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Contos-->Conquista da liberdade -- 03/04/2010 - 13:40 (Fabrício Sousa Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Conquista da liberdade

Fabrício Sousa Costa

O corpo bailava no ar. Lembrei-me de Roberto Drummond em Os mortos não dançam valsa. Mas a música que soava não era valsa. A marcha fúnebre estava mais fúnebre. Os olhos assustados indicavam angústia. Terror. Medo. A parede acariciada com as unhas do corpo. Um banquinho virado no chão. Um grito de silêncio no quarto. A dor sangrava pelos poros. O perfume apodrecido denunciava à presença do tempo.


A mãe na sala não se dava conta do que acontecera. Olhava a televisão. Não demonstrava outro tipo de interesse. Apenas a televisão. Um ou outro bate-papo com a neta ou a filha. Estavam todos reunidos na sala. A televisão como centro de tudo. Uma espécie de antropotelecentrismo. “A comida está pronta”. Chegara a hora de alimentar a vida. Conservá-la. D. Raira sentiu a falta dela. Lembrou-se de que ela havia passado pela sala há duas horas e meia. Levava um banquinho consigo. A expressão facial, a qual reluzia, era de ódio. Ódio da vida. De todos. Dela mesma. Ou seria das circunstâncias que a envolviam? Em quê? Na capa. Todos vestimos uma capa. Ela nunca se abre; não se pode sair dela. A capa é o corpo. A alma é sadia. O corpo é relativo. “Ei, Nunci, chama a tia”.


Como chamar uma pessoa que não quer ouvir? No quarto. Antes do corpo bailar sobre o ar. Uma conversa consigo. O sangramento das lembranças. 42 anos de vida. 4 décadas de história. Vida é sofrer e alegrar. Uns sofrem mais. Outros menos. A tia, não! Lutava internamente contra uma visão pessimista. A visão quase sempre a dominava. Não era uma luta. Uma batalha. Uma guerra. A desgraça de Hiroxima e Nagasaki parecia habitar seu interior. Naquele momento. Banco no quarto. Corda na mão. Tia lembrava a primeira década de sua vida. Sentiu um terrível frio. Uma criança que acabara de sair do ventre. Aparentemente sem vida. Deixada ao relento. No quarto. Sentada no banquinho. O frio aumentava. O tempo acariciava a criança. Ela gritou. A corda na mão. O bebê no chão. Pegaram a criança do chão. Trataram-na. O tempo caminhou. A criança não sabia falar; não sabia andar. Caminhou mais rápido o tempo. A criança falava com dificuldade. Andava em zigue-zague. D. Raira abraçou a culpa. Viu-se obrigada a protegê-la. Superproteção ou penitência? A escola. A igreja. A vizinhança. Todos se diferenciavam dela. Ela era especial; não queria ser especial. Queria ser comum. Não podia ser comum; todos olhavam diferente. A superproteção é amiga da rebeldia. Rebeldia ou desespero? Consciência. Tia era consciente. A consciência limpa a cegueira. Então por que culpar a mãe? Será que a guerra interior a cegara? O carinho da família abraçara a tia. A família não a tratava diferente. Tentava fazer que ela se sentisse igual. Nunca seria igual. Era diferente. Tia via-se diferente. Falava diferente. Andava diferente. Chorava constantemente. A impaciência é efêmera se o tratamento for igual. As lágrimas, da calçada, caminharam pelo chão. Subiram os degraus. Andaram pela parede. Ninguém poderia pisá-las. Atravessaram a copa. Ainda na parede. Chegaram à cozinha. Descansaram no quarto junto à corda e ao banquinho. Tia também se alegrava. Em seguida, estava triste novamente. Triste, alegre; era a vida. Parecia mais triste a vida dela. Sua boca ia de encontro a Deus. Deus não era Deus. “Se existisse Deus, eu não seria assim”. Logo depois a idéia transformava-se. “Deus é maravilhoso. O sofrimento é necessário”. Vivia nesse antagonismo Barroco. O que era o Barroco? A literatura seria capaz de mudar sua vida. Tia não gostava de literatura. Quase não gostava. Lia alguns CD’s de literatura modernista. Lia Fagner, Zé Ramalho, Elba, Alceu, Flávio, Paulinho... A literatura não lia seus olhos; lia seus ouvidos. A luta era intensa. A arma mais eficaz eram as lágrimas. Constantemente as lágrimas lavavam a alma, o corpo. A culpa. Ora a culpa era de Deus, ora de D. Raira. A mãe idosa e doente suportava a culpa. Os palavrões também. Todo o ódio. Moravam juntas. Apenas as duas. “Que monstro tornou-se?” A mãe “dibuiava” 4 terços e um inteiro todos os dias. As novenas não eram novenas; eram dezenas, centenas. Nada mudava. A tia era a mesma. O sofrimento perpetuava-se. De quem? Tia e D. Raira sofriam antagonicamente juntas. 42 anos sem amor, marido, filho; sem vida. “O que é a vida? Não sei o que é a vida; quero saber o que é a morte!” A morte. A morte possui vários significados. Poderia ser o interrupção de algo positivo; poderia ser uma viagem. Quem não gosta de viajar? Uma viagem não convencional. Uma viagem para fora da realidade. Tia queria deixar aquela realidade. Achava que tinha direito a ser igual. De verdade. A viagem para fora da vida seria a solução. Estava decidida a ser igual em outro lugar. “Adeus família, quero ser independente. Conquistarei meu paraíso”. De fato, a vida não era um paraíso para ela. Floydianamente não era uma. Eram duas. Uma tia doce. Alegre. Uma tia que chorava gotas azuis de ódio. O azul é mesmo uma cor odiável.


Tia acordou num domingo às 10h. Acostumou-se a acordar cedo. Havia acordado tarde. Não pensava em café-da-manhã ou almoço. Pensava apenas num banquinho. “Cadê o banquinho. Meu deus, está na sala”. Abriu a porta do quarto. Caminhou lentamente pela cozinha. Pela copa. Pela sala. Olhava vagarosamente todos os objetos que enfeitavam 4 décadas de sua vida. A expressão estava fechada. O rosto era odioso. Nenhum bom-dia. Tampouco respondera a pergunta da mãe. Pegou o banquinho e caminhou de volta. Agora fez o caminho inverso. Pela sala. Pela copa. Pela cozinha. Entrara no quarto. Fechara a porta atrás de si. O banquinho ficou no canto direito da parede. Sob uma madeira grossa que sustentava o telhado. Sentou na cama. Olhou o banquinho. Olhou as fotos. Olhou a literatura auditiva. Ligou Fagner. A corda sozinha caminhava pela parede. Passava pela madeira grossa. Agarrou-se à madeira. O ritual começara. As lágrimas agora eram saudosas. Os sentimentos confundiam-se. Tentou-se imaginar no paraíso. Via-se livre. Consegui convencer-se. Ganhou força. Agora eram ela, o banco e a corda.


“Ei, Nunci, chama a tia. O almoço está pronto”. A neta obedeceu. Saiu da sala. Passou pela copa. Pela cozinha. Bateu na porta do quarto. Chamou a tia. Não ouvia resposta. “Dormindo até uma hora desta”!? Olhou o relógio. Eram 12:30h. empurrou a porta. Entrou no quarto. Não viu nada. Adentrou mais um pouco. Nada. Olhou para o lado. Um grito forte saiu da sua boca. Desmaiou. De pronto o quarto estava cheio. Tentavam descer a tia daquela corda. O banquinho estava caído pelo chão. O corpo bailava sobre o ar. O corpo estava roxo. Fétido. A parede arranhada. Todos desesperados. Cortaram a corda. D. Raira desmaia. O corpo, imitando D. Raira, sobre os braços da irmã. Enquanto no quarto, na casa, na cidade, na vida, os que ficaram entristeceram-se; tia conquistara a liberdade. Agora era independente. Era livre. Simplesmente igual. Conseguira finalmente tirar a capa. Deus a abençoe, tia!
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