Usina de Letras
Usina de Letras
202 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62152 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13567)

Frases (50554)

Humor (20023)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140785)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6176)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Encontro com o Passado -- 04/03/2010 - 07:07 (Aléxis Rodrigues de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aléxis Rodrigues de Almeida

Luis se encontrava parado em frente à casa, completamente imóvel. Olhar fixo, aguçado pela curiosidade típica de sua idade. Não era a primeira vez que o velho casarão prendia-lhe a atenção assim. Passava por ali todos os dias a caminho da escola e sempre lançava ao menos um breve olhar em direção ao velho sobrado.

Em toda a cidade contavam-se muitas histórias a respeito do solar das mangueiras. As centenárias mangueiras desapareceram havia muitos anos, mas o nome permanecia em homenagem aos momentos de glória do vetusto casarão. A rua agora se encontrava completamente integrada à paisagem urbana e por ali passavam diariamente algumas crianças no cumprimento de suas obrigações escolares.

Desde pequeno, Luis ouvia as mais variadas histórias sobre as terríveis maldades praticadas no interior da casa. Alguns mencionavam a existência de bruxas que promoviam rituais macabros. Outros podiam jurar que a casa era habitada por fantasmas medonhos. Outros ainda, que não acreditavam em bruxas nem tampouco em coisas do outro mundo, diziam que a única moradora era uma velha rabugenta que não suportava a presença de pessoas, principalmente de crianças.

Naquele momento, porém, Luis sentia-se diferente. Nos últimos dias, tornara-se mais intenso o desejo de desvendar os mistérios ali encerrados, e agora a curiosidade finalmente estava a ponto de vencer o medo que até então o havia impedido de se lançar na tentadora aventura de adentrar a casa.

Como se o universo estivesse conspirando em favor do inevitável encontro, naquele dia a aula terminara mais cedo. Os amigos de Luis bem que haviam tentado convencê-lo a jogar uma partida de futebol no campinho do bairro, mas nenhum argumento surtiu efeito.

Todas essas histórias, assim como tudo que elas representavam, perderam força diante da resoluta determinação do garoto em descortinar o temido palco de horrores. Luis não queria deixar que outros falassem por ele; desejava formar sua própria opinião. Bem no fundo ele sentia algo o atraindo para dentro da casa.

Como em um passe de mágica, de repente a frase preferida de Mariana veio passear em sua lembrança: ``Luis, não tenha medo, tudo vai ficar bem". As palavras soaram tão claras que por um instante ele pensou ter sua amiga tutora ali ao seu lado.

Decidido, Luis se dirigiu à pequena escada que dava acesso à ampla varanda que circundava o sobrado. Ao se aproximar um pouco mais, ele pôde perceber com nitidez alguns dos sinais que demonstravam como o velho casarão de madeira estava entregue ao completo abandono. A começar pelas tábuas da escada, toda a madeira apresentava um aspecto de material em decomposição. As barras da mureta do alpendre relutavam em permanecer de pé, porém era evidente sua extrema fragilidade. Os resquícios de tinta nas paredes lembravam que um dia elas foram cobertas de branco.

Luis subiu os degraus, que protestaram com ligeiros estalos e rangidos. Agora ele olhava atentamente para a porta da sala, a qual pendia, presa apenas pela parte superior. Atravessou o alpendre e parou em frente à porta. Não seria necessário tocá-la, pois a abertura existente era suficiente para passar seu corpo franzino.

Esgueirou-se pela fresta e, já dentro da casa, olhou atentamente em volta. Procurava algum sinal de vida humana. As janelas fechadas mergulhavam a sala em uma tênue penumbra, aliviada pelas muitas frestas que rasgavam a madeira desgastada pelo tempo. A espessa camada de poeira que cobria os móveis indicava um longo tempo sem uso. Aproximou-se do aparador onde se encontravam algumas fotografias antigas. Tentou, em vão, identificar algum rosto conhecido.

Dirigiu-se para o lado oposto da sala, onde havia percebido mais alguns retratos pendurados na parede, já desbotados pela ação do tempo. Ao passar pela escada principal ouviu um barulho vindo do andar superior. O coração bateu mais forte. Sentiu vontade de sair correndo, e o teria feito não fosse pela determinação de por um fim em todo aquele mistério.

Reafirmou sua decisão de enfrentar o medo e resolveu, então, subir as escadas. A cada degrau o coração pulsava mais forte. As velhas tábuas gemiam, mesmo sob o reduzido peso do rapaz. Hesitou um pouco ao chegar ao patamar central. Um suor frio descia-lhe pelas têmporas. Perguntou-se mais uma vez se valia a pena continuar a empreitada. O que seria dele se todas aquela histórias sobre bruxas e fantasmas fossem verdade? Procurou mais uma vez esquecer esses temores e concentrar-se tão somente em seu propósito.

A escada terminava no meio de um longo corredor. Em ambos os lados do passadiço podiam ser vistas algumas portas, todas elas fechadas. Depois de um momento de indecisão resolveu ir para a esquerda. Havia dado apenas alguns passos quando ouviu uma porta abrir-se atrás de si, na ala oposta do corredor. Seu corpo estremeceu involuntariamente. Não fosse um garoto saudável, certamente o coração não teria resistido ao sobressalto. Instintivamente voltou correndo para a escada. Finalmente o medo conseguira subjugar sua determinação. Já principiara sua descida desenfreada quando ouviu alguém gritar:

- Pare! Por favor, não vá.

Luis voltou-se para a porta entreaberta de onde viera a voz que o fizera desistir da fuga. Ainda ofegante, dirigiu-se cuidadosamente até a entrada do aposento. Empurrou lentamente a porta. Uma ampla e mal cuidada sala se abriu à sua frente. No meio da sala, sentada em uma cadeira de balanço, estava uma senhora. Ofuscado pela luz que atravessava as frestas da janela na parede dos fundos, Luis não conseguia divisar com precisão o rosto da mulher.

- Venha aqui, garoto. Não tenha medo.

Ainda desconfiado, ele aproximou-se da estranha mulher. Agora podia ver melhor. Talvez tivesse uns sessenta anos de idade. Trazia nos lábios um ar de riso emoldurado por uma expressão enigmática.

- Qual o seu nome? – perguntou a mulher.

- Meu nome é Luis, e quem é você?

Ignorando a pergunta do menino, ela continuou a entrevistá-lo.

- O que você está fazendo aqui na minha casa, Luis? – perguntou a mulher, fazendo um esforço para se mostrar brava.

Luis moveu os lábios tentando articular algumas palavras, mas não conseguiu formular nenhuma justificativa consistente.

Percebendo a aflição do rapaz, a mulher o socorreu.

- Já sei, já sei. Você queria o mesmo que todos os outros: descobrir os terríveis mistérios do velho casarão. Queria saber se tinha algum monstro morando aqui, não é isso? Vocês, meninos, são todos iguais, são uns grandes xeretas.

Finalmente, já recuperado do susto, Luis conseguiu dizer alguma coisa.

- Me desculpe, senhora. Eu pensei que a casa estivesse abandonada. A porta estava meio aberta e ...

- E aí você achou que podia ir entrando assim, sem pedir licença. Está bem, está bem, eu entendo. Afinal você não é o primeiro que entra em minha casa sem permissão.

- Outros já estiveram aqui? - indagou Luis com os olhos arregalados, quase lhe saltando do rosto, enquanto lembrava de todas as histórias contadas sobre crianças que desapareceram após entrar na casa.

- Claro. Muitos outros já entraram aqui nos últimos anos, mas só você conseguiu ficar.

- Os outros... fugiram? - perguntou Luis, hesitante.

- Evidente, menino. Ou você acha que eu os devorei? - devolveu a mulher com um ar zombeteiro, já imaginando o que se passava pela cabeça do garoto.

- Certamente que não, senhora.

- Pare de me chamar de senhora. Meu nome é Saly.

- Saly, outro motivo também me levou a pensar que a casa estivesse abandonada.

- E eu posso saber que motivo foi esse?

Luis vacilou por alguns instantes.

- É... é que a sala está toda empoeirada. Não há nem mesmo pegadas no chão. Faz muito tempo que ninguém a limpa.

- Que grosseria, menino! Primeiro você invade minha casa e depois reclama da sujeira. Seus pais não lhe ensinaram boas maneiras?

Luis se calou. Seguiu-se um breve silêncio. Baixou a cabeça o suficiente para esconder os olhos marejados.

- Eu não tenho pais. Nem mesmo os conheci.

O humor da mulher mudou repentinamente. Seu rosto agora carregava uma expressão mais rude. A suavidade da voz deu lugar a uma certa aspereza. O brilho do rosto se dissolveu em meio a uma nítida amargura.

- Desculpe-me, Luis. Não foi minha intenção. Olhe, vamos esquecer tudo isso. Eu sei que você tem muitas perguntas a fazer e eu prometo contar-lhe tudo, mas não dessa vez. Agora quero que vá embora. Está na hora de você ir.

Luis estava totalmente confuso quando deixou a casa. Sentia-se um pouco frustrado, pois esperava que sua bravura em enfrentar aquela situação deveria ter sido melhor recompensada. Não podia entender a mudança brusca no comportamento da mulher. A sua primeira reação foi pensar em nunca mais voltar ali, mas a curiosidade o obrigava a desejar intensamente a próxima visita. Pensava em todas as perguntas ainda não respondidas.

A caminho do orfanato, tentava entender a razão pela qual Saly vivia daquele jeito. Era uma mulher solitária vivendo em uma casa velha, praticamente em ruínas. Como ela saía de casa se nem mesmo havia pegadas na sala? Seria ela realmente de carne e osso?

Estava tão envolvido por seus pensamentos quando entrou no orfanato, que nem percebeu a presença de Mariana na sala.

- Ei garoto, o que aconteceu?

Luis surpreendeu-se com a pergunta.

- Ah, não foi nada. Está tudo bem.

- Como não foi nada, menino. Você ia entrando aqui sem ver nada à sua frente. Quase esbarrou em mim sem nem mesmo notar minha presença. Vamos lá, eu já conheço você muito bem pra saber quando há algo errado ou não.

- Não é nada de mais. Estou só com um pouco de dor de cabeça.

Dizendo isso, saiu apressadamente para evitar a conversa. Conhecia muito bem Mariana e sabia que se não saísse correndo dali, logo ela descobriria seu segredo.

Muitos pensamentos o seguiram durante o resto do dia. No fim da tarde, seus amigos tentaram novamente levá-lo ao campinho. Luis, porém, deu uma desculpa qualquer e voltou para a cama, de onde saiu somente na hora do jantar.

No dia seguinte, na escola, não conseguia prestar atenção à aula. Na sua mente não havia espaço para Geografia, História ou Matemática. Um único assunto dominava toda a sua atenção e lhe trazia muitas questões ainda sem resposta. Quem era aquela mulher? Por que todos a temiam se ela o havia tratado tão bem? Por que ela vivia sozinha naquela casa tão velha e suja?

As horas se arrastaram lentamente até o momento do recreio. No pátio da escola, distraiu-se um pouco conversando com os colegas. Perguntou a alguns deles sobre a tal casa.

- A casa da bruxa? – perguntou um.

- Aquela casa cheia de fantasmas? – o outro emendou?

- Acho melhor você se afastar daquele lugar, Luis. Um amigo me contou que muitos garotos já desapareceram lá dentro.

- Não acredito nessas histórias da carochinha, deve haver uma explicação lógica para tudo isso – respondeu Luis fazendo os outros garotos desviarem a conversa.

Depois do recreio seguiu-se outra eternidade, que foi quebrada finalmente pelo som estridente da campainha da escola. No mesmo instante Luis saiu correndo sem dar atenção aos gritos dos colegas chamando por ele.

A distância até a casa não era tão grande. Quinze minutos depois ele se encontrava novamente parado em frente ao velho sobrado. Mas dessa vez não havia dúvidas. Na verdade, só tinha uma certeza: queria reposta para todas as perguntas.

Luis subiu até o alpendre. Pensou em bater à porta, mas percebeu que ela não resistiria nem mesmo a um simples toque. Resolveu então bater palmas. Esperou alguns segundos sem obter resposta. Tentou mais uma vez, porém a única resposta que recebeu foi o silêncio que vinha do interior da casa.

Lembrou da bronca que Saly havia dado no dia anterior, mas assim mesmo resolveu entrar. Dessa vez foi direto para a escada e daí para a sala onde encontrara Saly no dia anterior. A porta já estava meio aberta, mesmo assim ele pediu licença. Dessa vez ouviu a voz da mulher dando-lhe permissão para que entrasse.

- Pensei que você não voltaria.

- Só agora terminou a aula. Vim direto para cá, o mais rápido que pude.

- Poucos garotos passaram no primeiro teste e só você foi aprovado no segundo. Isso prova como você é corajoso e muito persistente.

- Do que você está falando? Que testes são esses?

Saly sorriu.

- Estava só brincando, garoto. Venha comigo, quero lhe mostrar algo.

Saly o conduziu por uma porta nos fundos da sala.

Ao passar pela porta, Luis parou boquiaberto. Demorou a entender o que estava vendo diante si. Encontrou-se em uma sala impecavelmente limpa e organizada. Em nada lembrava a sujeira que vira na sala da frente.

- Venha, garoto. Vai ficar parado aí o dia todo?

As palavras de Saly o tiraram do estado de transe.

- Quem... quem fez toda essa arrumação?

Saly esboçou um leve sorriso, deu uma piscadela e disse:

- Digamos que eu tenho uma fada particular.

Depois disso, Saly mostrou outros cômodos da casa. Todos bem organizados como a sala. Definitivamente eles se encontravam agora em outra casa. Essa outra casa também tinha uma outra entrada. Certamente era por ali que Saly saía, pois ninguém jamais a tinha visto entrar pela porta da frente do velho casarão.

Em seguida Saly conduziu Luis para a sala de refeições. A mesa estava repleta de comida. Situação à qual Luis definitivamente não estava acostumado. Afinal, a vida no orfanato não era das mais fáceis.

Depois do almoço, enquanto saboreavam uma deliciosa sobremesa, Saly falou:

- Luis, quero que você almoce todos os dias aqui comigo. Eu posso ajudar você nas tarefas da escola. Você sabia que eu já fui professora?

Saly continuou a falar quase sem parar. Parecia despertar de um longo sono e necessitava usar todas as palavras que ficaram guardadas durante todo esse tempo.

Luis ouvia tudo pacientemente. Ele gostava de conversar com pessoas mais velhas. Sempre tinha muito a aprender com elas.

Nos dias seguintes, logo depois das aulas, Luis corria para a casa de Saly. Mal podia esperar pelas delícias que o aguardavam no almoço e na sobremesa.

Saly procurava sempre fazer coisas gostosas para agradar sua visita. Ela se divertia muito conversando com o garoto. Luis lhe trouxera muita alegria. Veio para trazer um pouco de cor aos seus dias cinzentos.

Quanto mais crescia a amizade, mais à vontade ficava o garoto para conversar, brincar, perguntar sobre os assuntos mais diversos. Saly falava sobre suas viagens a terras estrangeiras. Luis sorvia cada palavra como se fossem deliciosas guloseimas.

Vez por outra Luis tentava arrancar alguma informação sobre a família de Saly. Indagava principalmente sobre as fotografias que vira na sala no primeiro dia. Esse era o único momento em que Saly se mostrava contrariada e se esquivava do assunto procurando logo desviar a conversa ou simplesmente se fechando em um absoluto e perturbador silêncio. Nessas ocasiões Luis sabia que não adiantava insistir; era melhor ir para casa e só voltar no dia seguinte.

Algumas semanas se passaram nessa gostosa rotina até que o dia em que o inesperado ocorreu.

Eles haviam acabado de almoçar e ainda estavam à mesa experimentando um saboroso sorvete de chocolate. Foi então que Saly percebeu algo em volta do pescoço de Luis.

- O que você traz aí pendurado no pescoço, Luis?

- Não é nada demais. É só um medalhão sem importância alguma.

- Deixe-me ver, por favor.

Saly não pôde esconder a expressão de incredulidade que tomou conta de seu rosto quando viu de perto aquela peça. Parou por alguns segundos, como se o próprio tempo tivesse parado, congelando tudo que estava ao seu redor.

- O que aconteceu, Saly?

- Onde você conseguiu essa coisa aí, menino? – retrucou a mulher sem dar ouvidos ao que Luis perguntara.

- Ah! Não quero falar sobre esse assunto – disse Luis.

Saly estava completamente transtornada.

- Eu preciso saber onde você obteve essa peça.

Luis ficou assustado com a reação de Saly. Ela o agarrou com força e o sacudiu violentamente. Luis, assustado, começou a gritar.

- Pare Saly, por favor! Você está me dando medo.

Mal Luis acabara de falar, ouviu-se uma voz vinda da porta de entrada da sala.

- Pare com isso, Saly.

- Mariana! Gritaram praticamente ao mesmo tempo Saly e Luis.

Aproveitando o momento de surpresa, Luis se desvencilhou das mãos da mulher e correu em direção a Mariana.

- O que está acontecendo aqui? - perguntou Saly sem entender o que estava se passando. – O que vocês estão tramando contra mim? Saiam já daqui. Deixem-me em paz. Saiam antes que eu chame a polícia.

Escorraçados da casa, Luis e Mariana seguiram em direção ao orfanato e pelo caminho conversavam sobre o ocorrido.

- Como você me encontrou na casa? – perguntou Luis.

Mariana hesitou um pouco, suspirou e disse:

- Eu trabalho lá. Ou pelo menos trabalhava até alguns minutos atrás.

- Mas você trabalha no orfanato...

- Luis, no orfanato eu sou apenas uma voluntária. Trabalho somente à tarde e em troca tenho refeição e um lugar para dormir. Mas isso não é suficiente. Preciso de um trabalho para ganhar algum dinheiro.

- E por que você nunca me contou?

- Eu não podia. Assumi o compromisso com Saly de que não contaria a ninguém sobre esse emprego. Agora me diga: e você, o que estava fazendo por lá? Não teve medo de entrar naquela casa?

- No começo, sim.

- No começo?! Desde quando você está freqüentando a casa de Saly?

- Há algumas semanas.

- Então você foi o motivo de tanta transformação.

- O que você quer dizer com isso?

- Eu trabalho para Saly há muitos anos, desde o tempo em que você era apenas um bebê. Ela sempre foi uma mulher muito estranha. Apesar de sua mania de limpeza, nunca me deixou cuidar da frente da casa. Fazia questão de deixar daquele jeito. Dizia que era para afugentar os curiosos.

- E bem que conseguiu.

- Pois é, mas parece que não funcionou com você, não é mesmo?

Luis fez uma cara de arrependido, concordando com a amiga. Mariana, então, continuou:

- Mas como eu estava falando, de algumas semanas para cá percebi uma grande mudança no comportamento de Saly. Ela passou a sorrir com freqüência. Podia vê-la todas as manhãs sempre contente e ansiosa como uma criança à espera de um presente. Todos os dias ela me pedia para fazer muitas comidas diferentes e deliciosas.

- E por que você estava lá naquele momento?

- Voltei porque havia esquecido algo, mas isso agora não tem importância. Eu quero é saber o que você estava fazendo lá e o que levou Saly a ficar tão furiosa.

- Eu não consigo entender. Ela nunca tinha agido daquela forma. Sempre me tratou muito bem, até mesmo quando invadi sua casa sem permissão. Nunca havia levantado a voz para mim. Isso aconteceu no momento em que viu o meu medalhão.

- Deixe-me dar uma olhada, Luis. Já faz muito tempo, mas me lembro como se fosse hoje.

Mariana pegou a jóia e a abriu ao meio. Depois de algum tempo examinando atentamente a fotografia guardada ali dentro, seus olhos se iluminaram.

- Luis, só tem uma explicação para o que aconteceu. Precisamos voltar e falar com Saly.

- Não quero voltar lá. Acho que meus amigos tinham razão, ela deve ser maluca.

- Vamos voltar sim. Precisamos esclarecer de uma vez por todas essa confusão. Saly pode ser muito estranha, mas tenho certeza de que ela não é maluca.

Luis e Mariana chegaram à casa de Saly pela entrada dos fundos. Tocaram a campainha, mas não houve resposta.

Depois de discutirem um pouco o assunto, concordaram que a única alternativa seria entrar pela porta da frente. Deram a volta no quarteirão até o outro lado da casa. Chegaram ao alpendre e pararam diante da porta principal. Luis deveria passar pela estreita abertura como fizera na primeira vez em que estivera ali e em seguida deveria segurar a porta para que Mariana pudesse entrar.

Luis passou pela pequena abertura e mal se colocou de pé dentro da sala, teve um enorme susto. Saly estava parada a alguns passos dele. Estava completamente paralisada, olhando para as fotografias na parede.

- Por que você voltou, Luis? Por que veio me atormentar?

Do lado de fora Mariana ouviu a voz de Saly e nem esperou a ajuda de Luis. Com um empurrão botou abaixo o resto de porta que só por um milagre ainda se mantinha em pé.

- Ah! Você também está aqui. Digam logo o que querem de mim. É dinheiro que estão procurando?

Mariana tomou a iniciativa de responder algo.

- Saly, escute. Gostaria de conversar com você sobre aquele medalhão. Tenho algumas informações que podem ajudar a esclarecer tudo. Gostaria de entender por que a simples visão desse objeto lhe causou tanta angústia.

Seguiu-se um silêncio na sala, o qual foi quebrado pela voz cansada de Saly.

- Ela era uma menina muito rebelde. Nunca me obedecia e gostava de se meter em confusão. Eu lhe dei esse medalhão no seu aniversário de quinze anos. Eu e seu pai o trouxemos de uma viagem que fizemos à Europa. Foi feito exclusivamente para ela. Não há outro como esse em todo o mundo. Nós a amávamos muito, mas não tínhamos tempo para ela. Seu pai viajava muito a trabalho e eu sempre o acompanhava. Ela não podia ir conosco, pois estava estudando. Certo dia, depois que voltamos de uma viagem ela nos disse que sairia de casa.
Saly fez uma pausa acompanhada de um longo suspiro e continuou já com os olhos cheios de lágrimas.

- Disse que iria viver com um rapaz que conheceu na escola. Nós sabíamos que não ia dar certo. Ele não a amava e provavelmente só estava interessado no dinheiro dela. Por isso tomamos a difícil decisão de deixá-la ir sem direito a nada. Tínhamos a esperança de que ela logo iria se arrepender e voltaria para casa. Saiu apenas com uma pequena mala de roupas e esse medalhão. Depois disso nunca mais a vimos. Logo depois meu esposo veio a falecer, e desde então tenho vivido só. Nem mesmo sei se ela ainda está viva.
Mariana então voltou a falar:

- Saly, preciso lhe contar uma rápida história que aconteceu há muito tempo. Já faz uns treze anos. Era noite e chovia muito. Estávamos todos reunidos na sala do orfanato quando a campainha tocou. Ao abrir a porta, deparei-me com uma jovem mulher com uma criança nos braços. A mulher tossia muito quando me entregou a criança. De seus lábios trêmulos saíram palavras que até hoje doem em meus ouvidos todas as vezes que lembro: “Por favor, cuide dele. Quando crescer, entregue-lhe isto e diga-lhe que eu o amei até a morte”. Em seguida a mulher desapareceu na escuridão da noite deixando em minhas mãos a criança e uma pequena caixa contendo esse medalhão de ouro. Essa criança é Luis, de quem tenho cuidado desde então como se fosse o filho que nunca tive.

Saly ouvia toda a história quase sem respirar. As lágrimas já lhe banhavam o rosto.

Mariana continou:

- Hoje, quando saímos daqui, pude rever a foto que está guardada dentro do medalhão. É a foto de uma mulher com uma menina ao seu lado. Sempre achei que só podiam ser mãe e filha. A menina se parece muito com Luis. Foi então que compreendi tudo. A história que você acaba de nos contar só vem confirmar o meu entendimento. Você só pode ser a avó do Luis. Aquela jovem mulher que bateu a porta do orfanato naquela noite era sua filha.

Saly irrompeu em um choro convulsivo. Abraçou Luis como nunca abraçara alguém. Descarregava naquele abraço e nas lágrimas que o acompanhavam, anos e anos de remorso, de amargura, de perda, de solidão, de um passado que ficara aprisionado dentro de si e que ao mesmo tempo a aprisionava havia tantos anos. Finalmente, traduziu toda esses sentimentos com as únicas palavras que conseguiu pronunciar:

- Perdoe-me, meu filho. Perdoe-me por tantos erros que cometi.


FIM

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui