, objeto de um estudo reiterativo, participante; em algo particularizado e ressaltante. Elizabeth Langhorne escreveu a história de Vieques, a ilha em que passou memoráveis temporadas tropicais, onde mantém uma casa para retiros programados, segundo ela cada vez mais curtos mas sempre carregados de significados e fantasias.

Outro que escreveu sobre Vieques [uma ilha contígua a Porto Rico, no Caribe] é o botànico George R. Proctor, este com uma visão mais científica das plantas rasteiras da região.

- En que se diferencian los helechos de la isla de Puerto Rico de 105 helechos de Vieques? [helecho=vegetação rasteira]

A curiosidade ressaltava da obra Ferns of Puerto Rico and the Virgin Islands, por ele publicada há pouco tempo, que fez circular entre os convidados do chá das cinco de Margareth.

- No difference at all. Maybe in Culebra you can find something more peculiar, I m not sure.

[Em Porto Rico muitas pessoas são bilíngues e conversam assim...]
-
Seja como for, estava com um livro pronto para editar em que aproveitava parte das gravuras do livro anterior e revelava, se não espetaculares descobertas botànicas, pelo menos fotografias originais e algumas peculiaridades ecológicas de Vieques.

A enorme sala da casa tradicional de Margareth, em Old San Juan, reunia sobretudo amigos norte-americanos dedicados ao ofício de escrever. Eu era uma exceção, uma curiosidade sul-americana mas eles acabaram interessando-se pela realidade das Antilhas, do prazer e luz dos trópicos, pela simplicidade e primitivismo em risco de destruição. Imagens recolhidas logo em poemas, em biografias, em pesquisas históricas, em pinturas e fotografias.

Havia também queijos e saladas frias, o chá com leite à inglesa e a paisagem serena da baía vista do terraço, ao qual se chegava por uma escada íngreme de madeira que ia até ao teto do sobrado.

Há tempos não saía com Judith. Desde que enturmei-me com Milagros, Gloria e Sonia e saímos em uma frenética e intensa programação pela cidade e caminhos da ilha. Festivais de cinema, passeios ao litoral - a Dorado, a Mayaguez, a Boquerón -, aos bares e fast foods, às sessões de música popular, sobretudo de plenas e merengues, promovidos pelos independentistas. Os porto-riquenhos de nível universitário parecem sempre preocupados em reafirmar sua identidade latino-americana e são gentis, comunicativos, afetuosos.

A paisagem da ilha, que parecia estranha e ajena começa a ser familiar.

No trajeto do ónibus - Judith nunca vai de carro ao centro - já é possível reconhecer as paredes e muros de Rio Piedras, as pontes, as vidraças pós-modernistas dos novos edifícios bancários de Hato Rey, os grandes hotéis do Condado, à direita, e as construções mais antigas do centro histórico. Old San Juan é sempre uma festa para os olhos: suas ruas estreitas, as muitas lojas e relíquias históricas, o prosaico Paseo de la Princesa que se estende entre o mar e as muralhas e, lá em baixo, a vastidão da baía e do porto (com os eternos navios do Giacomelli) e, à noite, as luzes da outra banda, nas imediações de Cataño, para onde se deslocam ferrys preguiçosos.

Judith anda queixosa, expressa sem reservas seu abandono, simboliza sua desolação no trato ostensivo e obsessivo de seus cães de companhia. Mas está por chegar o filho, que vem para o recesso de Ação de Graças. Ele odeia Puerto Rico, nega e renega sua ascendência latina. Tinha problemas no colégio, não queria falar espanhol. Hoje vive em um colégio em Massachussetts, sob o patrocínio da avó. Judith sente-se melhor assim, entregue a si mesma, vivendo o seu mundo peculiar, um tanto solitária mas com o contraponto do trabalho, que é uma forma de apoio, de ponte com o mundo exterior.

Foi quando lhe falei da iminente vinda de minha amiga Leila Mercadante.

Espécie de irmã espiritual, cheia de vida e disposta sempre às viagens, aos bons livros, aos restaurantes e teatros. Expressei na descrição de minha amiga todo o meu carinho e minha saudade do Brasil.

-Eu também gosto de livros e adoro música - foi o que disse, como que reclamando um pouco de atenção.

De regresso ao apartamento sinto falta da cadela do olho furado. Desapareceu há mais de uma semana, talvez escorraçada pelos donos. Apago a luz para que os meus fantasmas habitem o espaço com desenvoltura e mergulho no mutismo de minha própria solidão.


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Próxima crónica da série: (28) AMÉRICA LATINA NO PORTA-RETRATOS

Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.
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