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cronicas-->MORTO E ENCLAUSURADO -- 16/08/2006 - 12:41 (ANTONIO MIRANDA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


MORTO E ENCLAUSURADO

Crónica de Antonio Miranda

escrita dia 14.12.1991
em homenagem a Antonio Felipe Corrêa da Costa



Dedicar-se aos animais e esquivar-se das pessoas é como o Felipe optou em função de seu ensimesmamento. Os gatos merecem toda a sua atenção, um devotamento absoluto. Às dezenas, os felinos povoam seu universo familiar, na casa que edificou em Valparaiso, nos arredores de Brasília.

Uma vida toda dedicada aos bichinhos, com os quais compartilha seus bens, seu tempo, seu amor. Seu companheiro - o José Luis - secunda-o na tarefa abnegada, cheia de renúncias, que demandam boa parcela de seu salário na manutenção e que exige permanência e constància no trato e no manuseio.

Conhece cada gato pelo nome, a personalidade e as manhas de cada um. Conversa com eles, sofre as suas doenças e desfruta sua companhia, anos após anos.

Vive também com seus poucos livros, que lê meticulosamente, sobretudo filosofia. E a obra de Clarice Lispector que já sabe quase de memória.

Convive também com os seus símbolos, seus ídolos - sobretudo os artistas da década de 40 - que conhece não apenas pelos filmes de que participaram, assim como as suas vidas. Artistas de Hollywood e do cinema francês, antes até da Nouvelle Vague, cujas melhores películas agora consegue rever em vídeo.

Marilyn Monroe e Brigitte Bardot são as suas musas favoritas. Sabe tudo sobre lãs. Fala delas em estado de êxtase permanente, de encantamento, de paixão e felicidade. Coleciona fotos e reportagens em álbuns, como os adolescentes.

Com Brigitte Bardot comunga a paixão pela defesa dos animais.

Felipe é uma pessoa pura, muito frágil, carente de sentimentos. Uma criatura boa, mas temida pela sua franqueza, pelo seu radicalismo. Odeia as posturas burguesas, as hipocrisias das relações formais, com as quais não transige. É um maniqueísta empedernido, exercendo o ato de classificar as pessoas de seu universo de relações - que é muito restrito, limitando-se aos locais de trabalho, de estudos e de sua vizinhança - entre as que ele definitivamente ama e as que detesta. Não há lugar para meio termo. Seus sentimentos sã comandados pela sua aguçada e crítica intuição, seus feelings, seus pressentimentos e ressentimentos, sua sensibilidade à flor da pele. É capaz de ler a alma da gente e de descobrir, lá no nosso mais profundo disfarce, as contradições e a falta de caráter, e não costuma errar em seu juízo.

Está sempre na defensiva.

Agora, depois dos cinquenta, deixou a barba crescer. Grisalha, austera, bíblica. Guarda um porte nobre, desleixado, e uma beleza castigada pelo desmazelo de si mesmo. Parece querer desfigurar-se, tenta impedir qualquer notoriedade.

Deve ter sido um jovem belo e orgulhoso. Saído do extremo sul (Arroio Grande), andou por toda parte, pelos Estados Unidos, em busca de conhecimentos e da sobrevivência

Bibliotecário, economista, estudante de línguas, perfeccionista, um trabalhador intelectual solitário, mestre em Ciência da Informação, um profissional honesto ao ponto de incomodar e de não tolerar a mediocridade que o circunda.

Pouquíssimas amizades, pelas quais professa um amor desmesurado. Aos demais fustiga com acidez e desdém.

Sabe-se mal querido, temido, compreende que as pessoas o evitam, tem sempre uma resposta ríspida e cruel para os que na privam de sua intimidade. Crê ser desdenhado pela maioria e invejado por muitos, e despreza a quase todo mundo, evitando qualquer forma de convívio. Trabalho de equipe, não. Prefere alguma tarefa meticulosa, silenciosa.

Tem uma sala reservada, sempre arrumada, com posters e ícones de seus ídolos, de suas fantasias. Um espaço só seu, que ele defende com o mesmo zelo que os gatos cuidam de seus territórios. Ninguém ousa invadir. Trabalha por missões, sem prazos rígidos, cioso de suas responsabilidades e qualidade de seus resultados.

Diz estar escrevendo um texto existencial, um libelo, quer sair de si, comunicar-se. Palavras confessionais que ele anuncia serem muito lúcidas, muito verdadeiras, um tanto amargas, espelhando a sua visão do mundo e espalhando seus valores e convicções. Ou ficções. Com um pouco de fel, de fé, ameaça, mas a gente sabe que, por trás dessa suposta agressividade, consciente do próprio ridículo da existência humana, de suas grandezas e misérias.

Apregoa a sua própria morte, sua indignação pela vida que lhe deram sem consulta, sem opção, prega seu próprio enclausuramento. A barba de ermitão antecipa a imagem quase solitária que tem de si mesmo, propondo recolher-se à casa logo que se aposente (aoa "aposentos", como insinua a etimologia).

Mas continuará com seus gatos, com seus sonhos, com seus ídolos, seus valores e até com os seus poucos amigos, que trata com tanto esmero e dedicação, cercando-os de palavras de carinho, de presentes e dádivas.

Felipe é como um animal ferido. Inocente, defendendo-se sempre, fugindo sempre, julgando-se indefeso. Um animal acossado, acuado, que é belo e se vê feio no espelho, que é capaz de ferir, mas está sempre cheio de festa e de bons sentimentos.

Tem a maldade e a bondade dos animais, que sabem recompensar os afagos e dar o bote quando se vêm ameaçados.

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