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cronicas-->CAP DE MAR [UMA PRAIA DO CARIBE] -- 14/08/2006 - 12:48 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 30ª. crónica da série*. São cronicas independentes não obstante formem um sequência...)



30
CAP DE MAR [UMA PRAIA DO CARIBE]


Ramón está apaixonado por Gloria e o assédio é feito nas sessões de ginástica. Trota ao lado dela, enquanto caminhamos pela praça interna do edifício central da Universidade. Ela ri e não lhe dá muita atenção. Mas ele, apesar de tímido, insiste.

Milagros, Sonia e eu infernizamos sua vida nas horas em que saímos juntos. Gloria ri, não leva a sério.
No princípio ele falava comigo. Depois, à medida em que foi percebendo que eu era o preferido e êle o preterido, passou a lançar-me olhares de ciúme e raiva. Deve angustiar-se ao ver-me sair no carro de uma delas, depois dos exercícios.

- Tu não sabes o que é um porto-riquenho ciumento! --advertiu-me Milagros, em tom de gracejo.

Para dar curso ao jogo, uma vez falei para Gloria, na fila de um cinema da Plaza de las Americas:

-Não olhe para trás ... Ramón está ali, observando-nos ... Ela sorriu mais uma vez e concluiu:
- Que nada, ele não tem jeito de quem vem a um festival de cinema ... Completei, com sarcasmo:
--Pois, cuide-se. Vai acabar convidando-a para ir a uma rinha de galos.

A família de Gloria tem propriedades em Cap de Mar, frente ao Atlàntico. Uma praia minúscula, de areias amareladas e grossas, no fundo de uma pequena baía cercada por penhascos. As ondas violentas passam sobre arrecifes esculpidos pela erosão, formando figuras bizarras e se chocam contra os rochedos. De verde passam a azul e terminam brancas e espumantes, galgando as escadas das falésias. O vento do mar passa por debaixo, por um túnel natural e sai por um buraco, onde se refugiam os caranguejos. As encostas são abruptas e a vegetação rasteira fixa o resto de dunas nas margens do caminho.
Da casa dos pais de Gloria descortina-se a prainha, lá em baixo. Poucas casas, algumas de madeira, construídas sobre pilotis de cimento, distribuídas pelas encostas. Algumas rústicas, outras mais sofisticadas.

Entra-se na água tíbia e, a escassos metros, já se sente faltar chão aos pés. As ondas castigam com força. Água muito verde, transparente. Olhando-se na direção da praia o sol se põe, vagarosamente, deixando um rastro de luz sobre a areia. Sombras sobre o mar e, a intervalos, algumas ondas são iluminadas pela luminosidade declinante e dourada do poente.

A sensação é de recolhimento, de aconchego. Um prazer descomunal, sem limites. O corpo mergulhado na água salgada, a paisagem quase exclusiva, a camaradagem tão espontànea e alegre dessas amigas porto-riquenhas, uma brisa suave e fresca. Instalou-se em mim o temor de que tanta felicidade fosse algo instantàneo, momentàneo. A sensação era de não querer que o tempo se esgotasse, que tudo se eternizasse. Vontade de segurar os ponteiros do relógio, de virar estátua de sal.

Milagros, Gloria, Sonia e Ema.

Ficamos adernados sobre a areia, a conversar e a comentar as nossas impressões.
Falei para Ema:

-Você quer saber como é o Ramón? Imagine-o: tem 1,80 m, olhos verdes, corpo atlético, veste-se com grifes italianas, fala várias línguas, sempre um bom papo e, se não bastasse tudo isso, sobra-lhe dinheiro nos bancos. Melhor partido, impossível...

Rimos muito. Ramón é um sujeito singelo, feio, baixinho e certamente pobre.
Crueldade nossa, mas por pura brincadeira, sem maldade.

* * *
Voltamos à praia mais tarde e sentamo-nos todos sobre uma enorme lençol. Uma imensa lua cheia, no fundo da baía, e aquela esteira de luz sobre o mar em movimento, vindo em nossa direção! Um prateado total e umas poucas estrelas obscurecidas por tanta luz! O barulho agitado do mar quebrava o silêncio da noite. As casas iluminadas sobre as encostas pareciam cenário de teatro, não pareciam reais. Ali ficamos até que um de nós --creio que foi Ema - caiu na realidade, advertindo-nos da iminência de partirmos de volta.

Dificilmente viverei outro instante como aquele. De perfeição, de beleza,de realização plena. De simplicidade e de amizade.

* * *
o caminho de volta foi de desgarramento, devagar, para que a transição entre a fantasia e o quotidiano não fosse tão abrupta. Cruzamos a pequena cidade de Dorado já bem tarde e atravessamos Bayamón e San Juan, em direção a Rio Piedras, quase em silêncio. Um pouco de cansaço, um tanto de resignação.

Antes de dormir debrucei-me sobre as folhas de papel como para ruminar, reviver e recriar, no universo das palavras, aqueles instantes de prazer. As palavras pareceram-me pálidas e imprecisas e resignei-me a um registro simplório, apenas para fixar algumas imagens e sensações.

Milagros, Sonia, Gloria. E tem também Diana, que estudou português e é artista plástica. Ela ficou de me transmitir alguns segredos da modelagem em cimento, de seu know-how no preparo da massa, das misturas de cimento com outros componentes.

Diana é irmã de Gloria e de Sonia. Sei quase nada sobre elas e não faço perguntas sobre suas vidas. Elas tampouco perscrutam minha vida privada. Vamos nos descobrindo aos poucos, de uma conversa para outra. Fragmentos, detalhes soltos, peças de armar.

Um dos filhos de Gloria - o Daniel, um jovem muito alto e forte -, encontrou-se conosco numa caminhada pelos meandros do Parque Nacional de EI Yunque. Vinha em sentido contrário, com seus colegas do curso secundário, fazendo levantamentos ecológicos. Depois conheci o outro filho - Rafael-, um belo e afetuoso garotão de seus dezenove anos de idade. Estuda engenharia mecànica na Universidade de Porto Rico, no campus de Mayaguez. Fomos até lá na semana passada. Mamãe Gloria e tia Sonia trataram-no com um carinho que só os latinos conseguem transmitir e ele retribuía com muita verve e bom humor, enquanto comia seguidos pratos no self-service Bonanza. Parecia ser a primeira refeição da semana! "Rafa", como é apelidado carinhosamente, já tem uma considerável experiência em projetos tecnológicos, tendo viajado à Argentina e à Guatemala para encontros com outros jovens cientistas. No momento está na Austrália, com uma equipe da Universidade, participando de uma competição pelo deserto, num carro movido a energia solar. Mamãe Gloria está orgulhosa de sua cria.

Milagros é etérea, diáfana. Pousa no chão como uma borboleta. Sonia é mais circunspecta, auto-suficiente, mantém uma reserva ou espaço entre ela e as pessoas, sem ser fria bem distante. Diana é simples, gentil, meiga.
Vicente tem razão: as aulas de ginástica também servem para o congraçamento, para aproximar os membros da comunidade.

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Próxima crónica da série: (31) À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS


Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.

Iremos publicando as cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...

Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".

Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.


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