Usina de Letras
Usina de Letras
144 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62215 )

Cartas ( 21334)

Contos (13261)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10357)

Erótico (13569)

Frases (50610)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140799)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1063)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6187)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O casarão -- 03/04/2010 - 13:51 (Fabrício Sousa Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O casarão

Fabrício Sousa Costa


Faz um ano o final de minha vida. Sei o porquê de voltar no tempo. Vou contar uma história. A história de 60 anos de uma vida nada invejável. Acendi um cachimbo. Meus olhos pareciam uma chaminé. A fumaça ajuda-me a soltar as lembranças. 60 anos de vida. Soltar. Desprender, libertar. 60 anos de lembranças. Puxei mais fumaça. A essência era de hortelã. “Começo pela morte ou pela vida?” A hortelã não me respondia. Percebi minhas mãos cansadas. Minha pele amarrotada. As lembranças acordadas e lúcidas. Vivia só nesta enorme casa. Casarão. Do século XIX. Tenho muitas histórias. A casa é um grande livro de histórias. Dois séculos. Vida, morte. Como minhas histórias. Era enorme. Espaçosa. Escura. Como meu coração. Perdi as pessoas que amava. A cada perda, um buraco no coração. Como o que faz uma mineradora. Ele ainda cresce. Todo mês uma porcentagem. “Parece a superinflação da época de Sarney.” Desconhecia o índice de reajuste. Isso não importava. Ele sempre subia. Vivo nesta rua quase deserta. Raros vizinhos atrevem-se a olhar para mim. Estou só. Eu e meu gatinho preto. Shani. Gato companheiro. Meus livros. Eles impedem-me de morrer. Recebo conselhos diários. Não me sinto só. Entro em outra realidade. Quando volto, desejo morrer. “Não posso deixar Shani.” A vida tem sua importância. A importância coletiva. Se não estivesse viva, não poderia escrever este conto após a morte. O conto. Contar. Relembrar. Revivenciar. Partilhar um conto com o leitor. Compartilhar uma vida com alguém que não conheço. “Sinto-me envergonhada”. Entretanto, lembro-me dos meus livros. Seria egoísta de apenas querer ouvir. Então desejo transmitir a vocês. A vida para mim foi um grande vazio.

A casa. O casarão do século XIX. Uma espécie de livro histórico-literário. Imprimiu a história de várias pessoas. Nos anais da cidade. Muitas histórias tristes. A velocidade do tempo sepultou bastantes pessoas na história do casarão. Quando cheguei aqui, estava recém casada. Poucos dias morando no casarão, a vizinhança num ato de intimidade contava-me a história do casarão. Morte, vida, vida-morte. A história do casarão. Nunca poderia ter imaginado que seria assim. A história com a qual fiquei mais extasiada foi a de Damião. Recém casado, chegou ao casarão. Amava a esposa. A esposa o amava. Viveram um ano de amor e amor. Damião, rapaz responsável, dava sua vida pela esposa. “Tranqüilo.” A vizinhança ressaltava sua maior característica. Passado exatamente um ano, Damião voltou para casa como todos os dias. Beijou a esposa. Jantou. Ouviu o rádio. Leu. Jogou o livro no sofá e caminho à cozinha. Pegou uma faca tramontana. Abriu a porta da cozinha para amolá-la. A esposa chegou abraçando-o por trás. Damião beijou suas mãos. “Desculpa-me, eu te amo.” Foi a única coisa que Damião disse à esposa. De um só golpe, enfiou a faca de 10 cm no olho direito dela. A força foi tão grande que o dedo indicador parou dentro do buraco do olho. Damião teve de derrubá-la no chão para pisar sua cabeça e retirar a faca. A esposa debatia-se no chão gritando de dor. O marido indiferente ao sofrimento da outra desferiu-lhe mais sete golpes. Essa foi a história de Damião e o casarão. Ainda resta a história do casarão e dois séculos de vida. Escutei inerte o caso de Damião. “Quê barbaridade! Ele não a amava?” Não conseguia aceitar aquilo. Recém casados como eu e meu marido. Naquele dia voltei para casa apavorada. Estava morando no cenário daquela barbárie. Ao brotar de mais uma aurora, ouvi outro conto sobre o casarão. Este capítulo é dedicado à história de Manuel. Manuel mudou para o casarão quando estava com 11 meses de casado. Tinha uma filhinha de 2 meses. Parecia que estava encantado com Joice, sua filha. Era cuidadoso com sua esposa e com sua filha. Segundo relatos, havia pedido férias somente para cuidar das duas no período de adaptação ao novo lar. “A esposa estava quase recuperada do parto. A criança era a personificação de um conto de fadas.” Os vizinhos sempre comentavam. Num dia, Manuel voltou do mercado com um semblante estranho. Parou o cavalo em frente a casa. Entrou pela porta dos fundos. Sentou no degrau da porta da cozinha. Ficou imóvel durante longos minutos. Começou a cortar alguns gravetos com uma machadinha. Pegou a faca tramontana. Raspou os gravetos. Afiou-os. A esposa estava sentada na rede. No quarto. Manuel, se arrastando pelo chão, entrou no quarto. Parou debaixo da rede. Meditou por alguns instantes. Levantou enfiando duas das estacas simultaneamente nas costas da esposa. As estacas perfuraram os pulmões. O sangue escorria pelo chão. A esposa permaneceu calada, olhando para o teto. Outra estaca lhe perfurou a barriga. Ela continuou a olhar imóvel para o teto. Outra estaca foi de encontro a sua cabeça. Ela virou o rosto para Manuel. Olhou profundamente os seus olhos. Uma lágrima deslizou por sua face. Perguntou suavemente antes de fechar os olhos. Fiquei perplexa ao ouvir aquele caso. “E o bebê?” Perguntei desesperada. Não tiveram coragem de contar-me. Fui para casa vestida. Tristeza, medo, descrença. “Casarão maldito.” As vizinhas não perdoavam o casarão e seus personagens. Agora o casarão e minha vida. “Seria a próxima vítima?” Meu coração insistia na pergunta. Mas não queria conceber a possibilidade. Embora outra história me chamasse ainda mais a atenção. A história de Léo e Bia. Após uma tentativa frustrada de matar Bia, Léo foi enterrado na parede da sala por ela. “Finalmente uma mulher forte para não morrer.” Pensava com humor negro. Tantas histórias exageradamente duvidosas me causaram resistência à credibilidade. “Pelo menos uma única mulher para não se deixar morrer.” A história do casarão.

Hoje a um ano do fim da minha existência, sento para contar minha vida. Eu, meu cachimbo e o gato preto. As lembranças do dia de justiça. Talvez o primeiro desde o dia em que cheguei aqui. No casarão. As lembranças de morte e vida. A fumaça do cachimbo agora circulava pelas veias abertas pelo tempo. Tempo é a arma que Deus dispôs para me matar paulatinamente. Minha morte começou devagar. O tempo paradoxalmente trouxe as lembranças de um passado mais triste que alegre. Apenas tive alegria até meus 18 anos de vida. Idade com a qual me casei. Os demais anos apenas senti excitação. Mas o que era excitação para mim, era desespero para os outros. O desespero dos outros em alguns momentos excitava-me. Acordei no dia 10 de agosto. Cedo. Às 7h. tomei um banho frio. Comi pão caseiro; tomei leite. O gato preto sentou à mesa e comeu sardinha cubana. Depois da sardinha, ele pediu dois copos de leite. Shani bebia o leite sujando o bigode. Adorava sentir o leite seco no bigode. Conversamos amorosos minutos. Fi-lo compreender que precisava tomar aquilo calmante. Shani o tomou. Em pouco tempo, estava alheio à realidade. Peguei uma corda e o abracei forte. Shani não demonstrou nenhuma dor. Morreu com o bigode sujo de leite. Fui ao quarto. Peguei um par de algemas. Voltei para a sala. Sentei na poltrona. Algemei meu braço esquerdo à barra de ferro da poltrona. Com a outra algema, prendi uma perna à outra. Com a mão livre, joguei álcool ao redor de mim, no sofá, na minha cabeça de modo com que meu corpo ficasse encharcado do líquido inflamável. Relembrei toda minha vida antes de acender o fósforo. Não senti remoço pelo que estava preste a fazer. Havia de pagar por tudo. “Eu e o casarão?” Os dois. Acendi o fogo. Atirei-o ao chão. As chamas rapidamente já estavam murmurando em meu ouvido. Perdi as vistas. Suava de calor. Mais uma vez o prazer tomava de conta de meus sentimentos. Agora penitentes.

Entrei em casa assustada. Fechei a porta atrás de mim. Tranquei-a lentamente, sentei no sofá. Meu marido sentou ao meu lado. Estava tão introspectiva que não o vi senta ao meu lado. Acordei. Não. Ele me acordou do transe. Contei-lhe os casos com os quais as vizinhas tentavam assustar-me. Ele riu das tolices contadas pelos vizinhos. Mas aquilo ficou enraizado em meu subconsciente. Não me assustava. Sentia estranhamente uma excitação. Sem dúvida, as histórias mexeram comigo. Incomodava-me estar próxima àquela pessoa estranha. Quem? Eu e minha alma. As histórias transformaram-me de modo que não sentia o coração bater. De modo que cheguei a apoiar todas as barbáries cometidas durante o século XX. “Jogar uma bomba atômica sobre um país destruído pela segunda guerra, matando milhares de pessoas inocentes, não foi um ato passivo de pena; por que teria de condenar o casarão?” Fui à cozinha. Abri a gaveta. Procurei. Procurei. “Achei!” Era a lima. Peguei a tramontana e a lima. Sentei no degrau da cozinha, junta à porta. Amolei a faca tão lenta quanto perfeitamente. Saboreava cada momento. Ir e vir e o brilho do sol refletido no metal. Puxei uma mexa do meu cabelo e a cortei com a tramontana afiadíssima. Voltei para a sala. Guardei-a. Liguei a TV para assistir a um filme. A campainha toca, “blim blom”. Ele sempre fazia isso. Ao chegar, tocava a campainha. Estava ansiosa de saudade. Abracei-lhe ao entrar em casa. Beijei-lhe como nunca havia beijado antes. Ele correspondia ao beijo com ânimo. Deitamos no sofá. A TV ligada. Não deixávamos de nos beijar. De súbito, parei e pedi que relembrássemos nossa vida até ali. Passamos 2 horas em nossa retrospectiva. Sem esperá-lo parar de falar, passei a mão em seu cabelo. Iniciei uma gostosa seção de cafuné. Meu esposo estava relaxado. Eu estava excitada. Passei a mão por detrás de nós. Trouxe a tramontana ao meu peito. Virei sua cabeça de lado. Fechei seus olhos com a mão. Encostei a tramontana em seu pescoço. No momento que se assustou com o frio da lâmina, puxei a tramontana com toda força contra meu peito. Eu estava embebida de sangue, encharcada. A cabeça de meu marido estava no chão. Seu corpo, em meu colo, estava em estado de choque, literalmente. Joguei-o no chão. Fui tomar banho. Quando voltei à sala, deparei-me com seu corpo no chão separado da cabeça. Fui ao quintal e abri uma vala para enterrar o corpo e a cabeça. “Não poderia apenas enterrá-los, teria de queimá-los. Fiz. Voltei ao banheiro e tomei outro banho. Nunca mais o vi. Nunca mais me reconheci. Senti muita saudade de nós. Não mais o veria. Tampouco me encontrei.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui