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Contos-->O boi Romeu -- 11/04/2010 - 22:11 (Antonio J. C. Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O boi Romeu

Antônio J. C. Antunes







Meu avô

Aqui nesta cadeira numa rua de Pirenópolis, olhando o telhado da Matriz e o morro verde lá longe, fico a recordar meu avô, meu pai e as histórias da fazenda.
Meu avô era descendente de estrangeiros, negros e índios. Estudou na Europa onde estabeleceu contatos com as técnicas e as ciências, que acompanhou toda a vida. Vivia observando a natureza e curtia a convivência com o povo do Cerrado, onde morou toda vida.
Comprou terras juntas, num município vizinho daqui, e fundou uma grande fazenda com o nome de Bom Mirar. Construiu uma casa grande com um terracinho em cima, para de vez em quando apreciar os astros com uma luneta. Comprou na Suíça dois binóculos para olhar as plantas e os bichos deste sertão. Costumava dizer a meu pai e a amigos que havia muitíssimas coisas por aqui completamente desconhecidas pelos cientistas. Coisas da natureza do Cerrado e da natureza dos homens.
Seu desaparecimento deixou um estranho sentimento de perda e dúvida, porque era muito estimado e porque sua ida foi muito misteriosa.
Quando vinha de vender uma boiada, acompanhado por três vaqueiros de sua inteira confiança, percebeu os quero-queros evitando uma moita lá na frente do caminho. Parou, apeou do cavalo, fingiu observar com seu binóculo toda a natureza em seu redor e depois com naturalidade fixou as lentes naquela moita. Lá estava um capanga de espingarda na mão esperando por eles. Era uma cilada, não raro de acontecer neste sertão. Meu avô tomou seu rifle na sela e atirou. O bandido, aparentemente assustado, montou num cavalo que estava escondido e galopou rápido, subindo a serra. Pouco demorou meu avô a observar de binóculo o fugitivo e, em seguida, foi no seu encalço a rédeas soltas. Perplexos, os três vaqueiros olharam aqueles dois correndo lá na frente e, pouco depois, também os seguiram à a toda carreira. Viram quando o meu avô chegou desembalado no alto do morro e começou a descer para o outro lado. Ao chegarem naquele mesmo ponto, os três frearam aturdidos. Estavam completamente assombrados. Nada de meu avô nem do perseguido. Nem nas ladeiras, nem em todo o vale que se descortinava à frente. Vasculharam todo o buritizal do córrego, os matos das duas margens e a ladeira da serra do outro lado. A distância entre o alto daquela serra e o morro onde viram meu avô pela última vez era enorme. Impossível que os dois tivessem chegado lá naquela cocuruta sem que os três vaqueiros muito antes tivessem percebido.
Depois de muito vasculhar, voltaram pra fazenda completamente malucos. Às perguntas sobre onde estava meu avô, respondiam com prantos e palavras desconexas, até que confusamente foram contando o que aconteceu.
Espalhada a notícia, começaram as lendas. Que tinham se encantado. Que os cavalos adquiriram asas. Que uns demônios ou uns anjos os tinham levado. Que era mais uma brincadeira de meu avô, que teria preparado tudo para enganar os três vaqueiros.
Tempos depois, apareceram lendas mais atualizadas. Diziam que os dois tinham ido para outras dimensões do universo, ou que eles tinham sido levados por um disco voador para outro planeta.
Mas o certo é que deixou uma saudade fora do comum. Inicialmente, havia também a esperança de ele aparecer vivo. Depois, passado o tempo em que o meu avô já teria muitos anos, espalhou-se pouco a pouco a crença de que já estava morto. E o vazio sentido por todos passou a pesar muito mais. Por gente da família, amigos, admiradores e admiradoras. Que eram muitas.

A brincadeira frustrada

Meu pai me dizia que eu parecia muito com meu avô. Todos que o conheceram diziam o mesmo. Até a mania de observar e conhecer a natureza do Cerrado e de sua gente. Até a maneira de carregar e usar o binóculo que ficou de herança comigo.
Confesso que a imagem que eu faço de meu avô foi tomando conta da minha mente. Era um modelo que estava incrustado e crescendo dentro de mim. Desde pequeno, e depois, quando passei a administrar a fazenda devido à morte prematura de meu pai.
Administrava com entusiasmo e o mesmo espírito de meu pai e meu avô. Atualizando permanentemente a fazenda com as tecnologias mais modernas. Lendo e conversando com os especialistas sobre os conhecimentos científicos mais avançados.
O meu amigo Waldenor, que vivia na cidade, gostava de me gozar chamando-me de fazendeiro modernoso, cientista louco do cerrado e coisas pelo estilo. Na verdade ele concordava com meu modo de ser e tinha até um pouco de uma amistosa inveja.
Uma vez, querendo novamente tirar brincadeira, apareceu-me na fazenda em um caminhão de transportar gado, dizendo trazer um presente muito importante. Com uma cara bem séria.
O presente era um espanto. Um tourinho, a ponto de começar a procriar. O surpreendente é que era um nelore em tudo do pescoço para trás e um guzerá do pescoço para frente. Parecia um boi nelore fantasiado com máscara da festa do Divino. Só que tinha um par de chifres enormes, de ponta fina e bem para cima. De longe o tamanho enorme dos chifres fazia parecer que o boi era pequeno. Mas quando se chegava perto se via que o tourinho era demais da conta de grande. Uma figura espantosa. Todos o achavam esquisito e ficavam curiosos sobre como tinha acontecido aquilo. Alguns o achavam ridículo, debochando e rindo ao vê-lo.
Mantive a postura de seriedade falsamente exibida pelo meu amigo Waldenor. Não passei recibo. Até menti, dizendo que ao contrário do que parecia, com base nos meus conhecimentos técnico-científicos, aquele boi era dos mais promissores. E que poderia até mesmo ser um primeiro espécime de uma nova raça. Usei de termos complicados que, para os que não conhecem, dão a impressão de superior sabedoria. Notei uma nesga de dúvida na face de meu amigo, apesar de seu esforço para apagá-la.
Dias depois pus o tourinho na companhia de umas vacas de menos qualidade de meu rebanho em um dos meus pastos mais distantes. Se me desfizesse logo dele estaria passando recibo pela gozação e desmentindo as lorotas que inventei.
Um ano depois os vaqueiros contaram-me surpreendidos que o boi “Esquisito”, como passaram a chamá-lo, era bom demais. Dava contas de quantas vacas no cio aparecessem e os filhotes eram de qualidade muito superior à média.
Aí eu organizei um churrasco na fazenda e convidei todos os amigos e conhecidos. No meio da festa, já com todo mundo satisfeito, tomei a palavra e retruquei a brincadeira de pouco mais de um ano atrás. Fiz um brinde a todos com minha caipirinha e agradeci de público ao Waldenor pela sua perspicácia em reconhecer a qualidade daquele tourinho pra lá de excelente que tinha me presenteado. E dei números. E mostrei os filhotes.
Todo mundo abraçou entusiasticamente o Waldenor. E daquele dia em diante, todo criador passou a pedir sua opinião sobre bezerros. Principalmente quando aparecia algum esquisito. Aí Waldenor tinha que contar a história da brincadeira e do resultado inesperado.

Os sorrisos bovinos

Coloquei o Esquisito em um curral com estábulo perto da sede da fazenda. Passou a ser o principal animal da minha boiada. E como era esquisito, fora das normas da técnica pecuária, passei a observá-lo mais de perto. Aí começaram misteriosas surpresas de comportamento.
Na primeira vez que me aproximei dele no curral principal, sem nenhum animal nem vaqueiro por perto, ele fez um gesto desconcertante. Olhou-me de frente e ciscou o chão com as duas patas dianteiras, uma depois da outra, como fazem os touros espanhóis antes de investirem no toureiro. Tomei o maior susto. Pensei que iria atacar-me. Estava muito perto e eu não tinha para onde correr dentro daquela cerca. Aí veio a surpresa. Esquisito esticou o focinho na minha direção e arreganhou os beiços mostrando as gengivas e os dentes. Nunca vi boi fazer isso daquele jeito tão exagerado. E seus olhos brilhavam de uma forma diferente. Passei a imaginar coisas. Que ele estava debochando de mim pelo temor que demonstrei da sua possível investida. Ou que ele estava querendo demonstrar simpatia, mostrando alegria, do jeito que os cachorros fazem com os donos.
A história se repetiu umas três vezes e na terceira algo mais intrigante aconteceu. Depois de arreganhar os beiços naquele sorriso exagerado que beirava o ridículo, ele caminhou devagar na minha direção de cabeça meio abaixada, como se demonstrasse humildade. Fiquei parado esperando. Ele chegou bem perto, e torcendo o pescoção para que seus imensos chifres não me tocassem, esticou o focinho de lado e lambeu minhas botas. Quando me afastava para fazer algo, ele me seguia como um cão. Atribuí tudo isso a um processo de domesticação, ainda que de forma totalmente desacostumada tratando-se de um bovino.
Daí em diante, toda vez que chegava perto dele ele repetia o mesmo. Com as outras pessoas se comportava como um touro se comporta e as pessoas cuidavam para não sofrer reações agressivas.
Os vaqueiros acreditavam que aquilo era um gesto de um animal que gostava do dono. Eles aceitavam com naturalidade porque haviam presenciado e vivido muitos casos de simpatia e antipatia de animais.

O aviso misterioso

Uma vez, junto com uns vaqueiros, levava uma grande boiada para um pasto distante que estava bem preparado. O Esquisito ia na minha frente e atrás de nós o resto da boiada com os vaqueiros cercando para evitar tresmalhos.
A uns 300 metros adiante havia uma aglomeração pequena de árvores e arbustos do cerrado, justo no ponto em que começava uma curva da trilha que nós seguiríamos pelo sopé da serra. Foi quando repentinamente o Esquisito estacou, voltou para frente de mim e ficou atravessado evitando que meu cavalo continuasse. Eu desviava para um lado e ele trancava o caminho, desviava para o outro ele repetia a manobra de impedimento. Desconfiei de que algo estava errado naquela situação. Baixei do cavalo, e o Esquisito repetiu aquele gesto de riso e depois se virou para trás, levantando levemente o focinho na direção da aglomeração de árvores. Pus o binóculo e vi escondido, atrás de uma touceira de Cipó Una, um cara com um rifle esperando a gente. Não tive dúvidas. Peguei meu fuzil na sela, mirei com sua luneta uma fruta de lobeira que estava em cima da cabeça do desgraçado e atirei. Deu para ver pela luneta a fruta se espatifar, o homem olhar para cima e olhar para meu lado percebendo minha arma. Depois foi aquele arranco a cavalo na direção do alto da serra. Tive a dúvida de se era conveniente persegui-lo. Não sei se foi o medo que naquela hora me paralisou. Depois pensei que foi uma premonição. Não ia repetir a cena que contaram de meu avô. Os vaqueiros se aproximaram e eu contei sobre a percepção da cilada, o tiro e a fuga. Não falei do aviso do Esquisito que nesse então pastava uma coisa aqui outra acolá, como se nada tivesse acontecido. Evidentemente estava também disfarçando como eu.

Minha neta e o boi Romeu

Tempos depois, estava eu fora do estábulo observando o Esquisito quando chegou a minha filha Luana com minha neta Bartira nos braços. Depois de abraços e beijos me veio a idéia de mostrar o Esquisito à minha neta. Minha filha morava na capital e muito raramente ia à fazenda, principalmente nos últimos dois anos devido aos cuidados com Bartira. Pediu-me para não levar minha neta para junto daquela massa bovina assustadora. Tranqüilizei-a dizendo que comigo aquilo era como um cachorrinho manso. Entrei no estábulo com minha neta nos braços. Esquisito se aproximou como sempre, ciscou o chão, levantou o focinho, desta vez em direção à minha neta e arreganhou os beiços naquele riso esquisito de costume. Minha neta, que apenas começava a falar, olhou para o touro, se inclinou apontando-o com a mão e pronunciou: Romeu. Eu quase caí. Pela emoção e porque minha neta se inclinava quase se pendurando. E repetia: Romeu, Romeu.... Por sorte, como estava longe, minha filha nada percebeu. Porque seria muito chocante e produziria comentários sem parar.
Porque Romeu era o nome do meu avô.
Acho que ali passava algo real e misterioso. Um relacionamento de fatos e seres de várias gerações que a ciência ainda nem sequer conhecia. Mas eu já andava no mistério, já quase místico, não fosse minha forte crença de que tudo que se percebe existe e será explicado algum dia pela ciência humana.
Continuei sempre estudando aquele touro que me dava tanto lucro. E também não posso negar que lhe devotava uma amizade que não se explicava somente como sendo entre o dono e um animal. Ali havia, não sei de imaginação minha ou de realidade, a presença brincalhona de meu avô.
Tal é assim que, quando estava só, eu lembrava da minha neta e o chamava de Romeu. Não que eu quisesse propriamente chamá-lo com esse nome. Mas sim como fazendo uma espécie de evocação. E tinha medo que me escutassem, pois pareceria um ato de tremenda irreverência para com meu avô.
E quando estava no estábulo observando o touro, e chegava alguém de fora, como o veterinário ou o agrônomo, eu dizia baixinho: “Romeu, finge que você é um boi”. E ele saía com aquele olhar de inteligência e com seu caminhar solene como qualquer touro costuma fazer. Não queria que seus gestos estranhos levantassem suspeitas de mistérios.
Só muito tempo depois Bartira veio à fazenda, já uma menina brincando com bonecas. Já tinha esquecido do episódio de nomeação. Mas o touro fazia sempre para ela os mesmos gestos que para mim.

A vida continua

Continuei muito tempo ganhando dinheiro e fama de criador inteligente, em boa medida por causa do boi Romeu. Seu sêmen era muito procurado e me dava uma boa grana.
Como tudo é assim, depois de vários anos, o touro morreu. Morreu tranqüilo e com aquela pose solene dos bovinos, deixando de respirar sem sofrimento. Como tudo na vida fosse uma continuidade. Elo após elo. Mesmo numa aparência de morte.
Como era um touro muito especial, de importância reconhecida, todos acharam muito natural quando resolvi enterrá-lo na beira de uma pedra bem perto daquele pé de Jatobá em cima do morro que se avistava da sede.
E aí começou uma nova lenda viva até hoje. Todos que lá êh vão mesmo sem saber a história de Romeu, sentem que aquela pedra está sempre quente. Dizem que é calor perene de amizade. E é assim na luz do sol, no sereno da noite escura e na luz fria do luar.
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